
A
solenidade de todos os santos nos propõe o capítulo quinto do Evangelho segundo
Mateus. Na catequese mateana, este capítulo funciona como o discurso inaugural
de Jesus, encerrando-se em 7,11. Esta primeira catequese de Jesus é de
fundamental importância para a comunidade dos discípulos e para as gerações
futuras.
Com
este discurso inaugural, Jesus faz uma releitura ou uma reinterpretação da
Torá, a Lei de Deus, contida no Decálogo. Mateus, em seu propósito catequético
e redacional, identifica a Jesus como o novo Moisés, que dá, agora, um sentido
novo à Lei, através do discurso inaugural do Sermão da Montanha. Este sermão
abre-se com as bem-aventuranças.
Jesus
lança as bases do Reino dos Céus, cuja proximidade havia anunciado (Mt 5-7). O
Sermão da Montanha corresponde ao modo de ser e agir, propostos aos que são
convidados a se tornar discípulo do Reino. Jesus não prega um código dc moral.
Suas palavras apontam, antes, para um ideal, um projeto de vida, que tem o Pai
como fundamento e modelo (Mt 5,48) (VITÓRIO, 2017, p.42).
As
Bem-aventuranças fazem parte do gênero profético de congratulações ou
felicitações, podendo ser de estilo sapiencial ou escatológico. Este último
alude à promessa de intervenção salvadora de Deus na história para salvar e
libertar o ser humano e seu povo. É desse estilo que Jesus se serve nas
bem-aventuranças que dirige aos seus.
Após
dar início a sua missão, depois de ser batizado por João, o batista, e ter sido
tentado no deserto quarenta dias, e retornar para a Galileia e reunir um grupo
que se decidira por segui-lo, o evangelista começa o capítulo quinto situando o
leitor-discípulo na narrativa, num novo cenário. Jesus, seguido de seus
discípulos e de uma multidão que o seguia, conforme somos informados em Mt
4,25, chegou a uma montanha ali no território da Galileia. O autor nos descreve
a atitude de Jesus.
“Vendo
Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e
Jesus começou a ensiná-los (v.1-2)”.
Dois pormenores merecem a atenção do discípulo-leitor nestes dois
versículos introdutórios. A personagem da “multidão” e a montanha (lugar
teológico).
Jesus
dirige seu ensinamento desde a montanha. Esta é muito mais que uma localização
geográfica, mas um lugar teológico. Ela remete o leitor-discípulo do primeiro
evangelho a outra montanha importante na história do Povo: o Sinai. Ali, YHWH
dera a Lei, o decálogo, à Moisés. Mateus quer ensinar para os fieis discípulos
de sua comunidade judeu-cristã, que o que Jesus faz equipara-se e supera o
gesto de Moisés, ao transmitir ao povo no deserto a Lei que Deus havia dado.
A
multidão, ao interno do evangelho de Mateus, será sempre aquele grupo que ouve
falar de Jesus, se encanta com suas palavras e com seus ensinamentos, mas não dá
o passo para o discipulado, ou seja, não compromete a vida com o ensinamento e
a vida de Jesus. Os discípulos, pelo contrário, são aqueles que aderem ao
ensinamento de Jesus, saem da multidão e dão o passo do discipulado,
permanecendo com Ele, para, mais tarde, tornarem-se apóstolos, missionários do
Reino. O evangelista afirma que Jesus viu as multidões, mas os que se
aproximaram foram os discípulos. Mas é claro que o ensinamento que Jesus dirige
também contempla a multidão, visando provoca-la a dar o passo para o
discipulado.
O
ensinamento contido nas Bem-aventuranças não são palavras de consolação, muito
menos uma pregação moralista para suportar, tendo em vista uma recompensa
celeste. É um apelo de alegria e exultação, que prepara um anúncio de
libertação e intervenção de Deus. Não se trata de oito diferentes tipos de
pessoas, e, sim, oito diferentes ilustrações da vida do discípulo centrada no
Reino. O vocábulo bem-aventurado, feliz, refere-se à condição de quem é
abençoado por ter Deus como centro de sua vida (cf. VITÓRIO, 2017, p.42).
