sábado, 2 de novembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS - Mt 5,1-12:




A solenidade de todos os santos nos propõe o capítulo quinto do Evangelho segundo Mateus. Na catequese mateana, este capítulo funciona como o discurso inaugural de Jesus, encerrando-se em 7,11. Esta primeira catequese de Jesus é de fundamental importância para a comunidade dos discípulos e para as gerações futuras.

Com este discurso inaugural, Jesus faz uma releitura ou uma reinterpretação da Torá, a Lei de Deus, contida no Decálogo. Mateus, em seu propósito catequético e redacional, identifica a Jesus como o novo Moisés, que dá, agora, um sentido novo à Lei, através do discurso inaugural do Sermão da Montanha. Este sermão abre-se com as bem-aventuranças.

Jesus lança as bases do Reino dos Céus, cuja proximidade havia anunciado (Mt 5-7). O Sermão da Montanha corresponde ao modo de ser e agir, propostos aos que são convidados a se tornar discípulo do Reino. Jesus não prega um código dc moral. Suas palavras apontam, antes, para um ideal, um projeto de vida, que tem o Pai como fundamento e modelo (Mt 5,48) (VITÓRIO, 2017, p.42).

As Bem-aventuranças fazem parte do gênero profético de congratulações ou felicitações, podendo ser de estilo sapiencial ou escatológico. Este último alude à promessa de intervenção salvadora de Deus na história para salvar e libertar o ser humano e seu povo. É desse estilo que Jesus se serve nas bem-aventuranças que dirige aos seus.

Após dar início a sua missão, depois de ser batizado por João, o batista, e ter sido tentado no deserto quarenta dias, e retornar para a Galileia e reunir um grupo que se decidira por segui-lo, o evangelista começa o capítulo quinto situando o leitor-discípulo na narrativa, num novo cenário. Jesus, seguido de seus discípulos e de uma multidão que o seguia, conforme somos informados em Mt 4,25, chegou a uma montanha ali no território da Galileia. O autor nos descreve a atitude de Jesus.

“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v.1-2)”.  Dois pormenores merecem a atenção do discípulo-leitor nestes dois versículos introdutórios. A personagem da “multidão” e a montanha (lugar teológico).

Jesus dirige seu ensinamento desde a montanha. Esta é muito mais que uma localização geográfica, mas um lugar teológico. Ela remete o leitor-discípulo do primeiro evangelho a outra montanha importante na história do Povo: o Sinai. Ali, YHWH dera a Lei, o decálogo, à Moisés. Mateus quer ensinar para os fieis discípulos de sua comunidade judeu-cristã, que o que Jesus faz equipara-se e supera o gesto de Moisés, ao transmitir ao povo no deserto a Lei que Deus havia dado.  

A multidão, ao interno do evangelho de Mateus, será sempre aquele grupo que ouve falar de Jesus, se encanta com suas palavras e com seus ensinamentos, mas não dá o passo para o discipulado, ou seja, não compromete a vida com o ensinamento e a vida de Jesus. Os discípulos, pelo contrário, são aqueles que aderem ao ensinamento de Jesus, saem da multidão e dão o passo do discipulado, permanecendo com Ele, para, mais tarde, tornarem-se apóstolos, missionários do Reino. O evangelista afirma que Jesus viu as multidões, mas os que se aproximaram foram os discípulos. Mas é claro que o ensinamento que Jesus dirige também contempla a multidão, visando provoca-la a dar o passo para o discipulado.

O ensinamento contido nas Bem-aventuranças não são palavras de consolação, muito menos uma pregação moralista para suportar, tendo em vista uma recompensa celeste. É um apelo de alegria e exultação, que prepara um anúncio de libertação e intervenção de Deus. Não se trata de oito diferentes tipos de pessoas, e, sim, oito diferentes ilustrações da vida do discípulo centrada no Reino. O vocábulo bem-aventurado, feliz, refere-se à condição de quem é abençoado por ter Deus como centro de sua vida (cf. VITÓRIO, 2017, p.42).

Jesus começa o ensinamento, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3)”. Ele declara serem felizes os “pobres em espirito”. Quem são estes? Pode admitir dois sentidos, a pessoa dotada da virtude da humildade, que corresponde à interpretação dos textos de Qumran (hbr. ‘anwê ruah), bem como a pessoa pobre no sentido econômico. Quer seja o humilde ou o miserável, este é declarado feliz quando tem a atitude de apresentar-se diante de Deus com as mãos vazias, porque soube abdicar de sua autossuficiência e atitude orgulhosa. E, mesmo sofrendo a exclusão social, se abrem para Deus e nele põem sua confiança. Possivelmente a melhor tradução para esta primeira bem-aventurança seja “pobres com espírito”. Aqueles que se recusam a escolher o caminho da idolatria dos bens deste mundo para mudar a situação. Jesus diz ser destes o Reino dos Céus. Em outras palavras, entrarão no mundo dos ressuscitados para a vida.

No v.4, Jesus declara serem felizes (bem-aventurados) os aflitos (os que choram, em Lc 6). Mateus mudou a versão de Lucas embasando-se na profecia de Is 61, onde se lê que “O Senhor enviou-me para consolar os aflitos”. Os aflitos são aqueles sofrem os golpes de uma realidade que ainda está sob influencia das forças contrárias ao Reino, o Mal. Vítimas da violência e da injustiça, que não tem a quem recorrer, mas que tem a Deus para consolá-las. Quando os valores do Reino não permeiam as relações interpessoais e o tecido social, as pessoas são cruelmente violentadas. São aqueles que se recusam a revidar violência com violência (Mt 5,39; Rm 12,17; 1 Ts 5,15). Jesus declara que Deus mesmo será o consolador, sofrendo com elas (Is 40,1; 61,2). A consolação prometida é a salvação final e definitiva.

