E a Palavra se fez Carne.
Antigamente, se iniciava o estudo do Evangelho de João pelo v.19 do cap.1, onde começa a narrativa propriamente. Mas devido ao caráter próprio dos dezoito versículos anteriores, o prologo do Evangelho nos coloca na mentalidade própria do autor do Quarto Evangelho, de modo a compreender bem a narrativa. Gostaria de meditar um pouco sobre os v. 1-2, 12-14. Não tomarei todo o texto bíblico do Prólogo de João, pois estes cinco versículos expressam bem a Graça deste dia Santo que celebramos, o Natal do Senhor!
“No principio era a Palavra” (v.1). João é um judeu, e que pensa e escreve a maneira semítica, só que em grego. Existem muitas construções frasais no seu evangelho que não são nada gregas, mas de mentalidade muito semítica.
Ora, quando se repensa esta primeira linha do prólogo, sob pano de fundo hebraico, é evidente que ele tem em mente o Gênesis. O Genesis começa com um “No princípio (Bereshit)” Logo, João faz em sua Overture (abertura) uma releitura do poema da criação do Gênesis (Gn 1,1-31). Ali se fala da palavra efetiva, criadora e ordenadora. Esta Palavra foi efetiva: “Haja Luz, e houve luz”. É, então, sobre esta Palavra efetiva e eficiente que João faz uma meditação para nos colocar no espirito de sua obra. É uma Palavra que faz coisas, que cria possibilidades e horizontes.
Esta palavra estava junto de Deus (prós ton Theon); no inicio estava Deus falando e esse falar era próprio de Deus, e esta Palavra é Deus. Não é outra entidade senão Deus. É ele mesmo quem fala. Ora, a Palavra é Gerada, produzida, dita por Deus, e não Criada. Isso é muito importante, pois João apresenta o falar de Deus, que é Deus mesmo.
No v.12, o autor do Quarto Evangelho ratifica a ideia dos versículos precedentes, de que a Palavra veio para os seus, mas os seus não a acolheram, mas pontuando que não foram todos, dentre os que eram seus (o povo de Israel), que não o acolheram, e que aqueles que o acolheram, se tornaram filhos de Deus, no nome do Filho, e receberam Graça por Graça.
No v.13 aparece o tema da geração por Deus. Os que aceitam a Palavra de Deus são gerado por Deus. É Deus quem gera e faz o fiel, através de sua Palavra Criadora.
O v.14 é explosivo: A Palavra se fez Carne e armou sua tenda entre nós, e nós vimos a sua Glória. Esta imagem evoca a encarnação concreta, palpável de alguém, que fez (armou) sua tenda entre nós. Esta imagem evoca a Tenda da Reunião, nos livros de Êxodo e Números. Aquela tenda que depois foi transferida pelo Rei Davi, e finalmente transformada em templo por Salomão. Mas de qualquer modo, esta tenda era a habitação, a morada de Deus no meio dos Homens, (morada = Shekiná) no Antigo Testamento.
Dentro deste contexto semântico é que João situa o acontecimento (o evento) da Palavra no âmbito do humano. Esta Palavra colocando sua Shekiná, sua morada, no meio de nós. E, por isso, sua Glória se torna visível para nós.
Glória no Antigo Testamento não é sinônimo de Brilho. Em hebraico, a palavra Glória (hbr. Kabod) significa Peso, substância. Ora, o Judeu, que sabia lidar com ouro tinha a consciência de que este pode, enquanto polido irradiar sua glória e brilho. Mas mesmo opaco, sem nenhum tratamento, ele sabe que a importância do ouro não está no seu brilho, mas em seus Quilates, portanto em seu peso, mesmo escondido. Então, Glória é como o ouro, que, mesmo escondido, tem seu peso, sua subtância, sua qualidade, seu Kabôd.
O que está no Menino de Belém [Jesus] não é algo que brilha sobre o mundo, mas o Peso e a substância de Deus (Kabod há YWHW – Glória de Deus). João quer ensinar à sua comunidade e ao leitor de seu evangelho ruminado, que o lugar da manifestação da Glória (do peso substancioso) de Deus reside na Carne, na vida e na história de Jesus de Nazaré. A glória de Deus (seu peso, sua presença substanciosa) reside, agora, na Carne do ser humano: reside no Homem. A humanidade torna-se o lugar de Deus. Ela, agora, leva consigo o próprio Deus, que desejou ser cuidado, também, na fragilidade de uma Criança.
Com efeito, quando ainda nestes versículos se fala que a Palavra se fez carne, deve-se pensar a Carne (Sarx) como aquela condição mais precária, limitada, frágil da condição humana: uma humanidade limitada (Is 40). Sarx (carne) difere, aqui, de Sôma (corpo). O Quarto evangelista não diz que a Palavra (Lógos) se tornou Corpo (Sôma), mas que se fez Carne (Sarx), ou seja, assumiu em tudo a fragilidade, a precariedade, a mortandade, a temporalidade. Significa dizer que a Palavra se tornou humanidade precária já marcada para a morte. O caminho de toda a carne é a morte. Então, a encarnação de Jesus não é só seu natal, mas também sua sexta-feira da paixão,quando a encarnação é consumada e levada a Termo. Aqui, Jesus é carne ao extremo.
Pleno de Graça e de Verdade (plêres cháritos kai Aletheías), nos informa, ainda o v.14. Estas duas palavras nos fazem retornar ao modo semítico de pensar. Em Hebraico, Graça corresponde a Hesed-Hem, dois conceitos que estão muito próximos. É aquela Benevolência indescritível e Leal. Já Verdade corresponde ao hebraico Emet (fidelidade e veracidade), verdade (mas normalmente, no sentido existencial), que pode ser resumida na expressão “Amor Leal” ou “Amor Fiel” (ou mesmo, Amor e Fidelidade). Graça e verdade são traduções muito aproximativas daquele Amor fiel (Hesed waEmet), que são as ultimas palavras de autorevelação de Deus em Ex 34,26, quando YHWH passa diante de Moisés e lhe proclama suas próprias qualidades, dentre elas seu amor e sua fidelidade. Então, é o mesmo Deus do Sinai que está presente neste unigênito, que não é outra coisa, senão a automanifestação (ou autocomunicação) deste Deus pleno de Graça e verdade.
Assim sendo, a solenidade do Santo Natal, que celebramos hoje, é a festa da glorificação de nossa Carne, através da Carne de Jesus de Nazaré, o Unigênito Filho de Deus. No mistério de sua Encarnação, sua Antróposis, Deus eleva a condição humana à sua Théosis, à Deificação. Dizer que através da Carne do Filho tem-se acesso à glória de Deus, significa dizer que Carne (tudo aquilo que é de mais frágil, precário, finito, débil e mortal) se torna lugar de Deus. O humano se torna lugar de Deus. Como bem expressou Santo Irineu de Lyon, "a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus (Adversus Haeresis, de Santo Irineu, Bispo (Lib. 4, 20, 5-7: Sch 100, 640-642. 644-648, séc. I).
Como dizia acertadamente Fernando Pessoa: "Tão humano assim, só poderia ser Divino" (parafraseando consciente ou inconscientemente São Leão Magno).
FELIZ E SANTO NATAL!
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP
Obrigado pela linda reflexão!
ResponderExcluirMuito nos enriquece como discípulos do reino na militância eclesial.