terça-feira, 31 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE SANTA MÃE DE DEUS - Lc 2,16-21:




A oitava do natal se completou. Por oito dias, desde a noite santa da solene vigília de natal, a Igreja permaneceu ao redor do menino e de seus pais no estábulo de Belém. Hoje, a liturgia da Igreja celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica – relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Tudo o que se pode dizer acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que é e do que sempre foi dito de seu filho.

Qual o sentido deste dogma na conclusão da oitava do Natal? A liturgia sempre quis visibilizar e introduzir o fiel no mistério da salvação que ela celebra de modo sacramental e sensível na vida do ser humano e na história. Na solenidade do santo Natal, a Igreja faz a memória do mistério da Encarnação, ou seja, Deus que se fez carne, armando sua tenda entre nós (Jo 1,14). Com a solenidade de Maria, mãe de Deus pretende-se visibilizar ainda mais o mistério da Encarnação, colocando acento, agora, na humanidade do Filho. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeiro e plenamente Deus; verdadeiro e plenamente homem.

A proclamação dogmática acerca da maternidade divina de Maria se dá, portanto, em chave cristológica, ou seja, em virtude da Pessoa de Jesus. O bispo de Antioquia, Nestório e seus companheiros acreditavam (de modo equivocado) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. O que, desde as primeiras profissões da fé Cristológica, a começar por Niceia e culminando em Calcedônia, em 450, a unidade das naturezas na pessoa de Cristo foi sempre confessada e professada. Em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou a fé cristológica de que em Jesus existe uma comunicação tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo, e não só de sua humanidade.

Quando proclamamos “Maria, mãe de Deus”, estamos dizendo, conforme o dogma, que ela é a mãe do Filho de Deus encarnado. Maria não se tornou uma deusa, nem entrou na Trindade. Por isso, devemos vê-la em relação às pessoas deste Deus Uno e Trino.

A proclamação de Fé sobre a maternidade de Maria deve ser lida em chave teológica, e, portanto, à luz da Santíssima Trindade. Em relação a Deus-Pai, Maria é uma filha predileta. Ela foi agraciada com ternura pelo Criador, que a moldou com especial carinho. Ao mesmo tempo, Maria concretiza, de forma humana, a eterna geração que o Pai realiza com o Filho, no seio da Trindade. Como toda mãe ou pai, ela é figura do amor criador de Deus-Pai. Em relação ao Filho, Maria é mãe, educadora e discípula. O seu relacionamento com Jesus supera os laços de família. Maria é mãe, mas sua missão vai mais além. Esteve junto de Jesus durante sua vida terrena e, agora, glorificada, continua junto do Filho ressuscitado, na comunhão dos Santos. A respeito do Espírito Santo, Maria é uma pessoa plena do Espírito do Senhor. Como perfeita discípula de Jesus, acolheu o Espírito e fez-se transparente a ele. Tornou-se um templo vivo de Deus e se transformou, por Graça, na mãe do Messias. A docilidade ao Espírito Santo explica a maternidade biológica de Maria e o seu coração tão aberto a Deus. O dogma é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Santo Ambrósio, no século quarto, dizia que cada cristão é mãe como Maria, pois gera Cristo no seu coração. Hoje, numa sociedade tão marcada pela violência, pelo egoísmo, pela dureza nas relações humanas, pela destruição do meio ambiente, precisamos desenvolver atitudes maternas, uns para com os outros, e para com todos os seres. A declaração de fé também toca a vocação de cada discípulo e discípula do Reino, pertencente à comunidade eclesial, por serem, através do Batismo, Igreja. Maria é imagem da Igreja em sua dimensão glorificada. Por isso, a Igreja é mãe. E à luz da maternidade de Maria, ela gera, alimenta, dá vida e cuida dos filhos de Deus nascidos no Batismo, através da Fé que transmite, da Palavra de Deus e dos Sacramentos de Seu Filho Jesus (MURAD, A. p.139-140; disponível in. http://maenossa.blogspot.com).

