sábado, 16 de março de 2019

HOMILIA PARA O II DOMINGO DA QUARESMA – Lc 9,28b-36:





O evangelho que meditaremos hoje encontra-se no capítulo nono da catequese lucana. Para compreende-la bem, se faz necessário conhecer seu contexto. A narrativa da transfiguração situa-se entre três importantes momentos: 1) a confissão de fé de Pedro, suscitada pela pergunta de Jesus acerca de sua identidade (Lc 9,18); 2) o primeiro anúncio da paixão (Lc 9,22); e, 3) as exigências quanto ao discipulado (Lc 9,23-27). Depois da resposta de Pedro, que confessara Jesus como Messias – resposta certa, mas ainda passível de equívocos – ele trata de mostrar qual o caminho percorrerá em sua missão messiânica, para coibir e evitar qualquer concepção errônea acerca de si. Em seguida, trata de deixar bem claro as exigências do seguimento ao Reino e à Sua pessoa.

Não contente com a (falta de) compreensão dos discípulos, Jesus toma consigo três testemunhas (que dão veracidade ao fato, na função de testemunhas qualificadas), Pedro, Tiago e João, e sobe para uma montanha, a fim de rezar. É nesse contexto que se encontra o relato da transfiguração, o qual somos convidados a meditar. Interessante, que ele antecede, também, o segundo anuncio da paixão, ao mesmo tempo que prepara a viagem de subida para Jerusalém (Lc 9,51).

Agora se torna possível saborear o texto. O Evangelista informa sua comunidade-discípula, que Jesus levou para a montanha três sujeitos: Pedro, Tiago e João (os irmãos trovão). Ao interno do grupo dos Doze, os três eram os mais difíceis de se lidar. Pedro, explosivo, impulsivo e cabeça dura sempre se adiantava nas atitudes e nas respostas, e, por isso, se expunha muito, sofrendo muitas correções. Tiago e João, inflamados e ambiciosos tentaram lançar fogo contra os samaritanos por não terem acolhido a Boa Nova de Jesus. Inflamados, explosivos, ambiciosos e cabeças-duras, Pedro, Tiago e João são os que Jesus leva para a montanha consigo não porque são privilegiados, mas porque tinham uma necessidade mais profunda de uma experiência com Jesus. Uma bela lição de Jesus, que visa ensinar que Ele não desiste da humanidade, apesar de suas debilidades.

Lucas diz que Jesus subiu para a montanha a fim de orar. A oração é um traço característico seu no Terceiro Evangelho. Ele ora ao Pai antes de cada atitude ou gesto; antes de decidir-se ou ensinar: na escolha dos Doze (Lc 6,12); antes da pergunta relacionada a sua identidade (Lc 9,18); durante o caminho de subida para Jerusalém (Lc 11,1); e antes de sua paixão (Lc 22,39). Onde reza? Na montanha.

A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar costumeiro de sua manifestação (as teofanias). Não se trata de um mero lugar geográfico, mas, acima de tudo, teológico. Ora, todo a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo um “subir a montanha”. É preferível não identificar a montanha com o Tabor. Esta identificação surgiu com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se sustenta com a leitura da bíblia. É melhor manter a montanha anônima, tomando-a somente como a possibilidade e um encontro com Deus.

Em seguida, Lucas nos informa que, enquanto rezava, as roupas de Jesus ficaram brancas e brilhantes, e sua aparência mudou. As roupas brancas e brilhantes são símbolos da realidade divina, do mundo celeste; daquilo que pertence ao âmbito de Deus. Através da atitude orante de Jesus, seu rosto mudou de aparência. Com esta imagem, o evangelista pretende ensinar para a sua comunidade que Jesus, mesmo sendo homem, pertence ao âmbito do divino; transfigura-se: ou seja, o Seu rosto reflete a glória do Pai. Nesse sentido, a transfiguração não é apenas uma antecipação da ressurreição de Jesus, mas a grande revelação acerca da identidade de Jesus. Através da transfiguração, o Pai mostra quem Jesus é desde seu interior, através da oração.

