A leitura do capítulo sexto do evangelho de Joao continua a iluminar a liturgia dominical deste décimo oitavo domingo do tempo comum, e, com isso, o processo da decisão/opção do discípulo do Reino pró ou contra Jesus. O Sinal realizado por Ele, a condivisão dos pães e dos peixes, havia despertado interesse (ainda que no nível da materialidade do sinal, ao saciar a fome) na multidão, mas não ainda uma decisão autêntica por parte dela. Procuram a Jesus porque ficaram satisfeitos. Não porque queriam estabelecer uma relação pessoal com Ele.
O gesto da condivisão simbolizava a partilha de sua vida. Vida partilhada através do Pão (da sabedoria divina) que vêm do céu. Mesmo assim, seus ouvintes, presos as tradições e sistemas antigos, não conseguem assimilar a novidade trazida por Jesus. Mas, como um mestre paciente, continua seu ensinamento na sinagoga de Cafarnaum.
Descontentamento! No longo discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, após a condivisão dos pães, Ele começa a descontentar as pessoas. Descontentou a multidão, que queria proclamá-lo rei; descontenta os chefes religiosos (como veremos na narrativa de hoje); e, por fim, descontentará, também, os seus discípulos. Alguns o abandonarão imediatamente.
No v.41, João nos informa que os Judeus começaram a murmurar. Por “Judeus” se deve sempre entender que o evangelista se refere às autoridades e as lideranças religiosas do povo. Elas murmuram. O ato da murmuração deve remeter o leitor-discípulo ao tempo do Livro do Êxodo, onde o povo também murmurava contra Deus e Moisés no deserto. Mas o motivo da murmuração residia no dito de Jesus, “Eu sou o Pão que desceu do céu”. Por que eles murmuram? Primeiramente, porquê na autoproclamação de Jesus, ele se apresenta com a solene identificação “Eu Sou”, formula da identificação do Nome divino, no Antigo Testamento.
A mentalidade e a instituição religiosa do tempo de Jesus têm sua origem no distanciamento entre Deus e o homem. No meio desta distância situa-se o poder religioso como mediação entre o humano e o divino. Jesus veio para eliminar esta distância! Trouxe Deus até o homem. Algo intolerável para os que se serviam do poder religioso.
Para desacreditar a Jesus, eles começam a atacá-lo desde sua origem: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?” (v.42). É fácil compreender o que eles pretendem insinuar: “que um homem reivindique para si a identidade divina é inaceitável! Inadmissível! É uma blasfêmia!”. Ora, para aquelas autoridades religiosas, ciosas do poder e fechadas para a novidade trazida por Jesus, o projeto de Deus para a humanidade acaba sendo uma blasfêmia que merece morte.
Jesus censura a murmuração, pois para os hebreus no deserto esta atitude teve consequências trágicas (Ex 16,2.7; Nm 14,2.27). A atitude da murmuração acaba sendo uma contestação e uma rejeição à graça e ao poder de Deus, e, nesse sentido, um pecado. É a atitude do rebelde, do resistente e do fechado em si, que rejeita a novidade provinda de Deus. O murmúrio das autoridades religiosas contra Jesus é, portanto, a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré.
Só o verdadeiro fiel pode entender que a origem humana de Jesus não contradiz sua origem e missão divinas. Mas, não adianta explicar isso a quem não quer acreditar. Ora, Jesus não está falando com crianças ou pessoas sem instrução. Seus ouvintes são as autoridades e lideranças religiosas. São os especialistas nos assuntos sagrados. Acontece que eles já fizeram sua opção contra Jesus. Estão decididos a não aceitar e compreender.
No v.45, Jesus continua: “Está escrito nos Profetas: “Todos serão discípulos de Deus. Ora, todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído, vem a mim”. Mas só se pode tornar discípulo de Deus através de seu revelador. Ninguém (senão Ele) viu Deus (cf. 1,18). Só Jesus, que vem de junto do Pai, é que o viu e pode dá-lo a conhecer (cf. 3,14). Conhecer o Pai por intermédio de Jesus implica seguir os passos de Jesus, seu caminho e procedimento. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. O conhecimento que se adquire sendo discípulo de Deus, por mediação de Jesus, não é um conhecimento teórico, porém, prático. (cf. 14,6-9). O que ele quer dizer com “todos serão discípulos de Deus”, é que ninguém mais ensinará uma lei, mas um modo de vida pautado no Amor.
Com um solene “amém, amém eu vos digo (Em verdade, em verdade...)”, que indica que o que virá a seguir resulta num ensinamento importante, Ele declara: “quem crê, possui a vida eterna”. Todavia, o texto grego não traz o artigo “a”. A melhor tradução seria “Quem crê possui Vida eterna”. Crer (gr. pistêuo), aqui, significa deixar-se conduzir pelo Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Aquele que adere ao Evangelho de Jesus possui vida eterna, a qual não é uma vida no além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. Essa, a vida eterna é a vida conduzida conforme a de Jesus, a qual nem a morte é capaz de destruí-la.
“Eu sou o pão da vida” (v.48), novamente, com a fórmula de revelação do nome divino, Jesus faz uma autoproclamação. A qual gera mais um descontentamento naqueles que o escutam, através do dito contido no v.49, “Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram”. Esta declaração é explosiva, porque através dela, Jesus afirma a superação do Êxodo e de todo o sistema religioso de sua época. Ora, Jesus poderia ter dito “os nossos pais”, mas prefere polemizar: “os vossos pais comeram o maná e morreram”. Jesus não segue a sombra daqueles pais, mas vive e segue a vontade de Seu Pai, por isso toma distância das lideranças do povo. Jesus supera, com sua práxis de vida, as mediações e instituições judaicas. Todos aqueles que seguiram Moisés, no deserto e no Êxodo, estão mortos. Nem mesmo Moisés entrou na terra prometida.
Então, Jesus diz: “Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá” (v.50). Comer, na tradição bíblica, não consiste somente num ato ou necessidade biológica-física, mas num processo de assimilação. Quem assimila (come) o ensinamento de Jesus (simbolizada pelo Pão, pois este sempre remete à Sabedoria divina), suas escolhas, seu modo de ser e viver, eterniza sua existência e faz acontecer um dinamismo de amor que faz com que sua vida seja indestrutível, de modo que ela se torna lugar para a vida de Jesus. Quem come do Pão de Jesus, tem a vocação e o compromisso ético de fazer-se pão para a vida dos irmãos e das irmãs.
O Quarto Evangelho é todo tecido em símbolo e imagens riquíssimas. Na conclusão deste discurso de Jesus, encontramos, no v.51 outro ensinamento: “E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo”. É próprio do autor do evangelho joanino trabalhar com o termo “carne (Sarx)”, que remete àquilo que é de mais precário e finito na constituição do ser humano. Indica o homem na sua debilidade e caducidade. Jesus quer faze-los despertar para uma novidade profunda: não existe dom de Deus que não passe pela humanidade, quanto mais humano, quanto mais sensível as necessidade e os sofrimentos dos outros; mais se manifesta o divino no ser humano.
Em 6,51 não se trata apenas do pão da sabedoria que o Pai dá, por meio do ensinamento de Jesus, mas do pão que Jesus dá: sua “carne”, a vida humana, da qual ele vai despojar-se para que o mundo tenha Vida. Antes, o pão do qual Jesus falava significava sua mensagem a respeito do Pai. Agora é focalizado seu ato central, o dom de sua vida (carne e sangue) na cruz. Acolher Jesus como pão descido do céu significa aderir a ele, reconhecendo-o como único mediador e revelador do Pai. Recebe-lo como alimento perene consiste em assimilar o seu Evangelho como único programa de vida a ser vivenciado.
Todavia, é ainda e sempre, uma
decisão a tomar. Uma opção por fazer. Uma vida e obra a se assimilar.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu,
Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.
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