O Evangelho de hoje nos ajuda a contemplarmos o modo através do qual Maria, de fato, é mãe de Deus-Filho, e está em relação com a Trindade e com cada um de nós. Temos para a nossa meditação, a continuação do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As característica fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância.  E delineia, durante todo o evangelho, as atitudes esperadas para os que querem se tornar discípulos do Reino e de Jesus.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso se tornavam inaptos para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições da pureza farisaica; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente. No v.16, eles vão se certificar do evangelho que lhes fora dito pelo mensageiro celestial.

O terceiro evangelho é caracterizado pelo tema da pobreza. A primeira palavra que sai da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré, é que seu projeto de vida contempla o anúncio aos pobres, e que o Espírito do Senhor estaria sobre ele, e o ungira para esta missão (Lc 4,18). Ora, entre as muitas faces do terceiro evangelho, esta o aspecto da salvação para os pobres, os últimos, a inversão escatológica, onde os primeiros se tornam últimos, e os últimos se tornam os primeiros. Ora, o Evangelho de Lucas é o mais social dos escritos do NT. Lucas é plenamente o evangelista dos pobres; aqueles aos quais os anjos anunciam um evangelho de Alegria.

O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas. Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (hbr. shemá), que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. Por mais que a imagem da ruminação seja melhor aplicada ao evangelho de João, podemos entender essa atitude de Maria de “guardar no coração”, como sendo uma ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma. É a postura do discípulo do Reino.

No esquema da obra Lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu intimo, ruminando-a, para, enfim, coloca-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, que tudo guardava no coração – confrontando e ruminando a Palavra – o leitor do evangelho é convidado e enxergar em Maria, o exemplo do verdadeiro discípulo de Jesus.

O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o titulo de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula.

A Maternidade de Maria ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor e mais bem feito propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.

Pe. João Paulo Sillio / Arquidiocese de Botucatu – SP.

Feliz Kairós de 2020!

sábado, 28 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA SAGRADA FAMÍLIA (Ano A) - Mt 2,13-15.18-19:




Celebramos dentro deste tempo do natal, a solenidade da Sagrada família de Nazaré. Na dinâmica litúrgico-celebrativa, a solenidade de hoje visa, em primeiro lugar, confessar uma verdade importantíssima dentro deste mistério que vivenciamos por estes dias da oitava de natal: a realidade da Encarnação do Filho de Deus. Este mistério é visibilizado através da solenidade deste domingo através do fato de que Deus, ao assumir a história humana, assume-a em seu realismo e em suas dinamicidades e estruturas, aceitando ser família, de modo a revelar à humanidade que também Ele, em seu mistério trinitário forma família, na relação existente entre as pessoas divinas.

Deus, no Filho, assume a história humana ao assumir a carne, e, igualmente, ao assumir a realidade histórica e estrutural de uma família, revelando-se Família desde sua vida intra-trinitária. Mas qual a finalidade desta “assunção” da realidade familiar humana por parte de Deus? É a de propor à humanidade um convite: torna-la participante da família de Deus. Poderíamos parafrasear o v.14 do prólogo do Evangelho segundo João: “O verbo se fez carne e revelou sua Família entre nós, para que pudéssemos fazer parte de sua família”. Mas existe um critério, ou, se preferir, um caminho para se tornar parte da Família de Deus. É o que o texto evangélico proposto para esta solenidade nos convida a assimilar.

Antes de tudo, se faz necessário desconstruir aquelas idealizações concernentes à Sagrada Família. A família de Nazaré, José, Maria e Jesus não pode ser tida, a rigor, como modelos de perfeição ou daquela famosa imagem de “família tradicional”. A família de Nazaré já começou fora dos paradigmas “humanos”, “culturais”, “religiosos”, “tradicionais” daquela época e contexto socio-religiosos. Uma mulher que engravida, para todos os efeitos, fora das estruturas humanas e religiosas, fadada à mendicância, prostituição, e, em último caso, mais certeiro, pena de morte. O esposo, procura não assumir a sua prometida, pretendendo devolvê-la em segredo à família, na intenção de que eles decidissem sobre a sorte da menina; o que revela, numa primeira leitura, um José descompromissado e amedrontado. Uma situação destinada ao fracasso desde o começo. Aparentemente!