O texto nos informa que, junto a Jesus apareceram Moisés e Elias. Primeiramente, ambos são aquelas figuras associadas ao tempo da vinda do Messias, no fim dos tempos. São, também, a síntese de todo o Antigo Testamento, ou seja, a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias). Mas, ao mesmo tempo, representam todas as esperanças e expectativas bíblicas em relação ao Messias. Também eles, segundo Lucas, aparecem revestidos de glória. Indicativo de que já participam da esfera divina.

O conteúdo da conversa é o que importa para Lucas, para a comunidade, e para a geração posterior. “e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém” (v.31). Na verdade, o original grego não fala de morte, e sim de Êxodo. Ou seja, o caminho (saída) de Jesus, que se consumará em Jerusalém. Ora, Moisés e Elias haviam cumprido suas missões em meio a grandes sofrimentos, perseguições e tribulações. Assim também acontecerá com Jesus.

Moisés foi o líder do primeiro êxodo. Elias, em contexto de perseguição defendeu a fé no Deus libertador do Êxodo. O evangelista quer ensinar que Jesus é o novo Moisés, e que com Ele começa um novo êxodo, através de sua morte e ressurreição. Nesse sentido, Jesus supera as figuras de Moisés e de Elias, porque Ele não vai para Jerusalém apenas para morrer, mas para abrir e fazer um caminho e um processo de libertação – que, sim, é perpassado pelo sofrimento e pela morte, mas coroado com a ressurreição.

Os discípulos que acompanhavam a Jesus se distraem. Caem no sono. Dormem e não participam da conversa entre Jesus e aquelas duas personagens. Na verdade, o evangelista está denunciando a falta de perseverança na oração por parte da comunidade, a partir da distração dos discípulos. A distração da comunidade na prática da oração priva-a da experiência com Jesus. Mais ainda, isso mostra que ela não compreendeu o projeto de Jesus, quando Pedro revela a intenção de armar ali três tendas: para Jesus, Moisés e Elias.

Construir tendas revela a tentação do comodismo; a manutenção dos esquemas e dos modelos antigos e descomprometidos com a novidade que Jesus apresenta. O desejo de permanecer na montanha – sob o verniz da oração – pode revelar, também, o desejo da fuga da realidade ou mesmo o descomprometimento para com ela. É preciso, sim, subir a montanha para reabastecer-se de Deus, para poder descer à realidade concreta.

Todavia, o mais grave da fala de Pedro revela-se no seguinte: ao dizer sua intenção de construir tendas para Jesus, Moisés e Elias, ele coloca Moisés ao centro, entre Jesus e Elias. Isso revela que Jesus ainda não é o centro da vida deles, muito menos da comunidade dos discípulos. Eles ainda continuam dando preferência e importância a Moisés e para o que ele representa, a lei judaica. Com isso, o evangelista denuncia a incoerência de sua comunidade que coloca a lei mosaica acima do Evangelho. Isso foi um problema para as comunidades cristãs no início, que Paulo e Lucas trataram de combater. Onde o Evangelho não é o centro, não há discipulado nem missão, muito menos Igreja, comunidade dos discípulos.

O Pai, então, intervém, falando de uma nuvem, símbolo da presença divina (assim como no Batismo). Ele se manifesta, fala e dá um testemunho favorável acerca de seu Filho diante das dúvidas da comunidade. É Ele quem mais conhece o Filho: “Este é o meu filho, o Escolhido (o eleito). Escutai o que Ele diz” (v.35). Lucas modifica a versão de Mt e Mc, quem mantém o adjetivo “amado”. Na concepção da salvação universal, muito apreciada pela obra lucana, a humanidade toda é amada por Deus. Mas o adjetivo “o escolhido” tem maior profundidade: aponta para a unicidade da missão de Jesus, o autorizado pleno da parte do Pai para anunciar a Palavra da salvação digna de toda a atenção. Por isso, a ordem: “escutai o que Ele diz”. Diante disso já não são necessárias as presenças de Moisés e Elias; eles se retiram porque não tem mais nada de Novo para dizer. Agora será somente o Evangelho de Jesus (Ele mesmo) o parâmetro para a vida e o agir da comunidade. Evangelho que é a plenitude da Lei e dos Profetas, ao mesmo tempo que é diferente e novidade.