Jesus
começa o ensinamento, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque
deles é o Reino dos Céus (v.3)”. Ele declara serem felizes os “pobres em
espirito”. Quem são estes? Pode admitir dois sentidos, a pessoa dotada da
virtude da humildade, que corresponde à interpretação dos textos de Qumran
(hbr. ‘anwê ruah), bem como a pessoa pobre no sentido econômico. Quer seja o
humilde ou o miserável, este é declarado feliz quando tem a atitude de apresentar-se
diante de Deus com as mãos vazias, porque soube abdicar de sua autossuficiência
e atitude orgulhosa. E, mesmo sofrendo a exclusão social, se abrem para Deus e
nele põem sua confiança. Possivelmente a melhor tradução para esta primeira
bem-aventurança seja “pobres com espírito”. Aqueles que se recusam a escolher o
caminho da idolatria dos bens deste mundo para mudar a situação. Jesus diz ser
destes o Reino dos Céus. Em outras palavras, entrarão no mundo dos
ressuscitados para a vida.
No
v.4, Jesus declara serem felizes (bem-aventurados) os aflitos (os que choram,
em Lc 6). Mateus mudou a versão de Lucas embasando-se na profecia de Is 61,
onde se lê que “O Senhor enviou-me para consolar os aflitos”. Os aflitos são
aqueles sofrem os golpes de uma realidade que ainda está sob influencia das
forças contrárias ao Reino, o Mal. Vítimas da violência e da injustiça, que não
tem a quem recorrer, mas que tem a Deus para consolá-las. Quando os valores do
Reino não permeiam as relações interpessoais e o tecido social, as pessoas são
cruelmente violentadas. São aqueles que se recusam a revidar violência com
violência (Mt 5,39; Rm 12,17; 1 Ts 5,15). Jesus declara que Deus mesmo será o
consolador, sofrendo com elas (Is 40,1; 61,2). A consolação prometida é a
salvação final e definitiva.
Nesta
mesma lógica, Jesus diz serem bem-aventurados os mansos (v.4). Os mansos, pela
força de Deus, recusam-se a ser violentos e, desta forma, quebram a maldita
espiral da violência. Portanto, serão herdeiros da terra que, com seu gesto de
resistência não violenta, ajudaram a construir (SI 37[36]) (cf. VITÓRIO, 2017,
p.43). Com certeza esta bem-aventurança foi criada por Mateus, inspirando-se no
Sl 37. De certo modo ela repete a primeira bem-aventurança. Todavia, em
primeiro plano nesta felicitação está a relação com o próximo. Diante dos
outros, o manso apresenta-se desarmado, sem defesas nem esquemas ou
autoproteção, colocando-se na dinâmica da não-violência. Um modelo perfeito
desta bem-aventurança é o próprio Jesus (Mt 11,29, “Aprendei de mim que sou
manso e humilde de coração...). Somente os não-violentos, aqueles que quebram a
cadeia (espiral) da violência podem possuir a terra (que num sentido metafórico
alude ao Reino de Deus).
A
bem-aventurança relacionada aos famintos e sedentos de justiça pode ser
compreendida de duas maneiras: 1) Os famintos e sedentos da justiça não têm
quem os defenda, para fazer valer seus direitos. Na Lei mosaica, todos e,
especialmente, os mais fracos e desprotegidos deveriam ter um protetor (go’el).
No projeto de Jesus, o Pai, em pessoa, será o go’el dos discípulos do Reino.
Esta bem-aventurança é difícil de traduzir do original grego, que, literalmente
poderia vir traduzida assim “Felizes os famintos e sedentos da justiça”. O
artigo “a” faria referência à Justiça do Reino (cf. Mt 5,20). E, sendo assim,
esta bem aventurança abre-se para uma segunda interpretação: 2) os
bem-aventurados por terem fome e sede da Justiça do Reino são saciados quando
colaboram para que esta Justiça (que é o agir e a vontade de Deus acontecendo
na história) se cumpra, ou seja, se propõem a fazer aquilo que o pai quer.