Deus quebra os esquemas e paradigmas da história humana, subvertendo a ordem e a importância das coisas. Ora, à luz dos textos bíblicos destes dias somos chamados a contemplar como as personagens Maria e José buscam responder ao projeto de Deus. Na perspectiva do Evangelho de Lucas, Maria é tida como o modelo do discípulo do Reino, pois ela se abre e se dedica à escuta, acolhida (discernimento) e cumprimento da Palavra de Deus ( Lc 1,38ss; 2,1-15). José, no evangelho de Mateus assume a figura do discípulo exemplar, ele é justo, porque permite que a vontade de Deus se cumpra em sua vida e através dela, escutando, assim a Palavra de Deus e colocando-a em prática (Mt 1,16ss; 2,13-19, texto de hoje). Quanto a Jesus, sempre o veremos como fiel ouvinte da Palavra do Deus que ele chama de Pai, do começo ao fim de sua vida ministério.

Existe, portanto, uma característica comum entre as três personagens que compõem esta família de Nazaré, tão histórica e concreta: ouvir e discernir a Palavra de Deus. Isso, para escapar das possíveis quedas retóricas e devocionais relacionadas à idealização da família e da “sagrada” família. Especialmente, é oportuno recordar que, na economia cristã e de acordo com as próprias palavras de Jesus, a realidade decisiva é a nova família de Jesus: aquela dos seus discípulos e discípulas, reunida ao seu redor pelo anúncio da Palavra de Deus e que não se baseia mais em laços de sangue, mas no “fazer a vontade de Deus” (cf. Mt 12,46-50).” (Comunitá di Bose. Eucaristia e Parola, p. 36).

Agora, podemos entrar na narrativa do evangelho de hoje. O evangelista Mateus, se serve de um episódio já conhecido de seu povo e de sua comunidade, a matança dos meninos hebreus pelo Faraó, em Ex 1,22. O evangelista se serve da técnica de interpretação dos textos narrativos, utilizados pelos rabinos de seu tempo, o midrash. Ele se apropria desta técnica narrativa de interpretação para transmitir sua catequese sobre Jesus de Nazaré para a sua comunidade. Ele se serve de todo o patrimônio escriturístico, histórico e religioso de Israel para fazer conhecer a identidade de Jesus: para a comunidade de Mateus, Jesus é o novo Moisés, que assume toda a história e tradição de seu povo, para promover a nova libertação, o novo êxodo, e inaugurar o novo povo de Deus, através do qual Deus poderá exercer sua ação na história humana, ou seja, seu Reinado.

Existe uma trama maldosa e diabólica por parte de Herodes. O mensageiro celestial informa a José que o tetrarca pretende atentar contra a vida do menino. “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo” (v. 13b). A expressão “Anjo do Senhor” é uma forma suavizada para falar de Deus mesmo. Como a mentalidade hebraica concebia Deus como alguém muito distante e o ser humano incapaz de comunicar-se com ele, usava-se a imagem de um ser intermediário, como um anjo. Já o sonho, na mentalidade bíblica, e sobretudo em Mateus, significa a disposição interior para compreender a vontade de Deus e colocá-la em prática. A primeira informação evidenciada aqui é a proteção constante de Deus na vida de Jesus, sendo também uma antecipação do seu ministério como oposição ao poder estabelecido. O evangelista está alertando que, desde o início, Jesus e seu projeto libertador são insuportáveis para todo e qualquer sistema de dominação sustentado pelo uso da força e poderio econômico, causas diretas das principais injustiças. (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).