Lucas apenas informa que, após a experiência na montanha, os discípulos ficaram calados e não contaram a ninguém acerca do acontecido. É preciso anunciar o Evangelho de maneira coerente e certa. Nesse sentido, deve-se calar e silenciar para não anunciar a Boa Nova do Reino de modo equivocado. Ora, o anúncio distorcido resulta de uma experiência e de uma escuta superficial da Palavra de Jesus.

O Evangelho que meditamos cumpre sua finalidade quando propõe à comunidade de todos os tempos “escutar o Filho escolhido”. Nesta perspectiva, três perguntas se fazem necessárias, fazendo do texto um espelho para a nossa vida e discipulado: 1) tenho, de fato, me exercitado na escuta da Palavra do Filho Escolhido, Jesus? 2) Tenho vivenciado o convite à oração para fazer uma experiência de transfiguração? 3) Ou venho escutando outras vozes e palavras, permitindo-me instalar nos comodismos dos esquemas e projetos já fixos e endurecidos, ou mesmo fazendo destes uma rota de fuga da realidade concreta?

Que o evangelho deste II Domingo da Quaresma nos ajude a transfigurarmos através da escuta da Palavra do Filho escolhido e a descer da montanha para transfigurar os irmãos e as realidades ainda enrijecidas pelo comodismo e pelos esquemas de morte.

Diác. João Paulo Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 9 de março de 2019

HOMILIA PARA O I DOMINGO DA QUARESMA (ANO C) – Lc 4,1-13:


O evangelho deste primeiro domingo do tempo quaresmal nos narra as tentações de Jesus, ao longo dos quarenta dias que ficou no deserto, após o seu batismo. O termo tentação é correto e não caiu de moda. Mas ainda é preferível o termo “sedução”. Porque a tentação daria a ideia de uma força ou dinâmica que impulsionaria o homem a cometer algo de mal. E veremos, com a narrativa de hoje, que o diabo no deserto não se apresenta como um inimigo propriamente dito, tampouco tenta a Jesus a fazer algo de mal, ou pecar, ou qualquer coisa horrenda que se possa imaginar. Pelo contrário, se apresenta como uma espécie de colaborador (duvidoso, é verdade) que mostra um caminho alternativo para Jesus realizar seu projeto, através das seduções que apresenta, diferente do que Ele se decide a assumir e viver em sua vida.

Este episódio das seduções/tentações se encontra  nos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc). O que confirma que esta narrativa tem grande importância para as comunidades primitivas. A fonte original deste relato, o Evangelho segundo Marcos, não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; apenas diz que “Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás” (Mc 1,13). Lucas, a seu modo e interesse comunitário, "criou” a história que lemos hoje na liturgia, assim como Mateus o fez (cf. Mt 4,1-11). Mas para que este texto não seja mal interpretado como sendo uma crônica exata dos fatos ocorridos na vida de Jesus, devemos nos ater à simbologia e tipologia teológicas que o relato nos apresenta.

O texto começa dizendo que “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (v.1). A narrativa situa-se após o batismo de Jesus. No Jordão, depois de ter descido às águas, o céu se abriu, o Espírito de Deus (sua força, dinamismo e capacidade de amar) investiu Jesus para a missão e do céu ouviu-se a voz do Pai confirmando-o como “Filho Amado”. O evangelista pretende mostrar para a sua comunidade como Jesus viverá esta dinâmica de ser o filho amado de Deus. Este episodio tem a intenção de mostrar o programa de vida de Jesus: como ele realizará o projeto de amor do Pai à humanidade. Com efeito, é interessante que Lucas explicite o fato de Jesus ter ido para o deserto com a força do Espírito. Do início ao fim, a vida e a missão de Jesus serão marcadas pela presença do Espírito Santo.

Uma primeira constatação sobre a ida ao deserto. Jesus toma o caminho contrário: das margens do Jordão, ele retrocede para o deserto. Faz, pois, o caminho do povo de Israel, que para tomar posse da terra prometida passou pelo deserto e cruzara o Jordão para adentrar e conquistar aquela  promissã de Deus. Lucas pretende ensinar para sua comunidade que Jesus é a imagem e símbolo do povo de Israel, e enquanto tal, assume e refaz a história de seu povo. Todavia, Ele supera seu povo, porque foi fiel a Deus durante as seduções do diabo, coisa que os israelitas não foram.

