sábado, 16 de março de 2019

HOMILIA PARA O II DOMINGO DA QUARESMA – Lc 9,28b-36:





O evangelho que meditaremos hoje encontra-se no capítulo nono da catequese lucana. Para compreende-la bem, se faz necessário conhecer seu contexto. A narrativa da transfiguração situa-se entre três importantes momentos: 1) a confissão de fé de Pedro, suscitada pela pergunta de Jesus acerca de sua identidade (Lc 9,18); 2) o primeiro anúncio da paixão (Lc 9,22); e, 3) as exigências quanto ao discipulado (Lc 9,23-27). Depois da resposta de Pedro, que confessara Jesus como Messias – resposta certa, mas ainda passível de equívocos – ele trata de mostrar qual o caminho percorrerá em sua missão messiânica, para coibir e evitar qualquer concepção errônea acerca de si. Em seguida, trata de deixar bem claro as exigências do seguimento ao Reino e à Sua pessoa.

Não contente com a (falta de) compreensão dos discípulos, Jesus toma consigo três testemunhas (que dão veracidade ao fato, na função de testemunhas qualificadas), Pedro, Tiago e João, e sobe para uma montanha, a fim de rezar. É nesse contexto que se encontra o relato da transfiguração, o qual somos convidados a meditar. Interessante, que ele antecede, também, o segundo anuncio da paixão, ao mesmo tempo que prepara a viagem de subida para Jerusalém (Lc 9,51).

Agora se torna possível saborear o texto. O Evangelista informa sua comunidade-discípula, que Jesus levou para a montanha três sujeitos: Pedro, Tiago e João (os irmãos trovão). Ao interno do grupo dos Doze, os três eram os mais difíceis de se lidar. Pedro, explosivo, impulsivo e cabeça dura sempre se adiantava nas atitudes e nas respostas, e, por isso, se expunha muito, sofrendo muitas correções. Tiago e João, inflamados e ambiciosos tentaram lançar fogo contra os samaritanos por não terem acolhido a Boa Nova de Jesus. Inflamados, explosivos, ambiciosos e cabeças-duras, Pedro, Tiago e João são os que Jesus leva para a montanha consigo não porque são privilegiados, mas porque tinham uma necessidade mais profunda de uma experiência com Jesus. Uma bela lição de Jesus, que visa ensinar que Ele não desiste da humanidade, apesar de suas debilidades.

Lucas diz que Jesus subiu para a montanha a fim de orar. A oração é um traço característico seu no Terceiro Evangelho. Ele ora ao Pai antes de cada atitude ou gesto; antes de decidir-se ou ensinar: na escolha dos Doze (Lc 6,12); antes da pergunta relacionada a sua identidade (Lc 9,18); durante o caminho de subida para Jerusalém (Lc 11,1); e antes de sua paixão (Lc 22,39). Onde reza? Na montanha.

A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar costumeiro de sua manifestação (as teofanias). Não se trata de um mero lugar geográfico, mas, acima de tudo, teológico. Ora, todo a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo um “subir a montanha”. É preferível não identificar a montanha com o Tabor. Esta identificação surgiu com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se sustenta com a leitura da bíblia. É melhor manter a montanha anônima, tomando-a somente como a possibilidade e um encontro com Deus.

Em seguida, Lucas nos informa que, enquanto rezava, as roupas de Jesus ficaram brancas e brilhantes, e sua aparência mudou. As roupas brancas e brilhantes são símbolos da realidade divina, do mundo celeste; daquilo que pertence ao âmbito de Deus. Através da atitude orante de Jesus, seu rosto mudou de aparência. Com esta imagem, o evangelista pretende ensinar para a sua comunidade que Jesus, mesmo sendo homem, pertence ao âmbito do divino; transfigura-se: ou seja, o Seu rosto reflete a glória do Pai. Nesse sentido, a transfiguração não é apenas uma antecipação da ressurreição de Jesus, mas a grande revelação acerca da identidade de Jesus. Através da transfiguração, o Pai mostra quem Jesus é desde seu interior, através da oração.

O texto nos informa que, junto a Jesus apareceram Moisés e Elias. Primeiramente, ambos são aquelas figuras associadas ao tempo da vinda do Messias, no fim dos tempos. São, também, a síntese de todo o Antigo Testamento, ou seja, a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias). Mas, ao mesmo tempo, representam todas as esperanças e expectativas bíblicas em relação ao Messias. Também eles, segundo Lucas, aparecem revestidos de glória. Indicativo de que já participam da esfera divina.

O conteúdo da conversa é o que importa para Lucas, para a comunidade, e para a geração posterior. “e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém” (v.31). Na verdade, o original grego não fala de morte, e sim de Êxodo. Ou seja, o caminho (saída) de Jesus, que se consumará em Jerusalém. Ora, Moisés e Elias haviam cumprido suas missões em meio a grandes sofrimentos, perseguições e tribulações. Assim também acontecerá com Jesus.