“José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito” (v. 14). Existe uma estrutura neste versículo: José – o menino – a mãe. Notemos que Jesus está ocupando o centro da frase. O evangelista Mateus quer ensinar para a sua comunidade qual deve ser o seu referencial: Jesus. Ele deve ocupar sempre o centro de sua vida. José e Maria são, aqui, símbolos do antigo Israel, o qual vai se abrindo à novidade da vida e da missão de Jesus, tornando-se assim um novo povo.

Ao mesmo tempo, o versículo quatorze traz uma estrutura ritimada que aparece novamente nos vv.13.20.21, marcada pelos verbos “levantar-se, tomar consigo (pegar), partir e entrar”, parecendo um refrão. Esta ordem de Deus, através do anjo, é, na verdade uma síntese de todo o discipulado a Jesus, através do cumprimento da ordem dada. José, se torna, portanto, o modelo do discípulo: todo o seu agir é pautado pela Palavra de Deus.

O texto continua, informando a morte de Herodes e uma nova aparição do Anjo do Senhor a José (v. 19), com uma nova ordem: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos” (v. 20). Mateus quer identificar Jesus como o novo Moisés, que do Egito inaugura um novo êxodo. Isso será mostrado no decorrer de todo o evangelho mateano.

Importante notar mais uma característica desta família: ela se deixa iluminar pela Palavra de Deus. Ora, Deus protege, mas o ser humano participa da contínua libertação. Em momento algum o evangelista diz que Deus os transportou de um lugar para outro. Apenas os iluminou com a Sua Palavra. A iniciativa de partir de um lugar para outro foi sempre de José, ou seja, do agente humano. É assim também que deve fazer a comunidade cristã: à luz da Palavra, tomar iniciativas de libertação; não repetindo as práticas do opressor, mas criando e propondo alternativas de vida. A ida dos três para a desprezada região da Galileia é uma prova disso. É de lá que o Reino será, posteriormente, anunciado e iniciado por Jesus (cf. Mt 4,14) (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).   

O texto de hoje nos provoca: 1) Que imagem de família (ou modelo) trago comigo, ela é conforme os moldes e padrões desta mentalidade, perfeitinha, “exemplo de moral e bons constumes”? 2) O exemplo de José pode ser assimilado por nós e nossas comunidades? 3) Nossas famílias, com todo o realismo e imperfeição que elas possam ter, são espaços de escuta, acolhida, discernimento e realização da Palavra de Deus? 4) Podemos ser contados entre os membros da Família de Deus, assim como a humana e histórica família de Nazaré, que se colocou na disponibilidade da escuta e do cumprimento da Palavra de Deus?

Celebrar a família de Nazaré significa celebrar a nossa entrada na Grande Família de Deus, que não se delimita e determina mais pelos laços sanguíneos, mas pelos laços que a Palavra de Deus cria em cada um que se torna sua Ouvinte.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR - Jo 1,1-18


 a Palavra se fez Carne.

Antigamente, se iniciava o estudo do Evangelho de João pelo v.19 do cap.1, onde começa a narrativa propriamente. Mas devido ao caráter próprio dos dezoito versículos anteriores, o prologo do Evangelho nos coloca na mentalidade própria do autor do Quarto Evangelho, de modo a compreender bem a narrativa. Gostaria de meditar um pouco sobre os v. 1-2, 12-14. Não tomarei todo o texto bíblico do Prólogo de João, pois estes cinco versículos expressam bem a Graça deste dia Santo que celebramos, o Natal do Senhor!

“No principio era a Palavra” (v.1). João é um judeu, e que pensa e escreve a maneira semítica, só que em grego. Existem muitas construções frasais no seu evangelho que não são nada gregas, mas de mentalidade muito semítica.

