sábado, 28 de agosto de 2021

REFLEXÃO PARA O XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 7,1-23:


 

A liturgia dominical propõe para a nossa meditação o texto do capítulo sétimo do evangelho de Marcos, retomando, assim, a leitura da sua catequese evangélica proposta para este ciclo litúrgico. A pedagogia litúrgica é sugestiva, ainda que pareça provocar a quebra na sequência das leituras bíblicas. Através de quatro domingos ela nos colocou em contato com a catequese do Quarto Evangelho, com a leitura do capítulo sexto, o discurso acerca do pão da vida. Nele, Jesus se apresenta como pão vivo que tem a missão de alimentar a vida das pessoas. Na medida em que Ele e seu projeto se apresentam como proposta de vida, as lideranças religiosas de seu tempo, bem como a própria religiosidade, com suas tradições humanas, emergem como símbolo e força de morte, colocando-se contrárias ao querer de Deus que se manifesta através de Jesus. Feita esta consideração inicial, podemos adentrar no horizonte do texto de hoje.

O capítulo sétimo começa com uma informação importante oferecida pelo evangelista Marcos: “Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus” (v.1). Compreendendo as personagens: os fariseus são aquele grupo conhecedor das tradições antigas, dos preceitos e das leis do povo de Israel. Por observarem-nas acham-se superiores dos demais, e, por isso, vivem separados do restante da população. O mesmo vale para os mestres da lei, são versados nas Escrituras. Agora, atenção para o verbo que o evangelista Marcos utiliza para ilustrar a atitude desses dois grupos: é o verbo synago (gr. συνάγω), do qual deriva a palavra Sinagoga, que significa reunião. O evangelista quer ilustrar com esse verbo que a atitude e a intenção destes grupos em relação à Jesus têm suas raízes nas tradições e nos costumes cultivados no ambiente sinagogal. Mas qual a gravidade do fato que faz com que estes dois grupos se dirijam até Jesus?

O v.2 responde: “Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado”. Não se trata de uma questão higiene, mas de pureza ritual. E o evangelista continua explicando para seu leitor, que não é judeu, mas que se encontra em Roma pelos idos dos anos 65-70 d.C, os hábitos e os costumes judaicos relativos à pureza ritual (v.3-5). E acusação é a de que os discípulos de Jesus não se comportam segundo a tradição dos antigos. Para os hebreus, Moisés no monte Sinai havia recebido a Lei de Deus na sua forma escrita (os cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco) e oral (comentada), e esta seria mais tarde culminaria no famoso Talmud, o conjunto das tradições antigas do povo de Israel. Detalhe: no livro do Levítico, encontramos o capítulo onze, o qual trata, do começo ao fim, do que é puro e do que é impuro.

De 6-8, Jesus responde aos fariseus e aos mestres da Lei, os teólogos oficiais da sociedade de seu tempo: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. Os líderes do povo são chamados por Jesus de hipócritas. O termo remete às máscaras que os atores gregos usavam nas peças de teatro. Ele está denunciando que a religiosidade e a forma em que viviam eram pura encenação. A religiosidade estava descomprometida da vida do povo, se tornou um gesto exterior e não mais uma atitude que brota da interioridade, é o que Jesus quer dizer ao tomar o profeta Isaias emprestado no tocante ao coração. O coração é a sede das escolhas e das opções, bem como dos pensamentos do homem, conforme a antropologia bíblica. Ele desempenha a mesma função da consciência para nós ocidentais. Ou seja, a prática religiosa está distante do coração, lugar de onde Deus pode falar e ser escutado. Logo, está distante do querer de Deus. E o pior: acabam elevando tradições humanas ao alto grau de vontade divina. Esta é a hipocrisia denunciada por Jesus. Os chefes do povo acabaram por subverter o querer e a vontade de Deus. Pretendendo-se legisladores sobre o que é puro e o que não é.

A partir do v.14, Jesus ressignifica a questão para seus ouvintes. Com dois verbos no imperativo, “escutai” e “compreendei”, ele pretende chamar a atenção dos discípulos para um ensinamento importante: “o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”. Novamente Jesus insiste na temática da interioridade, que acena para o coração como sede do pensamento e da ação; dali brotam as ações que tornam a pessoa impura. São elencadas doze atitudes, e todas elas fora do campo religioso, cultual, ou seja, daquele âmbito permeado pelas questões de pureza e impureza. 