Uma segunda compreensão acerca do “deserto”. Ele não é somente uma localização geográfica e espacial. Antes, é um lugar teológico. É um lugar de provação, mas também de refazimento da Aliança com Deus; um bom lugar para se relacionar com Ele.

Quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Uma vez que o deserto também é sinônimo de provação e perigo, o evangelista quer dizer que aquele que tem a sua vida conduzida pelo Espírito, não está imune aos perigos da vida, não é uma pessoa blindada (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Jesus faz o caminho contrário da terra prometida (Israel e Jerusalém), indo para o deserto porque aquela terra havia se tornado, desde muito tempo, uma terra de escravidão e opressão. O povo e suas lideranças (político-religiosas) reproduziam os mesmos sistemas e mecanismos injusto e opressores do Egito. Jesus não quer compactuar com isso, e, através de seu gesto de ir na direção contrária pretende ensinar a tomar também o caminho contrário a todo tipo de sistema de morte e de opressão, reproduzidas também pela própria religião de seu tempo. Então, a Igreja insere este texto bíblico das tentações no elenco das leituras quaresmais para provocar o fiel, de modo que ele identifique em sua vida o que ainda se torna obstáculo e é contrário em relação ao cumprimento do projeto de Deus em sua vida.

Então, Jesus é guiado pelo Espírito no deserto para começar o seu caminho (literalmente, o seu êxodo). Ali, no deserto, fora-lhe proposto outro caminho pelo sedutor diabólico durante “quarenta dias”. É um tempo simbólico. O número 40 na teologia bíblica indica a existência de um período necessário. É o tempo da duração de uma geração; uma vida inteira (quarenta anos). Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova. Esta é uma das finalidade do texto bíblico de hoje, mostrar que as tentação não foram um episódio isolado em sua vida, mas que elas o acompanharam no decorrer de sua  missão, sempre propondo tomar um caminho alternativo ao do amor, do serviço aos irmãos, e da fidelidade ao Pai e ao Reino. Dito de outra forma, durante toda a sua existência fora oferecido a Ele uma forma alternativa de viver sua missão e seu messianismo, e todas elas diferentes da lógica do messias servo de YHWH e justo-sofredor. Mas também representa um aviso para a comunidade cristã, para que ela não caia na ilusão de que, tendo assimilado e assumido o projeto de Jesus, estaria imune das seduções do anti-reino.

Isso deve levar os cristãos e cristãs a uma vida vigilante sem, jamais, cair nos comodismos que podem surgir. Quer dizer que a Igreja não pode, em momento algum da história, aceitar qualquer sinal de conforto, principalmente quando ofertado pelos detentores do poder (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

No v.3, o diabo (lit, divisor e opositor) empreende sua primeira sedução/tentação. “Se tu és Filho de Deus...” Como está traduzido aqui, dá-se a entender que o tentador duvida da identidade e Jesus. Isso é falso. O texto grego é melhor traduzido quando se coloca a frase no afirmativo “Já que és o Filho de Deus”. O tentador não duvida que Jesus é o filho de Deus. Ora, já no momento do batismo fora confirmada a sua identidade pelo próprio Pai. O diabo quer propor a Jesus que, uma vez sendo verdadeiramente Filho do Altíssimo,  use todas as suas capacidades e prerrogativas em benefício próprio! Esta é a lógica das tentações/seduções a seguir.

A primeira tentação/sedução que se apresenta sob a imagem da necessidade e da fome física, diz respeito a maneira de relacionar-se com as coisas. “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem” (vv. 3-4). Embora faminto, Jesus percebe que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito mais que pão. Por isso, com base na Escritura (cf. Dt 8,3), Ele não dispensa o pão, mas diz que o homem não pode viver “somente” dele. Esta primeira sedução tenta mostrar o perigo de se conceber a missão de Jesus (e da comunidade) a partir da lógica do messias milagreiro. ao que Jesus se opõe radicalmente; Ele não veio ao mundo para resolver os problemas de maneira fácil e cômoda, como queriam e ainda querem muitos grupos e movimentos religiosos (cf. CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundo, e lhe disse: ‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo será teu’. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (v. 5-8). Esta segunda sedução/tentação relaciona-se com o próximo quanto à maneira de conceber e exercer o poder. Esta tentação não vem precedida de “Já que és Filho de Deus”, porque a tentação do poder relaciona-se a todos homens, porque Deus já o tem. O evangelista Lucas declara a esta altura que o poder possui uma natureza diabólica. Jesus, de sua parte, o rejeita. Aquele que detém e retém poder e riqueza é porque o recebeu do diabo. Deus não dá poder a ninguém; dá seu Amor, que se faz serviço.