Ora, quando se repensa esta primeira linha do prólogo, sob pano de fundo hebraico, é evidente que ele tem em mente o Gênesis. O Genesis começa com um “No princípio (Bereshit)” Logo, João faz em sua Overture (abertura) uma releitura do poema da criação do Gênesis (Gn 1,1-31). Ali se fala da palavra efetiva, criadora e ordenadora. Esta Palavra foi efetiva: “Haja Luz, e houve luz”. É, então, sobre esta Palavra efetiva e eficiente que João faz uma meditação para nos colocar no espirito de sua obra. É uma Palavra que faz coisas, que cria possibilidades e horizontes.

Esta palavra estava junto de Deus (prós ton Theon); no inicio estava Deus falando e esse falar era próprio de Deus, e esta Palavra é Deus. Não é outra entidade senão Deus. É ele mesmo quem fala. Ora, a Palavra é Gerada, produzida, dita por Deus, e não Criada. Isso é muito importante, pois João apresenta o falar de Deus, que é Deus mesmo.

No v.12, o autor do Quarto Evangelho ratifica a ideia dos versículos precedentes, de que a Palavra veio para os seus, mas os seus não a acolheram, mas pontuando que não foram todos, dentre os que eram seus (o povo de Israel), que não o acolheram, e que aqueles que o acolheram, se tornaram filhos de Deus, no nome do Filho, e receberam Graça por Graça.

No v.13 aparece o tema da geração por Deus. Os que aceitam a Palavra de Deus são gerado por Deus. É Deus quem gera e faz o fiel, através de sua Palavra Criadora.

O v.14 é explosivo: A Palavra se fez Carne e armou sua tenda entre nós, e nós vimos a sua Glória. Esta imagem evoca a encarnação concreta, palpável de alguém, que fez (armou) sua tenda entre nós. Esta imagem evoca a Tenda da Reunião, nos livros de Êxodo e Números. Aquela tenda que depois foi transferida pelo Rei Davi, e finalmente transformada em templo por Salomão. Mas de qualquer modo, esta tenda era a habitação, a morada de Deus no meio dos Homens, (morada = Shekiná) no Antigo Testamento.

Dentro deste contexto semântico é que João situa o acontecimento (o evento) da Palavra no âmbito do humano. Esta Palavra colocando sua Shekiná, sua morada, no meio de nós. E, por isso, sua Glória se torna visível para nós.

Glória no Antigo Testamento não é sinônimo de Brilho. Em hebraico, a palavra Glória (hbr. Kabod) significa Peso, substância. Ora, o Judeu, que sabia lidar com ouro tinha a consciência de que este pode, enquanto polido irradiar sua glória e brilho. Mas mesmo opaco, sem nenhum tratamento, ele sabe que a importância do ouro não está no seu brilho, mas em seus Quilates, portanto em seu peso, mesmo escondido. Então, Glória é como o ouro, que, mesmo escondido, tem seu peso, sua subtância, sua qualidade, seu Kabôd.

O que está no Menino de Belém [Jesus] não é algo que brilha sobre o mundo, mas o Peso e a substância de Deus (Kabod há YWHW – Glória de Deus). João quer ensinar à sua comunidade e ao leitor de seu evangelho ruminado, que o lugar da manifestação da Glória (do peso substancioso) de Deus reside na Carne, na vida e na história de Jesus de Nazaré. A glória de Deus (seu peso, sua presença substanciosa) reside, agora, na Carne do ser humano: reside no Homem. A humanidade torna-se o lugar de Deus. Ela, agora, leva consigo o próprio Deus, que desejou ser cuidado, também, na fragilidade de uma Criança. 

Com efeito, quando ainda nestes versículos se fala que a Palavra se fez carne, deve-se pensar a Carne (Sarx) como aquela condição mais precária, limitada, frágil da condição humana: uma humanidade limitada (Is 40). Sarx (carne) difere, aqui, de Sôma (corpo). O Quarto evangelista não diz que a Palavra (Lógos) se tornou Corpo (Sôma), mas que se fez Carne (Sarx), ou seja, assumiu em tudo a fragilidade, a precariedade, a mortandade, a temporalidade. Significa dizer que a Palavra se tornou humanidade precária já marcada para a morte. O caminho de toda a carne é a morte. Então, a encarnação de Jesus não é só seu natal, mas também sua sexta-feira da paixão,quando a encarnação é consumada e levada a Termo. Aqui, Jesus é carne ao extremo.