Nesta mesma lógica, Jesus diz serem bem-aventurados os mansos (v.4). Os mansos, pela força de Deus, recusam-se a ser violentos e, desta forma, quebram a maldita espiral da violência. Portanto, serão herdeiros da terra que, com seu gesto de resistência não violenta, ajudaram a construir (SI 37[36]) (cf. VITÓRIO, 2017, p.43). Com certeza esta bem-aventurança foi criada por Mateus, inspirando-se no Sl 37. De certo modo ela repete a primeira bem-aventurança. Todavia, em primeiro plano nesta felicitação está a relação com o próximo. Diante dos outros, o manso apresenta-se desarmado, sem defesas nem esquemas ou autoproteção, colocando-se na dinâmica da não-violência. Um modelo perfeito desta bem-aventurança é o próprio Jesus (Mt 11,29, “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração...). Somente os não-violentos, aqueles que quebram a cadeia (espiral) da violência podem possuir a terra (que num sentido metafórico alude ao Reino de Deus).

A bem-aventurança relacionada aos famintos e sedentos de justiça pode ser compreendida de duas maneiras: 1) Os famintos e sedentos da justiça não têm quem os defenda, para fazer valer seus direitos. Na Lei mosaica, todos e, especialmente, os mais fracos e desprotegidos deveriam ter um protetor (go’el). No projeto de Jesus, o Pai, em pessoa, será o go’el dos discípulos do Reino. Esta bem-aventurança é difícil de traduzir do original grego, que, literalmente poderia vir traduzida assim “Felizes os famintos e sedentos da justiça”. O artigo “a” faria referência à Justiça do Reino (cf. Mt 5,20). E, sendo assim, esta bem aventurança abre-se para uma segunda interpretação: 2) os bem-aventurados por terem fome e sede da Justiça do Reino são saciados quando colaboram para que esta Justiça (que é o agir e a vontade de Deus acontecendo na história) se cumpra, ou seja, se propõem a fazer aquilo que o pai quer.

No v.7, Jesus declara: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Um tema muito querido por Mateus. A misericórdia na bíblia não se trata de um sentimento, mas de uma atitude operativa em favor do outro. É uma atitude relacionada à vida concreta. Na mentalidade do evangelista, o Pai, no último juízo, se mostrará misericordioso com aqueles que viveram uma existência pautada pelo amor o pela misericórdia para com o próximo. Quem tem o coração cheio de misericórdia assimilou o modo de ser de Deus, cuja bondade é eterna (SI 136 [135]). Assim, será também destinatário especial da misericórdia do Pai (cf. VITÓRIO, 2017, p.43).

A bem-aventurança relacionada à pureza de coração deve ser entendida corretamente. São aqueles que são puros desde o íntimo do ser, para além das aparências. Não são pessoas de fachada. Sem falsidades e sem dolo. São transparentes, e essa condição os coloca lado-a-lado com Deus.

Os “fazedores de paz (gr. eirehnopoioí)” empregam toda sua vida para construir o Shalom (paz) neste mundo, propiciando um nível de vida humano e justo onde todos desfrutem do bem-estar e da prosperidade. Serão chamados filhos de Deus por construírem o mundo querido por Deus. São aqueles que colaboram para o diálogo, a concórdia, a reconciliação entre as pessoas, costurando novamente os fios corroídos e selando os laços afrouxados da relações humanas. Jesus diz que, no último dia, estes serão reconhecidos solenemente por Deus como autênticos filhos seus.

Nos vv.10-12, Jesus diz diretamente aos discípulos (bem-aventurados vós...) que estes são felizes por serem perseguidos por causa da Justiça, recebendo injurias, sendo perseguidos e alvos de mentiras por causa dele. Os discípulos deverão se alegrar e exultar, porque a recompensa nos céus será grande. Quem assume viver a dinâmica do Reino, abraçando a causa de Jesus, atrai sobre si insultos, perseguições, mentiras e maledicências. Todavia, os perseguidos por causa da justiça não devem temer, tampouco recuar, pois já possuem a recompensa mais valiosa: o Reino dos Céus. Essas situações difíceis são para eles motivos de alegria e de exultação, contrariando as expectativas do mundo que os quer tristes e derrotados. Sua sorte se compara à dos antigos profetas (cf. VITÓRIO, 2017, p.43).

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta.

O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo ingênuo ou mesmo estéril; que faça pensar ou conceber a santidade, a que todos somos chamados, como sendo algo de outro mundo ou só possível a alguns “separados ou alienados” da realidade. A santidade vive-se na dinâmica relacional e histórica, ou seja, através das relações fraternas restauradoras da dignidade humana, e nesta realidade bem concreta. Por isso, é preciso ter clareza que o programa de vida de Jesus, as bem aventuranças, não se trata de um discurso alienante ou desvinculado da realidade concreta; tampouco um conjunto de ditos moralizantes, mas como processo de seguimento e discipulado, bem como balizas para se viver o projeto do Reino aberto e proposto a todos os batizados e batizadas.

No hoje de nossa vida e de nosso discipulado podemos nos considerar bem-aventurados pelo Senhor? Estamos na multidão já conseguimos dar o passo do discipulado, assumindo as Bem-aventuranças como nosso programa de vida? Nossas comunidades se encontram inseridas nesse projeto de seguimento e discipulado ou concebem-se santamente alienadas e separadas da realidade concreta e histórica onde é chamada a viver e testemunhar a verdadeira santidade de vida? Ora, não vivemos a aventura da santidade sozinhos. Somos chamados à santidade com os nossos irmãos e com eles e através deles nos santificamos também. Será conseguimos reconhecer os bem-aventurados de Hoje? Aprendamos também com eles.

Pe. João Paulo Góes Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP.