Com o rito da imposição das Cinzas inicia-se
o tempo da Quaresma. Para entendermos bem o significado deste tempo litúrgico e
especial para a nossa vida de fé, propomos uma nova leitura deste tempo litúrgico
após o Concílio.
Antes do Concílio, o rito de imposição das
cinzas vinha acompanhado da formula litúrgica retirada do Livro do Gênesis: “Lembra-te
que és pó, e ao pó retornarás” (Gn 3,19). Se, por um lado o ambiente proposto
pelo tempo quaresmal revestia-se em tons de tristeza, e lúgubre, por outro, a
liturgia que fazia uso da formula do terceiro capítulo do livro do Gênesis,
relembrava aquela maldição dita por Deus ao homem por conta de seu pecado. A
quaresma era vista, então, como um período de mortificação, penitência e de
sacrifício.
Hoje, a liturgia pós-conciliar, na
imposição das cinzas, apresenta uma expressão evangélica – e não provinda do
AT, que remetia àquela maldição de Gênesis – que convida a uma plenitude de
vida: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Isto é, “mude a orientação da tua existência;
coloque como valor absoluto o bem do irmão; e aceite a Boa Notícia da vida nova
e plena”.
Enquanto anteriormente a Quaresma era permeada
de tons lúgubre, agora o tempo quaresmal se torna um convite a um itinerário e a
uma plenitude de vida e de felicidade, porque o evangelho, se acolhido no
interior do coração humano faz florir na pessoa todo o significado de uma vida
feliz e plena.
Antes, com a formula da maldição de Gn 3,19,
o acento recaia sobre as práticas da penitência, da mortificação e do sacrifício.
Agora, enfatizam-se as palavras de vida que o próprio Jesus nos dá. E, se perscrutarmos
ainda mais à vida de Jesus, se dela fizermos um exame, não encontraremos nenhuma
palavra que convide a mortificação; Ele nunca ensinou ou propôs qualquer tipo de
sacrifício ou de penitência.
Ao contrário, Jesus ensinará seus
discípulos e discípulas a pedagogia da misericórdia: “Ide e aprendei o que
significa, “Misericórdia quero. Não sacrifício” (Mt 9,13). Os sacrifícios davam,
naquele contexto, a ideia do luto; a ideia do homem pecaminoso, sempre culpado
e necessitado de purificação. Jesus, ao contrário, propõe Misericórdia,
acolhimento de seu amor e a sua comunicação aos outros. No vocabulário e na
vida de Jesus não vemos nenhuma defesa destas práticas.
Tomemos contato com um certo Paulo de
Tarso, que, conforme sua autobiografia, foi um fariseu ferrenho. Depois de reorientado
em sua vocação para Cristo, escreveu à comunidade dos Colossenses, exortando o
seguinte: “Ninguém vos condene por questões de bebida ou comida, de festas ou
lua nova de sábados. Ninguém, a pretexto de humildade ou culto aos anjos vos
impeça de alcançar a vitória. Esses preceitos parecem ter algo de sabedoria porque
aparentam religiosidade, humildade e severidade para com o corpo, mas não possuem
nenhum valor contra a autossuficiência da carne” (Col 2,16-20). Ou seja, todos
estes ensinamentos pseudos espirituais não só impediam o homem de se aproximar do
Senhor, como também afastavam Dele. Segundo Paulo eles não possuem nenhum
valor, senão a satisfação do próprio EU.
Os ensinamentos sobre penitência,
mortificação e sacrifícios são centrados na própria pessoa, fazendo com que ela
se centre sobre si mesmo. E não há nada mais perigoso que uma pessoa centrada e
curvada sobre si mesma que, buscando uma perfeição ideal – tão ilusória e
distante do Evangelho de Jesus – acaba por tornar-se egoísta e gananciosa.
Jesus não convida a esta perfeição espiritual,
mas à entrega e o dom de si de modo imediato e concreto, quanto mais imediato e
concreto for a capacidade de amar e doar-se aos outros!
Assim, a Quarta-feira de cinzas não nos
remete à sexta-feira da paixão, mas à manhã do Domingo de Páscoa, o Dia da
Ressurreição. Nesse sentido, o tempo quaresmal não pode ser outra coisa que um
itinerário de vivificação. Eis o significado concreto da cinzas que se espalham
sobre a cabeça dos fieis. Uma oportunidade de vivificação.
No inverno rigoroso do hemisfério norte as
cinzas são armazenadas para, com o termino da estação fria, ser espalhada sobre
o solo, nos campos, porque elas contém nutrientes que enriquecem e nutrem a
terra para que ela germine, floresça e frutifique. Assim, com a imposição das
cinzas sobre os fieis, se faz o convite a acolher o Evangelho como aquela força
de vida e realidade transformadora que permite ao homem fazer florir todas as
suas potencialidades e as suas possibilidades e capacidade de amar.
O tempo quaresmal é o caminho que permite ao
homem descobrir todas as suas novas possibilidades e capacidade jamais vistas e
expressadas anteriormente de perdoar e amar; de partilha generosa; da liberdade
que emerge na pessoa de colocar-se ao serviço dos irmãos.
Se isso acontece, então a páscoa será
diferente, porque tendo alcançado aquela qualidade de amar teremos feito a
experiência daquele que é chamado de O Vivente - O Ressuscitado.
Boa Quaresma.
Diác. João Paulo Góes Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP
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