Pleno de Graça e de Verdade (plêres cháritos kai Aletheías), nos informa, ainda o v.14. Estas duas palavras nos fazem retornar ao modo semítico de pensar. Em Hebraico, Graça corresponde a Hesed-Hem, dois conceitos que estão muito próximos. É aquela Benevolência indescritível e Leal. Já Verdade corresponde ao hebraico Emet (fidelidade e veracidade), verdade (mas normalmente, no sentido existencial), que pode ser resumida na expressão “Amor Leal” ou “Amor Fiel” (ou mesmo, Amor e Fidelidade). Graça e verdade são traduções muito aproximativas daquele Amor fiel (Hesed waEmet), que são as ultimas palavras de autorevelação de Deus em Ex 34,26, quando YHWH passa diante de Moisés e lhe proclama suas próprias qualidades, dentre elas seu amor e sua fidelidade. Então, é o mesmo Deus do Sinai que está presente neste unigênito, que não é outra coisa, senão a automanifestação (ou autocomunicação) deste Deus pleno de Graça e verdade.

Assim sendo, a solenidade do Santo Natal, que celebramos hoje, é a festa da glorificação de nossa Carne, através da Carne de Jesus de Nazaré, o Unigênito Filho de Deus. No mistério de sua Encarnação, sua Antróposis, Deus eleva a condição humana à sua Théosis, à Deificação. Dizer que através da Carne do Filho tem-se acesso à glória de Deus, significa dizer que Carne (tudo aquilo que é de mais frágil, precário, finito, débil e mortal) se torna lugar de Deus. O humano se torna lugar de Deus. Como bem expressou Santo Irineu de Lyon, "a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus (Adversus Haeresis, de Santo Irineu, Bispo (Lib. 4, 20, 5-7: Sch 100, 640-642. 644-648, séc. I).

Como dizia acertadamente Fernando Pessoa: "Tão humano assim, só poderia ser Divino" (parafraseando consciente ou inconscientemente São Leão Magno).
FELIZ E SANTO NATAL!

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A NOITE DO SANTO NATAL - Lc 2,1-14




Meditamos nesta noite santa o capítulo segundo do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,1-14). O evangelista nos informa a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado (gr. Oikumênen) ordenado por Cesar Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). O evangelista possui uma visão ecumênica, ou melhor, inclusiva (universal, se preferir) na transmissão de seu relato.
O terceiro evangelista nos informa que José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, desposada com ele. Talvez essa palavra “desposada” já não cabe mais, pois no primeiro capitulo, Maria estava prometida em casamento a José, então casada com ele. Na cidade de Belém ela dá a luz ao filho primogênito: o Ya’hid (meu único), o filho por excelência, ao qual são reservados todos os direitos jurídicos (v.5-6).
No v.7, o relato diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui temos um detalhe interessante: Lucas, desde o nascimento delimita “o que virá a ser esse menino”, ou seja, a figura de Jesus que perpassará todo o evangelho. Mas isso, na ordem da narrativa, pois devemos evitar, aqui, todo e qualquer determinismo quanto à vida de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade.
O menino encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para ele na sala da hospedaria. Lucas que mostrar que Jesus está entre os excluídos. Imaginemos o contexto social da época. As hospedarias eram espécies de grutas escavadas nas rochas. Dentro delas haviam galerias onde era possível arrumar um cantinho para ficar, enquanto que os animais ficavam próximos às manjedouras (nos cochos), na estrebaria. Mas nem um lugar nessas galerias havia para a família de Nazaré. Então, muito provavelmente, tenham ficado numa estrebaria, ou numa gruta destinada aos pastores da região, como o resto da narrativa sugere.
Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso se tornavam inaptos para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições da pureza farisaica; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente!
Os pastores recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. Interessante notar a composição lucana sempre mostrando o contraste entre escuridão e claridade, como que se Deus gostasse de se manifestar na escuridão (por exemplo, a nuvem escura que desce sobre a tenda da aliança no deserto) ou na luz da salvação predita pelo profeta Isaias em 9,1.
Os primeiros cristãos viram no nascimento de Jesus uma realização do que foi predito pelo Profeta Isaias no cap.9,1. Esta Luz aparece aqui aos pastores. Isso é muito interessante: não é uma luz que atinge as pessoas, mas que as envolve. Ficando eles envolvidos também por um certo temor religioso, o anjo, então, lhes exorta, primeiramente, a não ter medo, porque o temor para com Deus não deve ser uma barreira. Em segundo lugar, lhe dá o motivo: um evangelho de alegria para todo o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor!
A palavra Salvador (gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado, o enviado, o portador e executor de uma função especial, como o rei e o sumo sacerdote. E isso, na Cidade de Davi.
O mensageiros celestial lhes dá um sinal para encontra-lo: encontrarão o menino deitado numa manjedoura, envolto em faixas! O sinal é encontrar, portanto, o menino colocado no lugar da exclusão!
O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal grandioso. Não poderá ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Não está no esplendor do templo de Jerusalém. Não está entre os poderosos. O sinal é um menino envolto em faixas e colocado em meio a paus trançados – a mangedoura. Porque não havia lugar para eles na hospedaria (Lc 2,7). Na estrabaria encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feito Carne. Deus fez-se encontrar entre os pequenos e excluídos. Deus empodera os pequenos optando por eles.
Na manjedoura de paus trançados, prefigura-se o mistério da Cruz. Na cidade de Belém já se vislumbra o que virá ser esse menino. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida. Pão repartido, moído, despedaçado na Cruz. O sinal do menino envolto em faixas é sinal da inversão escatológica: Deus que inverte a lógica dos poderosos em favor dos pequenos.
Na narrativa, imediatamente após o sinal dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr), aparece uma multidão da corte celeste para anunciar o nascimento do messias: Glória a Deus, no mais alto dos Céus, e paz na terra... Hino celestial muito poético! Significa que o céu e a terra se unem num evento único: a Glória de Deus, que produz Paz (shalom) na terra. Isto é um reflexo do Sl 84. A plena realização (plenitude) – Shalom. Significa que Glória de Deus, ao encontrar-se entre a humanidade através da Carne do menino, está inaugurando o tempo messiânico, o tempo do Shalom, do “debito quitado”, da Paz.
Entramos aqui numa questão semântica: essas pessoas se agradam em Deus ou será que elas recebem o agrado dele? Alguém poderia seguir o exemplo dos fariseus do tempo de Jesus, que faziam de tudo para agradar a Deus. Entretanto, conhecendo a teologia de Lucas, podemos nos inclinar para o seguinte significado: estes, aos quais os anjos anunciam, são os que recebem o prazer ou agrado do coração e do olhar de Deus. Equivaleria dizer que o coração de Deus é oferecido às pessoas que tem um coração humilde. Assim, o agrado de Deus é a salvação do ser humano.
Que a festa do Natal do Senhor possa abrir as portas de nossos corações para a hospitalidade para com o irmão e a irmã que não encontram lugar em nosso meio.  Se quisermos ver o menino, deveremos lançar o olhar para a estrebaria e para a manjedoura. 
Ele está ali, com os últimos e excluídos. Se quisermos ver a Glória de Deus, deveremos olhar para a Carne assumida pelo Filho, e enxerga-lo envolto em faixas e colocado na manjedoura. Olhar para a Carne do Menino de Belém, e para a sua opção pelos últimos. Humano assim, só pode ser Deus.


Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP

Feliz Natal