No
v.7, Jesus declara: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão
misericórdia”. Um tema muito querido por Mateus. A misericórdia na bíblia não
se trata de um sentimento, mas de uma atitude operativa em favor do outro. É
uma atitude relacionada à vida concreta. Na mentalidade do evangelista, o Pai,
no último juízo, se mostrará misericordioso com aqueles que viveram uma
existência pautada pelo amor o pela misericórdia para com o próximo. Quem tem o
coração cheio de misericórdia assimilou o modo de ser de Deus, cuja bondade é
eterna (SI 136 [135]). Assim, será também destinatário especial da misericórdia
do Pai (cf. VITÓRIO, 2017, p.43).
A
bem-aventurança relacionada à pureza de coração deve ser entendida
corretamente. São aqueles que são puros desde o íntimo do ser, para além das
aparências. Não são pessoas de fachada. Sem falsidades e sem dolo. São transparentes,
e essa condição os coloca lado-a-lado com Deus.
Os
“fazedores de paz (gr. eirehnopoioí)” empregam toda sua vida para construir o
Shalom (paz) neste mundo, propiciando um nível de vida humano e justo onde
todos desfrutem do bem-estar e da prosperidade. Serão chamados filhos de Deus
por construírem o mundo querido por Deus. São aqueles que colaboram para o
diálogo, a concórdia, a reconciliação entre as pessoas, costurando novamente os
fios corroídos e selando os laços afrouxados da relações humanas. Jesus diz
que, no último dia, estes serão reconhecidos solenemente por Deus como
autênticos filhos seus.
Nos
vv.10-12, Jesus diz diretamente aos discípulos (bem-aventurados vós...) que
estes são felizes por serem perseguidos por causa da Justiça, recebendo
injurias, sendo perseguidos e alvos de mentiras por causa dele. Os discípulos
deverão se alegrar e exultar, porque a recompensa nos céus será grande. Quem
assume viver a dinâmica do Reino, abraçando a causa de Jesus, atrai sobre si
insultos, perseguições, mentiras e maledicências. Todavia, os perseguidos por
causa da justiça não devem temer, tampouco recuar, pois já possuem a recompensa
mais valiosa: o Reino dos Céus. Essas situações difíceis são para eles motivos
de alegria e de exultação, contrariando as expectativas do mundo que os quer
tristes e derrotados. Sua sorte se compara à dos antigos profetas (cf. VITÓRIO,
2017, p.43).
As
bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e,
consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um
texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de
modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos
e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por
isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o
Evangelho apresenta.
O
discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e,
portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem
evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao
devocionismo ingênuo ou mesmo estéril; que faça pensar ou conceber a santidade,
a que todos somos chamados, como sendo algo de outro mundo ou só possível a
alguns “separados ou alienados” da realidade. A santidade vive-se na dinâmica
relacional e histórica, ou seja, através das relações fraternas restauradoras
da dignidade humana, e nesta realidade bem concreta. Por isso, é preciso ter
clareza que o programa de vida de Jesus, as bem aventuranças, não se trata de
um discurso alienante ou desvinculado da realidade concreta; tampouco um
conjunto de ditos moralizantes, mas como processo de seguimento e discipulado,
bem como balizas para se viver o projeto do Reino aberto e proposto a todos os
batizados e batizadas.
No
hoje de nossa vida e de nosso discipulado podemos nos considerar bem-aventurados
pelo Senhor? Estamos na multidão já conseguimos dar o passo do discipulado,
assumindo as Bem-aventuranças como nosso programa de vida? Nossas comunidades
se encontram inseridas nesse projeto de seguimento e discipulado ou concebem-se
santamente alienadas e separadas da realidade concreta e histórica onde é
chamada a viver e testemunhar a verdadeira santidade de vida? Ora, não vivemos
a aventura da santidade sozinhos. Somos chamados à santidade com os nossos
irmãos e com eles e através deles nos santificamos também. Será conseguimos
reconhecer os bem-aventurados de Hoje? Aprendamos também com eles.
Pe.
João Paulo Góes Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP.
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