Meditamos nesta noite santa o capítulo segundo do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,1-14). O evangelista nos informa
a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado (gr. Oikumênen) ordenado por Cesar
Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando
Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). O evangelista
possui uma visão ecumênica, ou melhor, inclusiva (universal, se preferir) na
transmissão de seu relato.
O terceiro
evangelista nos informa que José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade,
juntamente com Maria, desposada com ele. Talvez essa palavra “desposada” já não
cabe mais, pois no primeiro capitulo, Maria estava prometida em casamento a
José, então casada com ele. Na cidade de Belém ela dá a luz ao filho primogênito:
o Ya’hid (meu único), o filho por excelência, ao qual são reservados todos os
direitos jurídicos (v.5-6).
No v.7, o relato
diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui
temos um detalhe interessante: Lucas, desde o nascimento delimita “o que virá a
ser esse menino”, ou seja, a figura de Jesus que perpassará todo o evangelho. Mas
isso, na ordem da narrativa, pois devemos evitar, aqui, todo e qualquer
determinismo quanto à vida de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno
de sua liberdade.
O menino
encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para ele na sala da
hospedaria. Lucas que mostrar que Jesus está entre os excluídos. Imaginemos o
contexto social da época. As hospedarias eram espécies de grutas escavadas nas
rochas. Dentro delas haviam galerias onde era possível arrumar um cantinho para
ficar, enquanto que os animais ficavam próximos às manjedouras (nos cochos), na
estrebaria. Mas nem um lugar nessas
galerias havia para a família de Nazaré. Então, muito provavelmente, tenham
ficado numa estrebaria, ou numa gruta destinada aos pastores da região, como o resto da
narrativa sugere.
Lucas, após o
parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao
mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais
passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes
e desprezados porque conviviam com os animais, por isso se tornavam inaptos
para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como
observar as prescrições da pureza farisaica; para os fariseus e judeus de bem,
os pastores não eram gente!
Os pastores
recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso
lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. Interessante
notar a composição lucana sempre mostrando o contraste entre escuridão e
claridade, como que se Deus gostasse de se manifestar na escuridão (por
exemplo, a nuvem escura que desce sobre a tenda da aliança no deserto) ou na
luz da salvação predita pelo profeta Isaias em 9,1.
Os primeiros
cristãos viram no nascimento de Jesus uma realização do que foi predito pelo
Profeta Isaias no cap.9,1. Esta Luz aparece aqui aos pastores. Isso é muito
interessante: não é uma luz que atinge as pessoas, mas que as envolve. Ficando
eles envolvidos também por um certo temor religioso, o anjo, então, lhes exorta,
primeiramente, a não ter medo, porque o temor para com Deus não deve ser uma
barreira. Em segundo lugar, lhe dá o motivo: um evangelho de alegria para todo
o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor!
A palavra Salvador
(gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o
delegado, o enviado, o portador e executor de uma função especial, como o rei e
o sumo sacerdote. E isso, na Cidade de Davi.
O mensageiros
celestial lhes dá um sinal para encontra-lo: encontrarão o menino deitado numa
manjedoura, envolto em faixas! O sinal é encontrar, portanto, o menino colocado
no lugar da exclusão!
O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal grandioso. Não poderá ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Não está no esplendor do templo de Jerusalém. Não está entre os poderosos. O sinal é um menino envolto em faixas e colocado em meio a paus trançados – a mangedoura. Porque não havia lugar para eles na hospedaria (Lc 2,7). Na estrabaria encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feito Carne. Deus fez-se encontrar entre os pequenos e excluídos. Deus empodera os pequenos optando por eles.
Na manjedoura de paus trançados, prefigura-se o mistério da Cruz. Na cidade de Belém já se vislumbra o que virá ser esse menino. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida. Pão repartido, moído, despedaçado na Cruz. O sinal do menino envolto em faixas é sinal da inversão escatológica: Deus que inverte a lógica dos poderosos em favor dos pequenos.
Na narrativa,
imediatamente após o sinal dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr), aparece
uma multidão da corte celeste para anunciar o nascimento do messias: Glória a
Deus, no mais alto dos Céus, e paz na terra... Hino celestial muito poético!
Significa que o céu e a terra se unem num evento único: a Glória de Deus, que
produz Paz (shalom) na terra. Isto é um reflexo do Sl
84. A plena realização (plenitude) – Shalom. Significa que Glória de Deus, ao
encontrar-se entre a humanidade através da Carne do menino, está inaugurando o
tempo messiânico, o tempo do Shalom, do “debito quitado”, da Paz.
Entramos aqui numa
questão semântica: essas pessoas se agradam em Deus ou será que elas recebem o
agrado dele? Alguém poderia seguir o exemplo dos fariseus do tempo de Jesus,
que faziam de tudo para agradar a Deus. Entretanto, conhecendo a teologia de
Lucas, podemos nos inclinar para o seguinte significado: estes, aos quais os
anjos anunciam, são os que recebem o prazer ou agrado do coração e do olhar de
Deus. Equivaleria dizer que o coração
de Deus é oferecido às pessoas que tem um coração humilde. Assim, o agrado de
Deus é a salvação do ser humano.
Que a festa do
Natal do Senhor possa abrir as portas de nossos corações para a hospitalidade
para com o irmão e a irmã que não encontram lugar em nosso meio. Se quisermos ver o menino, deveremos lançar o
olhar para a estrebaria e para a manjedoura.
Ele está ali, com os
últimos e excluídos. Se quisermos ver a Glória de Deus, deveremos olhar para a
Carne assumida pelo Filho, e enxerga-lo envolto em faixas e colocado na
manjedoura. Olhar para a Carne do Menino de Belém, e para a sua opção pelos
últimos. Humano assim, só pode ser Deus.
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP
Feliz Natal
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