São doze atitudes ligadas ao campo das relações humanas, isto é, relacionadas à possibilidade de ruptura com o mandamento do amor ao próximo. O número doze na tradição bíblica simboliza totalidade. O que Jesus quer ressignificar para seus discípulos e que o evangelista Marcos transmite para sua comunidade e para nós é que todas as atitudes que desarmonizam a relação com o outro se tornam oportunidade para afastamento do querer e do projeto de Deus. Isto é o que torna o ser humano impuro.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 21 de agosto de 2021

REFLEXÃO PARA O XXI DOMINGO DO TEMPO COMUM – Jo 6,60-69:

 


O texto que hoje meditamos situa-se no final do capítulo sexto do evangelho segundo João. Para compreendermos esta narrativa convém fazer uma retrospectiva das temáticas apresentadas até aqui, cuja intenção foi a de levar os discípulos ouvintes, através do sinal da condivisão dos pães, a uma decisão em relação a Jesus. Pudemos contemplar o gesto realizado por ele, o qual acenava para a entrega de sua vida, tornando-se pão para os outros, simbolizada no dom dos pães (cf. Jo 6,1-15). Após o sinal realizado, a multidão, maravilhada, quis levá-lo para proclama-lo rei, para, assim, ter pão com fartura e não morrerem de fome. Jesus, não querendo que seu ministério fosse confundido, retira-se para ou outro lado do mar de Tiberíades.

A multidão segue Jesus até a outra margem e o encontra na sinagoga de Cafarnaum. Lá, ele percebe que deverá catequizar aquela gente, bem como os discípulos acerca do sentido do sinal realizado (cf. 6,24-35). E começa a ensinar lhes a respeito do Pão (símbolo para a sabedoria de Deus) que desceu do céu. Mais adiante, ele identificará este Pão à sua história existencial, a sua carne para a vida do mundo. É possível entender este capítulo sexto como sendo dividido em duas partes: um discurso de Jesus, repleto da linguagem sapiencial, e um discurso eucarístico, fruto da interpretação da comunidade. Ora, o que Jesus propõe ao dizer que é o Pão da Vida, nós o celebramos quando nos alimentamos com o pão eucarístico, ponto de referência de nossa comunidade.

Para compreendermos os versículos finais deste capítulo sexto é importante olhar para o contexto da comunidade de João, e operarmos aquela técnica já conhecida por nós como “fusão de horizontes”, a saber, o horizonte do tempo de Jesus e o horizonte do tempo da comunidade joanina (que se prolonga nas comunidades ao longo da história). A comunidade do Quarto Evangelho, naqueles anos 90 sofria forte perseguição das autoridades Judaicas, as quais reformulavam o judaísmo daquele período, chegando ao extremo de expulsar das sinagogas todos aqueles que não aderissem às mudanças impostas. Um destes grupos eram os dos seguidores de Jesus. A sinagoga representava para eles uma certa segurança social pois asseguravam-lhes a identidade étnica – o pertencimento a um povo. Ao serem expulsos das sinagogas, os seguidores de Jesus ficavam sem qualquer referência social. Nesse contexto, muitos dos que se diziam seguidores do Nazareno começaram a enfraquecer na fé, a ponto de abandona-la, deixando também a vida de comunidade. Assim, João faz um raio-x das comunidades cristãs naquele período, inclusive da sua própria, as quais se encontravam-se arrefecidas na vida de fé e em crise. Este contexto é importante para compreender o texto a seguir. Ainda que optemos por pinçar alguns versículos para elucidá-los bem e retirar-lhes a mensagem central.

“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (v.60). O evangelista emprega o adjetivo grego sklerós (gr. Σκληρός), que significa duro, difícil, insuportável; mas também inadmissível, ofensivo e violento. Os discípulos se sentiam incapacitados para continuar no seguimento, uma vez que o anúncio e o modo de vida de Jesus pareciam insuportáveis. Mas porque a palavra de Jesus é considerada dura por eles? Porque exige e se espera um comprometimento para com ela: diante dela, é preciso tomar uma decisão firme; é preciso crescer na consciência de tornar-se alimento para os outros, assumindo as mesmas opções de Jesus e suas consequências. Até aquele momento, Jesus sofrera oposição por parte das autoridades do povo, e certa incompreensão da multidão. Nunca dos discípulos. O evangelista informa, ainda, que eles estão murmurando. A murmuração remete ao mesmo pecado do povo no AT, e, de quebra, agindo da mesma forma que as autoridades do povo agiram ao escutar o ensino de Jesus. O verbo murmurar, como emprega o evangelista expressa uma revolta contra Deus; é a negação da fé.

Os que esperavam um rei e messias que lhes resolvesse os problemas que eles mesmos poderiam resolver, não conseguem aceitar a imagem de um Filho do Homem que revelará Deus através da doação de si e da própria carne. Por isso, nos vv.64-65, Jesus diz que eles são ainda “carne”, ou seja, humanidade fechada sobre si. Eles precisam se converter para compreender a missão de Jesus. E compreendê-lo é missão e obra do Espírito de Deus. Em contraposição a carne (humanidade fechada em si), Jesus diz que suas palavras são Espírito e Vida. Espírito indica a realidade de Deus; e vida acena para o Dom de Deus. Nesse sentido, a “carne” (no sentido de autossuficiência humana), não serve para entender a palavra de Jesus, nem para a transformação da gente.

Jesus sabia que nem todos os que se diziam discípulos aderiam concretamente à sua Palavra, nem acreditavam nele. No v.66 o evangelista descreve a atitude e opção contrária ao projeto de Jesus: “A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele”. A palavra de Jesus é uma “espada de dois gumes” (Is 49,2; Ap 19,15), que opera um corte radical entre a fé e a incredulidade. Entre os que se dizem discípulos, muitos voltam as costas para Jesus. A desistência entre os discípulos aconteceu porque nem todos estavam dispostos a aderir com amor e fidelidade aos compromissos do seguimento e do discipulado. Um seguimento superficial não se sustenta diante das “palavras duras” a serem assimiladas e vividas pelos discípulos. Por isso, muitos desistiram de continuar o seguimento.

Ora, a novidade trazida por Jesus também traz em si a dureza (a firmeza, a constância e a fidelidade) da decisão em vista de sua Pessoa. Mas nem diante da desistência daqueles discípulos, Jesus mudou seu projeto. Ele não é um líder frouxo, que, com medo ou com vontade de agradar, muda os planos só para não perder fã-clube. Tentação muito presente em nossas comunidades eclesiais, bem como nos seus líderes. Jesus, ao contrário, permanece fiel ao seu projeto, que é a missão confiada pelo Pai.

Diante da recusa e do abandono dos outros que se diziam discípulos, Jesus dirige o olhar e a interrogação aos doze: “Vós também vos quereis ir embora?” (v. 67). Com essa pergunta, Jesus mostra seu respeito pela liberdade de cada pessoa e, sobretudo, afirma as convicções do seu projeto: é mais fácil ficar sem discípulos do que mudar o seu programa. Suas exigências são inegociáveis. Em uma sociedade dominada pelo egoísmo, injustiça, privação de liberdade, exclusão e hipocrisia, as “palavras duras” são necessárias para desestabilizar os sistemas e, assim, iniciar a construção de um mundo novo repleto de amor, justiça, fraternidade e paz (cf. CORNÉLIO, F, Homilia Dominical).

Pedro, em nome de todos, responde com uma genuína profissão de fé: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus” (v.68-69). A profissão de fé é autêntica, nos mostram os verbos, que, no texto grego estão no tempo perfeito, com efeito no presente. É como se ele, em nome da comunidade dissesse: “nós temos fé firme e conhecimento seguro!”. Em outras palavras, é um modo de mostrar que a opção da comunidade em favor de Jesus é genuína. Os autênticos discípulos optaram pelo projeto de Jesus e conseguiram sair da superfície do sinal realizado no começo. As palavras de Jesus contêm vida eterna, as únicas que podem restituir vida em abundância e esperança para todos, sobretudo os mais necessitados. Quem o reconhece como o “Santo de Deus” não se deixa escandalizar pelas suas declarações como pão descido do céu; pelo contrário, nessas palavras encontra forças para crescer na fé.