Uma constatação importante: o evangelista não quer descrever o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder exercido até então, em todos os reinos, marcado pela exploração, injustiça e opressão, segue a lógica diabólica, à qual o Evangelho se contrapõe com o Reino de Deus, marcado pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade.

A terceira tentação/sedução acontece narrativamente em Jerusalém. O diabo leva Jesus até o alto do templo. Havia uma tradição popular que apregoava que o messias, desconhecido de todos, subitamente apareceria no alto do Templo de Jerusalém. O evangelista usa o termo Jerusalém para identificar toda o judaísmo – a instituição religiosa – do tempo de Jesus. Nessa perspectiva, a terceira tentação/sedução de Jesus se dá na ordem de sua relação com o Deus que ele chama de Pai

“Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Esta tentação/sedução entende-se na ordem do “faça o que o povo quer ver”, ou, “dê ao povo o que ele quer”. Faça um gesto espetacular ou qualquer coisa de extraordinária. Mas Jesus não irá ao encontro das expectativas das pessoas, mas as tornará livres destas expectativas. Jesus possui uma grande fidelidade ao Deus que chama de pai, sem qualquer necessidade de requerer para si ou exigir de Deus gestos extraordinários. Mas também para romper com qualquer tipo de inconsequência de Jesus em relação à condição de homem verdadeiro, bem como em relação à sua missão. Jesus não é um inconsequente que não mede suas atitudes e sua relação com Deus. Assim também para o discípulo do Reino: este, na missão, não poderá ser um inconsequente, porque a obra não é sua, mas, em última análise, de Deus. Há que se saber tirar e medir as consequências da missão, do agir e do querer de Deus em Jesus. Para Jesus e para seus discípulos não vale a lógica do “Deus nos acuda”.

O diabo replica como um bom conhecedor das escrituras ao citar o Sl 91, que expressa a firme consciência e confiança do justo em Deus: “Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra”.  Curioso, o diabo usa as escrituras como um teólogo perito de seu tempo, um escriba ou fariseu. Mais curioso ainda é o fato de que o tentador frequente muito os locais sagrados para a fé israelita (conhece muito bem a Jerusalém; e a parte alta do templo, por exemplo). Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus” (v. 9-12). Jesus reivindica a plena fidelidade ao Senhor sem necessidade de gestos extraordinários que o confirmasse na missão.

As seduções aqui apresentadas pelo evangelista acenam para as convicções e as aspirações do povo em relação ao messias: 1) o messias popular (do pão); 2) o messias do poder (do reino e da riqueza); 3) o messias religioso (a imagem do templo). Mas Jesus recusa estas interpretações durante toda sua vida e ministério públicos. O modo pelo qual ele se decide por viver baseia-se na dinâmica do servo sofredor de YHWH, com uma conotação toda sapiencial e profética.

As seduções acabam com uma afirmação enigmática de Lucas: Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (v.13). O momento oportuno é aquele momento em que Ele estará suspenso na cruz. Ali, as tentações/seduções voltam novamente através da multidão e dos lideres religiosos, dos soldados e do malfeitor, que, insultando a Jesus crucificado provocam-no a agir em benefício próprio (“Já que sois o Cristo, salva-te; desça da cruz (Lc 23)”. Na cruz, ultima tentação de sua missão recusará uma vez mais as seduções e mostrará a sua fidelidade ao projeto de seu Pai e do Reino que anunciou.