Moisés foi o líder do primeiro êxodo. Elias, em contexto de perseguição defendeu a fé no Deus libertador do Êxodo. O evangelista quer ensinar que Jesus é o novo Moisés, e que com Ele começa um novo êxodo, através de sua morte e ressurreição. Nesse sentido, Jesus supera as figuras de Moisés e de Elias, porque Ele não vai para Jerusalém apenas para morrer, mas para abrir e fazer um caminho e um processo de libertação – que, sim, é perpassado pelo sofrimento e pela morte, mas coroado com a ressurreição.

Os discípulos que acompanhavam a Jesus se distraem. Caem no sono. Dormem e não participam da conversa entre Jesus e aquelas duas personagens. Na verdade, o evangelista está denunciando a falta de perseverança na oração por parte da comunidade, a partir da distração dos discípulos. A distração da comunidade na prática da oração priva-a da experiência com Jesus. Mais ainda, isso mostra que ela não compreendeu o projeto de Jesus, quando Pedro revela a intenção de armar ali três tendas: para Jesus, Moisés e Elias.

Construir tendas revela a tentação do comodismo; a manutenção dos esquemas e dos modelos antigos e descomprometidos com a novidade que Jesus apresenta. O desejo de permanecer na montanha – sob o verniz da oração – pode revelar, também, o desejo da fuga da realidade ou mesmo o descomprometimento para com ela. É preciso, sim, subir a montanha para reabastecer-se de Deus, para poder descer à realidade concreta.

Todavia, o mais grave da fala de Pedro revela-se no seguinte: ao dizer sua intenção de construir tendas para Jesus, Moisés e Elias, ele coloca Moisés ao centro, entre Jesus e Elias. Isso revela que Jesus ainda não é o centro da vida deles, muito menos da comunidade dos discípulos. Eles ainda continuam dando preferência e importância a Moisés e para o que ele representa, a lei judaica. Com isso, o evangelista denuncia a incoerência de sua comunidade que coloca a lei mosaica acima do Evangelho. Isso foi um problema para as comunidades cristãs no início, que Paulo e Lucas trataram de combater. Onde o Evangelho não é o centro, não há discipulado nem missão, muito menos Igreja, comunidade dos discípulos.

O Pai, então, intervém, falando de uma nuvem, símbolo da presença divina (assim como no Batismo). Ele se manifesta, fala e dá um testemunho favorável acerca de seu Filho diante das dúvidas da comunidade. É Ele quem mais conhece o Filho: “Este é o meu filho, o Escolhido (o eleito). Escutai o que Ele diz” (v.35). Lucas modifica a versão de Mt e Mc, quem mantém o adjetivo “amado”. Na concepção da salvação universal, muito apreciada pela obra lucana, a humanidade toda é amada por Deus. Mas o adjetivo “o escolhido” tem maior profundidade: aponta para a unicidade da missão de Jesus, o autorizado pleno da parte do Pai para anunciar a Palavra da salvação digna de toda a atenção. Por isso, a ordem: “escutai o que Ele diz”. Diante disso já não são necessárias as presenças de Moisés e Elias; eles se retiram porque não tem mais nada de Novo para dizer. Agora será somente o Evangelho de Jesus (Ele mesmo) o parâmetro para a vida e o agir da comunidade. Evangelho que é a plenitude da Lei e dos Profetas, ao mesmo tempo que é diferente e novidade.

Lucas apenas informa que, após a experiência na montanha, os discípulos ficaram calados e não contaram a ninguém acerca do acontecido. É preciso anunciar o Evangelho de maneira coerente e certa. Nesse sentido, deve-se calar e silenciar para não anunciar a Boa Nova do Reino de modo equivocado. Ora, o anúncio distorcido resulta de uma experiência e de uma escuta superficial da Palavra de Jesus.

O Evangelho que meditamos cumpre sua finalidade quando propõe à comunidade de todos os tempos “escutar o Filho escolhido”. Nesta perspectiva, três perguntas se fazem necessárias, fazendo do texto um espelho para a nossa vida e discipulado: 1) tenho, de fato, me exercitado na escuta da Palavra do Filho Escolhido, Jesus? 2) Tenho vivenciado o convite à oração para fazer uma experiência de transfiguração? 3) Ou venho escutando outras vozes e palavras, permitindo-me instalar nos comodismos dos esquemas e projetos já fixos e endurecidos, ou mesmo fazendo destes uma rota de fuga da realidade concreta?

Que o evangelho deste II Domingo da Quaresma nos ajude a transfigurarmos através da escuta da Palavra do Filho escolhido e a descer da montanha para transfigurar os irmãos e as realidades ainda enrijecidas pelo comodismo e pelos esquemas de morte.

Diác. João Paulo Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP.

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