Agora, cabe a decisão única e pessoal do discípulo. Aderir às palavras de Jesus com firmeza e fidelidade (a dureza ressignificada). Ou fazer o caminho contrário, assumindo aquela dureza de coração (a dureza negativa, que fecha e isola), contrária ao projeto de Deus em Jesus. Quem somos, a partir deste texto?

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 14 de agosto de 2021

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA - Lc 1,39-56:


 

A Igreja celebra neste final de semana a Solenidade da Assunção de Maria, Mãe do Senhor, aos céus. Um dogma de fé relacionado, numa primeira análise à pessoa de Maria. Todavia, ao lançarmos um olhar para o fundamento do dogma – da verdade de fé proclamada e celebrada, acima de tudo – os dogmas marianos estão radicalmente ligados e fundamentados na fé cristológica. Dito de outra maneira, só se pode dizer alguma coisa a respeito de Maria, porque, antes, e, primeiramente, foi dito sobre a pessoa de Jesus. Aqui urge corrigir a expressão cunhada pela mariologia antiga, “Sobre Maria nunca se poderá falar suficientemente (De Maria Nunquam Satis)”. Diz-se suficientemente sobre ela porque foi afirmado primeira e suficientemente acerca de Jesus. O dogma mariano da assunção reafirma a índole escatológica da Igreja peregrina, da qual Maria é imagem – ícone. Ou seja, ao declarar e professar que Maria foi acolhida na Glória de Deus, a Igreja confessa sua fé na ressurreição. A fé na eternidade junto de Deus

A proclamação de fé acerca da assunção de Maria aos céus reafirma e reflete o futuro e fim escatológico que está reservado para todo o crente: a vida definitiva e plena em Deus. Dizer que Maria foi assunta aos céus significa dizer que sua vida e história foram assumidas por Deus, em seu projeto salvador e redentor. Mas só é possível dizer que Deus assumiu a vida inteira de Maria porque ela assumiu viver segundo o projeto de Deus, enquanto verdadeira discípula do Reino. No Evangelho de Lucas, ela é o exemplo que deve ser assumido por todos aqueles que querem ser discípulos de Jesus e viver segundo a ética do Reino. O evangelista faz questão de tipificar em Maria as atitudes fundamentais que a pessoa deve possuir para se tornar discípulo e discípula do Reino: ouvir a Palavra de Deus, acolhê-la (rumina-la) e frutifica-la através da vida concreta, em amor e serviço aos outros. Estas características estão bem ilustradas na cena da Anunciação do Anjo à Maria. Esta narrativa é que nos permite compreender o evangelho proposto para a Solenidade da Assunção de Nossa Senhora, Lc 1,39-56.

Na cena anterior (Lc 1,25-38), Maria, ao encarnar em si Palavra geradora de vida, tornar-se serva desta mesma Palavra e parte apressadamente para a região montanhosa da Judéia, num subúrbio, a fim de dispensar sua assistência a sua parenta, Isabel, de idade avançada e gravida. A esterilidade era uma vergonha naquele tempo. Maria decide-se por viver a Palavra de Deus colocando-se ao lado dos envergonhados e humilhados. Assume, portanto, a Palavra libertadora e geradora de vida sendo instrumento de libertação. Isso posto, podemos adentrar no horizonte do texto de hoje.

Na casa de Zacarias, ocorre o encontro entre as duas mulheres. Maria, por primeiro saúda Isabel (mas aqui fica-nos obscura a saudação, o que não quer dizer que não possamos intuir o que se tenha dito: provavelmente tenha desejado a Paz – Shalom). Todavia, para nós, interessa que o Fruto do Espírito, Jesus, saúda o sinal do Espírito, João. Saúda-o com a paz e a certeza de que o tempo messiânico havia chegado (v.39-41).

Então, Isabel profere uma benção à Maria: uma Berakah. Precisamos compreender que a benção bíblica é sempre, e, em primeiro lugar, uma “bendizência (louvor)” a Deus por aquilo que ele fez. Não se trata de um ato mágico. A fé judaico-cristã não admite qualquer compreensão ou concepção mágica nas mediações religiosas. Isabel bendiz a Deus pelo acontecido em Maria e com ela mesma. A mãe de João reconhece, pelo Espírito, Aquele que está presente no seio de Maria. O estremecimento de João desde o seio de sua Mãe, indica que desde o ventre materno ele já profetiza a vinda do Senhor. Já O sente, e manifesta Sua presença (v.42).

O evangelista faz aqui um midrash – uma interpretação – do texto de 1Cr 15,28 e 2Cr 5,13, onde o povo aclama a presença de Deus na Arca da Aliança. Também Davi, quando da visita da Arca em sua casa, exclama: “como poderá vir a mim a Arca do Senhor? (cf 2Sm 6,9)”, acolhendo-a, depois, com jubilo e danças. Estes textos servem de pano de fundo para esta narrativa da visita a Isabel. Maria é, agora, a Arca que traz a presença salvífica do Senhor, em meio ao povo. Então, a mãe de João Batista profere uma bem-aventurança à Maria: “bem-aventurada aquela que acreditou”. O acento, aqui, recai sobre o verbo “Acreditar (gr. πιστεύω/pisteûo)”. É mulher feliz (bem-aventurada) porque acreditou na Palavra que Deus lhe dirigiu.  

Então Maria responde à Isabel, como que em coro com ela, pronunciando um canto de ação de Graças, composto por muitos versículos dos salmos, e de outros textos do AT. Mas logo passa a lembrar o cântico de Ana, mãe de Samuel, que também não podia ter filhos. Maria assume em si todos os filhos frutos da promessa da graça de Deus, unindo seu cântico de agradecimento com aquele de Ana (1Sm 2). Deus levanta os humilhados, porque Maria é uma humilhada, no sentido de que ela é uma menina ainda; que não tinha, até aquele momento, um lugar na sociedade. Lembremos que era ela apenas desposada. Se alguém ficasse sabendo de que ela estava grávida, ainda prometida em casamento, isso seria uma grande humilhação e vergonha.

A melhor tradução para esse versículo seria: “Porque olhou para a humilhação (gr. ταπείνωσις / tapeînosis) de sua serva”. Maria não é humilde naquele sentido de uma virtude de que tanto podemos nos gabar, mas a humilhada, uma Anih, junto com os Anawim, os pobres, humilhados e oprimidos, que recorrem a Deus por socorro. Portanto, o Deus de Israel é aquele que levanta da humilhação os humilhados.

O v.50 mostra o tema da misericórdia, o qual é muito precioso para Lucas. Ele se faz presente em todo o contexto do evangelho. No seu cântico, Maria se apropria de toda a história de Israel (v.51). Ela canta, anunciando profeticamente as História da tradição de Israel, no intuito de mostrar a atuação do Todo-poderoso – El Shaday – que fez grandes coisas. Todas estas tradições histórico-salvíficas ressoam no Magnificat de Maria.

Os v.52-53 são muito interessantes, uma vez que acenam para a chamada inversão escatológica que Deus opera na história; a subversão dos valores e das categorias conforme a lógica do Reino. Aqui estão dois versículos que contam essa inversão, “Deus derruba dos tronos os poderosos e eleva os humilhados, enchendo de bens os famintos e despedindo de mãos vazias os ricos”; ou seja, os valores dos poderosos, segundo a carne, não valem mais no tempo do Espírito. Os poderosos perdem seu poder, os humilhados são exaltados. Maria termina cantando a realização das promessas ao servo Israel (Jacó e todo povo). A serva Maria identifica-se com o servo Israel, ou seja, o povo que está à disposição de Deus.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança: “Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece em 2Sm 6,11: “A Arca de YHWH ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e YHWH abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João Batista.

Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há norma nem preceito, há apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O tempo de permanência de quem irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho, como fez Maria e assim devem fazer os discípulos de todas as épocas, é o suficiente para ressignificar a vida e ler os acontecimentos do presente à luz de tudo o que Deus tem realizado ao longo da história. Isto significa assumir o projeto amoroso de Deus, o que resulta ser por Deus, em Jesus, assumido para a vida eterna que já começa a ser vivida nesta história.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

REFLEXÃO PARA O XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Jo 6,41-51:


 

A leitura do capítulo sexto do evangelho de Joao continua a iluminar a liturgia dominical deste décimo oitavo domingo do tempo comum, e, com isso, o processo da decisão/opção do discípulo do Reino pró ou contra Jesus. O Sinal realizado por Ele, a condivisão dos pães e dos peixes, havia despertado interesse (ainda que no nível da materialidade do sinal, ao saciar a fome) na multidão, mas não ainda uma decisão autêntica por parte dela. Procuram a Jesus porque ficaram satisfeitos. Não porque queriam estabelecer uma relação pessoal com Ele.

O gesto da condivisão simbolizava a partilha de sua vida. Vida partilhada através do Pão (da sabedoria divina) que vêm do céu. Mesmo assim, seus ouvintes, presos as tradições e sistemas antigos, não conseguem assimilar a novidade trazida por Jesus. Mas, como um mestre paciente, continua seu ensinamento na sinagoga de Cafarnaum.

Descontentamento! No longo discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, após a condivisão dos pães, Ele começa a descontentar as pessoas. Descontentou a multidão, que queria proclamá-lo rei; descontenta os chefes religiosos (como veremos na narrativa de hoje); e, por fim, descontentará, também, os seus discípulos. Alguns o abandonarão imediatamente.

No v.41, João nos informa que os Judeus começaram a murmurar. Por “Judeus” se deve sempre entender que o evangelista se refere às autoridades e as lideranças religiosas do povo. Elas murmuram. O ato da murmuração deve remeter o leitor-discípulo ao tempo do Livro do Êxodo, onde o povo também murmurava contra Deus e Moisés no deserto. Mas o motivo da murmuração residia no dito de Jesus, “Eu sou o Pão que desceu do céu”. Por que eles murmuram? Primeiramente, porquê na autoproclamação de Jesus, ele se apresenta com a solene identificação “Eu Sou”, formula da identificação do Nome divino, no Antigo Testamento.

A mentalidade e a instituição religiosa do tempo de Jesus têm sua origem no distanciamento entre Deus e o homem. No meio desta distância situa-se o poder religioso como mediação entre o humano e o divino. Jesus veio para eliminar esta distância! Trouxe Deus até o homem. Algo intolerável para os que se serviam do poder religioso.

Para desacreditar a Jesus, eles começam a atacá-lo desde sua origem: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?” (v.42). É fácil compreender o que eles pretendem insinuar: “que um homem reivindique para si a identidade divina é inaceitável! Inadmissível! É uma blasfêmia!”. Ora, para aquelas autoridades religiosas, ciosas do poder e fechadas para a novidade trazida por Jesus, o projeto de Deus para a humanidade acaba sendo uma blasfêmia que merece morte.

Jesus censura a murmuração, pois para os hebreus no deserto esta atitude teve consequências trágicas (Ex 16,2.7; Nm 14,2.27). A atitude da murmuração acaba sendo uma contestação e uma rejeição à graça e ao poder de Deus, e, nesse sentido, um pecado. É a atitude do rebelde, do resistente e do fechado em si, que rejeita a novidade provinda de Deus. O murmúrio das autoridades religiosas contra Jesus é, portanto, a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré.

Só o verdadeiro fiel pode entender que a origem humana de Jesus não contradiz sua origem e missão divinas. Mas, não adianta explicar isso a quem não quer acreditar. Ora, Jesus não está falando com crianças ou pessoas sem instrução. Seus ouvintes são as autoridades e lideranças religiosas. São os especialistas nos assuntos sagrados. Acontece que eles já fizeram sua opção contra Jesus. Estão decididos a não aceitar e compreender.