As três tentações ou provas relatadas no evangelho de hoje são proposta e contraproposta de como o ser humano deve relacionar-se com as coisas, com o próximo e com Deus. São como uma parábola da vida de Jesus. O diabo apresenta a lógica da ordem vigente, seja religiosa ou política, e Jesus propõe um caminho alternativo, o Reino de Deus. A resistência de Jesus, recorrendo sempre à Palavra de Deus é uma indicação para as comunidades cristãs de todos os tempos: a perseverança e a fidelidade ao projeto de Jesus depende essencialmente da atenção à Palavra. Ao mesmo tempo, há uma clara denúncia ao perigo do uso fundamentalista das Escrituras e tradições religiosas, pois também os argumentos do diabo são fundamentados na Palavra de Deus. É um alerta de que o mal age na história camuflado de diversas aparências, inclusive de pessoas muito religiosas (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Que estejamos dispostos a percorrer com Jesus as dinâmicas e caminhos percorridos por Ele. Como Ele, também nós não nos encontramos imunes. Como Ele, também somos convidados a deixar-nos conduzir pelo Espírito de Deus, a Força, condição e dinâmica de Amor servidor, que habilita-nos a viver-em-amor (rompendo com as seduções/tentações do reter e dominar). A partir dele, somos chamados a reorientar nossas relações com as coisas, com os outros (também na ordem do bem comum), e a nossa relação com Deus.

Diác. João Paulo Góes Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP.

quarta-feira, 6 de março de 2019

HOMILIA PARA A QUARTA-FEIRA DE CINZAS.



Mt 6,1-6.16-18:

O capítulo sexto do evangelho de Mateus está inserido no bloco do discurso inaugural de Jesus, o Sermão da Montanha, que compreende os capítulos 5,1 – 7. Este discurso adquire o status de programa de vida do discípulo de Jesus, e consequentemente, do Reino.

Mateus usa do método rabínico do Midrash, que consiste na releitura de um texto narrativo ou legislativo da Palavra de Deus. Tem-se, nestes capítulos, a releitura da Lei (Torá, a Instrução de Deus ao povo). Jesus dá a ela um sentido novo, reinterpretando-a de modo a colocar nela o Espirito na letra. O mestre proporá nestes versículos do discurso inaugural uma espécie de diálogo entre o discípulo de Reino e Deus. Aquele é convidado a colocar a Deus e Seu querer no centro da vida.

Para o primeiro evangelista, Jesus é o novo Moisés, que dá e reinterpreta a nova lei para o novo Israel. Com efeito, a questão de fundo desta sessão está formulada em Mt 5,20, o tema da Justiça – a vontade de Deus para o discípulo do Reino.

O capítulo seis começa com uma exortação de Jesus aos discípulos, “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serem vistos por eles (v.1)”. O mestre chama a atenção dos discípulos para um tema muito importante dentro da fé israelita: a justiça de Deus (Justiça do Reino).

A justiça, na teologia bíblica,, entende-se como sendo a vontade soberana de Deus. Dito de outra maneira: é o senhorio (vontade) de Deus acontecendo na história e na vida do discípulo do Reino, que através de sua vida conformada com o querer de Deus tende a ser a expressão histórica do agir divino.

Mateus, recuperando o ensinamento de Jesus, quer ensinar que a prática do discípulo deve ser discreta, como o sal, que não é visto, mas, mesmo assim, presente. Contudo, há um princípio importante a ser observado: a religiosidade do discípulo do Reino não é exibicionista, e nem a religião deve se sujeitar a isso. Uma certa ala do farisaísmo, no tempo de Jesus, era muito exibicionista. Sua piedade era afetada, de modo a se colocarem sempre em evidência e serem considerados os mais perfeitos e santos. Jesus adverte os discípulos contra esta maneira de se comportar, exortando-os a não fazerem as coisas para serem vistos e louvados pelos demais (VITÓRIO, 1998, p. 19). Então ensinará o modo certo de rezar.

No v.2-4 tem-se a orientação para a esmola: “Quando deres esmola não façais como os hipócritas... em público para serem vistos e elogiados”. As obras de caridade, a Lei e o culto eram considerados os três pilares do mundo judaico. Daí a importância da esmola (Tb 4,7-11.16-17; 12,9). O discípulo, porém, é exortado a não fazer como os hipócritas que dão esmola pelas ruas e nas sinagogas, onde se reúne muita gente, de modo a chamar a atenção sobre si e granjear elogios. Esta já seria a recompensa deles (VITÓRIO, 1998, p. 19). Os hipócritas de que o Jesus de Mateus fala são aqueles atores gregos que usavam mascaras nas apresentações teatrais das tragédias e das comédias gregas. A exortação de Jesus à comunidade dos discípulos orienta-a a não travestir ou mascarar-se atrás de gestos ou atitudes exteriores e falsas.

“De modo que a mão esquerda não saiba o que faz a direita”. Na antropologia bíblica, a mão responsável por fazer o bem é a direita. A mão esquerda, o mal. A esmola, nesse sentido, deve torna-se discreta. O que a caracteriza como sendo um gesto autêntico de piedade, porque pautou-se unicamente pela gratuidade. A esmola dada ocultamente é testemunhada apenas pelo Pai, que a recompensará de maneira adequada. A esmola (caridade) coloca, então, o discípulo na relação com o próximo.

Os v.5-6 tratam da oração: a oração deve ser do mesmo modo. Na intimidade e no silêncio. O discípulo do Reino não deve rezar de maneira teatral, como os hipócritas. Esses, nas sinagogas e nas esquinas das praças, rezam para serem vistos por quem passa. A oração do discípulo deve ser feita com simplicidade e discrição, no oculto do próprio quarto (2 Rs 4,33), de modo a ser visto apenas pelo Pai. O próprio Jesus rezava solitário (Mt 14,23; Mc 1,35; 6,46).Com isto, não está proibindo a oração em comum (Mt 18,20), prática muito antiga das comunidades cristãs. Ele mesmo participava das orações na sinagoga (Mc 1,21; Lc 4,16). Jesus questiona uma atitude equivocada por parte de quem reza (VITÓRIO, 1998, p. 20). Nesse sentido, a oração coloca o discípulo na relação com Deus. Para que ele crie em si um ambiente interior disponível para a vontade (Justiça e Querer benevolente) de Deus. Não é uma forma de mudar a vontade de Deus em relação às minhas expectativas, mas a minha vida ser performada através da assimilação de Sua vontade.

Já os v.16-18, tratam do tema do Jejum. O Jejum é uma prática de controle contra as desordens interiores. É a possibilidade da integração relacional consigo mesmo. A maneira hipócrita de jejuar consiste ficar com a cara pálida de modo a ser percebido e, por isso, ser louvado pelos demais (VITÓRIO, 1998, p. 21). Se assim for, então este jejum não servirá, porque visará mostrar o exterior (a cara pálida de coitadinho), e não corrigir o interior.

Com estes ensinamentos de Jesus, Mateus visa mostrar que o modo de ser homem e mulher, discípulo e discípula do Reino, presente no Sermão da montanha consiste na compreensão do ser humano como ser de relação: relação com o Pai através da Oração, que nos orbita a Deus; relação com sigo mesmo, mediante a prática coerente do Jejum, que reorganiza o homem interiormente a si; com o irmão e com as criaturas através da doação de si aos outros. 

Uma relação Paternal, filial e Fraterna. Ora, a salvação na Bíblia é a salvação do humano e de suas relações. O Pecado rompera com o projeto da relação e da comunhão integral com o Pai, conosco mesmo e com nossas alteridades, bem como com as criaturas. 

Por isso, Jesus, ao ensinar a superação da justiça dos fariseus, centrada neles próprios, trabalhará o ser humano como ser de comunhão para restaurar a Comunhão primigênia, através destes ensinamentos de Mt 6,1-6.16-18. Ali está a salvação do discípulo do Reino, reencontrar-se neste caminho de comunhão e de relação.

Diác. João Paulo Goes Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP.

Quaresma – um caminho a descobrir; uma vida por florir e assumir.





Com o rito da imposição das Cinzas inicia-se o tempo da Quaresma. Para entendermos bem o significado deste tempo litúrgico e especial para a nossa vida de fé, propomos uma nova leitura deste tempo litúrgico após o Concílio.

Antes do Concílio, o rito de imposição das cinzas vinha acompanhado da formula litúrgica retirada do Livro do Gênesis: “Lembra-te que és pó, e ao pó retornarás” (Gn 3,19). Se, por um lado o ambiente proposto pelo tempo quaresmal revestia-se em tons de tristeza, e lúgubre, por outro, a liturgia que fazia uso da formula do terceiro capítulo do livro do Gênesis, relembrava aquela maldição dita por Deus ao homem por conta de seu pecado. A quaresma era vista, então, como um período de mortificação, penitência e de sacrifício.