No v.45, Jesus continua: “Está escrito nos Profetas: “Todos serão discípulos de Deus. Ora, todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído, vem a mim”. Mas só se pode tornar discípulo de Deus através de seu revelador. Ninguém (senão Ele) viu Deus (cf. 1,18). Só Jesus, que vem de junto do Pai, é que o viu e pode dá-lo a conhecer (cf. 3,14). Conhecer o Pai por intermédio de Jesus implica seguir os passos de Jesus, seu caminho e procedimento. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. O conhecimento que se adquire sendo discípulo de Deus, por mediação de Jesus, não é um conhecimento teórico, porém, prático. (cf. 14,6-9). O que ele quer dizer com “todos serão discípulos de Deus”, é que ninguém mais ensinará uma lei, mas um modo de vida pautado no Amor.

Com um solene “amém, amém eu vos digo (Em verdade, em verdade...)”, que indica que o que virá a seguir resulta num ensinamento importante, Ele declara: “quem crê, possui a vida eterna”. Todavia, o texto grego não traz o artigo “a”. A melhor tradução seria “Quem crê possui Vida eterna”. Crer (gr. pistêuo), aqui, significa deixar-se conduzir pelo Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Aquele que adere ao Evangelho de Jesus possui vida eterna, a qual não é uma vida no além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. Essa, a vida eterna é a vida conduzida conforme a de Jesus, a qual nem a morte é capaz de destruí-la.

“Eu sou o pão da vida” (v.48), novamente, com a fórmula de revelação do nome divino, Jesus faz uma autoproclamação. A qual gera mais um descontentamento naqueles que o escutam, através do dito contido no v.49, “Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram”. Esta declaração é explosiva, porque através dela, Jesus afirma a superação do Êxodo e de todo o sistema religioso de sua época. Ora, Jesus poderia ter dito “os nossos pais”, mas prefere polemizar: “os vossos pais comeram o maná e morreram”. Jesus não segue a sombra daqueles pais, mas vive e segue a vontade de Seu Pai, por isso toma distância das lideranças do povo. Jesus supera, com sua práxis de vida, as mediações e instituições judaicas. Todos aqueles que seguiram Moisés, no deserto e no Êxodo, estão mortos. Nem mesmo Moisés entrou na terra prometida.

Então, Jesus diz: “Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá” (v.50). Comer, na tradição bíblica, não consiste somente num ato ou necessidade biológica-física, mas num processo de assimilação. Quem assimila (come) o ensinamento de Jesus (simbolizada pelo Pão, pois este sempre remete à Sabedoria divina), suas escolhas, seu modo de ser e viver, eterniza sua existência e faz acontecer um dinamismo de amor que faz com que sua vida seja indestrutível, de modo que ela se torna lugar para a vida de Jesus. Quem come do Pão de Jesus, tem a vocação e o compromisso ético de fazer-se pão para a vida dos irmãos e das irmãs.

O Quarto Evangelho é todo tecido em símbolo e imagens riquíssimas. Na conclusão deste discurso de Jesus, encontramos, no v.51 outro ensinamento: “E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo”. É próprio do autor do evangelho joanino trabalhar com o termo “carne (Sarx)”, que remete àquilo que é de mais precário e finito na constituição do ser humano. Indica o homem na sua debilidade e caducidade. Jesus quer faze-los despertar para uma novidade profunda: não existe dom de Deus que não passe pela humanidade, quanto mais humano, quanto mais sensível as necessidade e os sofrimentos dos outros; mais se manifesta o divino no ser humano.

Em 6,51 não se trata apenas do pão da sabedoria que o Pai dá, por meio do ensinamento de Jesus, mas do pão que Jesus dá: sua “carne”, a vida humana, da qual ele vai despojar-se para que o mundo tenha Vida. Antes, o pão do qual Jesus falava significava sua mensagem a respeito do Pai. Agora é focalizado seu ato central, o dom de sua vida (carne e sangue) na cruz. Acolher Jesus como pão descido do céu significa aderir a ele, reconhecendo-o como único mediador e revelador do Pai. Recebe-lo como alimento perene consiste em assimilar o seu Evangelho como único programa de vida a ser vivenciado.

Todavia, é ainda e sempre, uma decisão a tomar. Uma opção por fazer. Uma vida e obra a se assimilar.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.