Hoje, a liturgia pós-conciliar, na imposição das cinzas, apresenta uma expressão evangélica – e não provinda do AT, que remetia àquela maldição de Gênesis – que convida a uma plenitude de vida: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Isto é, “mude a orientação da tua existência; coloque como valor absoluto o bem do irmão; e aceite a Boa Notícia da vida nova e plena”.

Enquanto anteriormente a Quaresma era permeada de tons lúgubre, agora o tempo quaresmal se torna um convite a um itinerário e a uma plenitude de vida e de felicidade, porque o evangelho, se acolhido no interior do coração humano faz florir na pessoa todo o significado de uma vida feliz e plena.

Antes, com a formula da maldição de Gn 3,19, o acento recaia sobre as práticas da penitência, da mortificação e do sacrifício. Agora, enfatizam-se as palavras de vida que o próprio Jesus nos dá. E, se perscrutarmos ainda mais à vida de Jesus, se dela fizermos um exame, não encontraremos nenhuma palavra que convide a mortificação; Ele nunca ensinou ou propôs qualquer tipo de sacrifício ou de penitência.

Ao contrário, Jesus ensinará seus discípulos e discípulas a pedagogia da misericórdia: “Ide e aprendei o que significa, “Misericórdia quero. Não sacrifício” (Mt 9,13). Os sacrifícios davam, naquele contexto, a ideia do luto; a ideia do homem pecaminoso, sempre culpado e necessitado de purificação. Jesus, ao contrário, propõe Misericórdia, acolhimento de seu amor e a sua comunicação aos outros. No vocabulário e na vida de Jesus não vemos nenhuma defesa destas práticas.

Tomemos contato com um certo Paulo de Tarso, que, conforme sua autobiografia, foi um fariseu ferrenho. Depois de reorientado em sua vocação para Cristo, escreveu à comunidade dos Colossenses, exortando o seguinte: “Ninguém vos condene por questões de bebida ou comida, de festas ou lua nova de sábados. Ninguém, a pretexto de humildade ou culto aos anjos vos impeça de alcançar a vitória. Esses preceitos parecem ter algo de sabedoria porque aparentam religiosidade, humildade e severidade para com o corpo, mas não possuem nenhum valor contra a autossuficiência da carne” (Col 2,16-20). Ou seja, todos estes ensinamentos pseudos espirituais não só impediam o homem de se aproximar do Senhor, como também afastavam Dele. Segundo Paulo eles não possuem nenhum valor, senão a satisfação do próprio EU.

Os ensinamentos sobre penitência, mortificação e sacrifícios são centrados na própria pessoa, fazendo com que ela se centre sobre si mesmo. E não há nada mais perigoso que uma pessoa centrada e curvada sobre si mesma que, buscando uma perfeição ideal – tão ilusória e distante do Evangelho de Jesus – acaba por tornar-se egoísta e gananciosa.

Jesus não convida a esta perfeição espiritual, mas à entrega e o dom de si de modo imediato e concreto, quanto mais imediato e concreto for a capacidade de amar e doar-se aos outros!

Assim, a Quarta-feira de cinzas não nos remete à sexta-feira da paixão, mas à manhã do Domingo de Páscoa, o Dia da Ressurreição. Nesse sentido, o tempo quaresmal não pode ser outra coisa que um itinerário de vivificação. Eis o significado concreto da cinzas que se espalham sobre a cabeça dos fieis. Uma oportunidade de vivificação.

No inverno rigoroso do hemisfério norte as cinzas são armazenadas para, com o termino da estação fria, ser espalhada sobre o solo, nos campos, porque elas contém nutrientes que enriquecem e nutrem a terra para que ela germine, floresça e frutifique. Assim, com a imposição das cinzas sobre os fieis, se faz o convite a acolher o Evangelho como aquela força de vida e realidade transformadora que permite ao homem fazer florir todas as suas potencialidades e as suas possibilidades e capacidade de amar.

O tempo quaresmal é o caminho que permite ao homem descobrir todas as suas novas possibilidades e capacidade jamais vistas e expressadas anteriormente de perdoar e amar; de partilha generosa; da liberdade que emerge na pessoa de colocar-se ao serviço dos irmãos.

Se isso acontece, então a páscoa será diferente, porque tendo alcançado aquela qualidade de amar teremos feito a experiência daquele que é chamado de O Vivente - O Ressuscitado.

Boa Quaresma.

Diác. João Paulo Góes Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP