O texto para a liturgia deste décimo oitavo domingo do tempo comum, é Jo 6,24-35. Ele situa-se logo após a narrativa da travessia do mar (Jo 6,16-23), que na verdade pode muito bem ser uma continuidade do relato do sinal da condivisão dos pães, narrado na semana passada. Jesus realizou o sinal profético da partilha, o qual prefigura a doação de sua própria vida através da entrega na Cruz. Todavia, a partilha provocada por Ele deve ser assimilada pelos discípulos, a fim de que possam gerir e resolver a partir de dentro da comunidade os problemas e os obstáculos que impendem que a vida plena aconteça. É o que pretende sugerir também o relato evangélico do domingo passado, ao apresentar o menininho que traz consigo cinco pães e dois peixes e os apresenta a Jesus. Assim que Ele realizou o sinal, a multidão decide-se por levar e proclamá-lo rei. Consciente de que isso pode ser prejudicial para sua missão, se retira para o monte com seus discípulos para a oração.
O narrador informa que, a multidão, maravilhada com o gesto de Jesus, acorre até ele, no outro lado do lago, na cidade de Cafarnaum. Eles, desconhecendo a manifestação de Jesus atravessando o lago, andando sobre as águas (Jo 6,16-22), perguntam como Jesus chegara ali. A multidão entabula com ele um diálogo, pela primeira vez ao interno do capítulo. O termo rabi (hbr. Mestre) usado por ela coloca o leitor-discípulo, para o qual se destina o texto, na atmosfera de um ensinamento profundo. Sob o mesmo véu de mistério da pergunta, Jesus lhes responde de maneira enigmática: “Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (v.26). Jesus denuncia-lhes o erro: procuram-no porque encheram a barriga, ficaram satisfeitos e queriam mais. Ou seja, não o buscam motivados por quem Ele é, mas pelo que ele pode fazer. Isto é um erro: significa permanecer na superfície do sinal, sem sequer captar o seu sentido profundo. Provavelmente, o evangelista João deva estar chamando a atenção da sua comunidade também. Ela deve sentir-se tentada a viver a relação com Deus em Jesus – que chamamos fé – somente a partir dos sinais grandiosos e espetaculares que o mesmo Jesus realizou. A comunidade não pode cometer este erro.
E, continuando, Jesus lhes diz “Esforçai-vos não pelo alimento (lit. pão) que se perde, mas pelo alimento (pão) que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois este é quem o Pai marcou com seu selo” (v.27). O Filho do Homem é, na literatura apocalíptica e profética, o grande autorizado e enviado de Deus para estabelecer o domínio e o juízo em Seu nome. O selo é o atestado de autenticidade e autoridade conferido por Deus a este Filho do Homem, e o Sinal do Pão é a confirmação e a garantia da autoridade que ele recebeu. O pão que nutre para a vida eterna, de fato, só pode ser dado por Jesus, porque é ele mesmo na inteireza do seu ser.
A fala de Jesus gera, na multidão, uma inquietação, que a leva a refletir. E perguntam, “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” (v. 28). Típica pergunta da mentalidade judaica da época habituada e condicionada ao fazer, mais do que ser. Esta pergunta é reveladora da concepção religiosa da época, incrustada e cristalizada no coração até mesmo do povo simples: a teologia da retribuição, a qual apregoava (inclusive hoje encontramos discursos assim nos meios cristãos), que para receber um benefício de Deus, o fiel deveria fazer algo que o agradasse. A referida teologia se expressava través da seguinte lógica: Se a pessoa fosse fiel aos preceitos divinos receberia, então, as bênçãos divinas. Do contrário, maldição e castigo. Diante desta mentalidade equivocada, Jesus responde: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou”. A obra de Deus não consiste num simples “fazer”, mas no acreditar, aderir, optar pelo dom de Deus que se lhes apresenta através de Jesus. A obra (que eles devem fazer) é acreditar Naquele que de Deus enviou. Caso contrário negarão a salvação como dom gratuito e amoroso de Deus.
A multidão ainda não entendeu as palavras de Jesus, tampouco o sinal realizado e ainda reivindicam um novo para que possam crer. Ela permanece na materialidade do fato. Com um solene “Amém, Amém (Em verdade, em verdade)”, maneira de João indicar que o que virá a seguir constitui-se um ensinamento importante do mestre (quase sempre como gênero de revelação), Jesus lhes corrige a mentalidade. Não foi Moisés que deu (e, atenção ao verbo que está no passado) o pão do céu aos hebreus no deserto, mas tão somente o Senhor. Jesus ensina-lhes que o alimento misterioso (o maná) foi, no máximo, uma prefiguração e, isso sim, fruto da providência amorosa de Deus. Mas, agora (no presente), Ele declara, “meu Pai dá o verdadeiro pão do céu”. Não se trata de um alimento qualquer, mas “o” pão do céu. Não é do passado, mas acontece hoje (o verbo está no presente), o que indica uma ação contínua de Deus através de Jesus. Não é mediado por Moisés, mas vem de Deus mesmo. E é Pão que dá vida ao mundo, e não só a eles, os israelitas.
Jesus, solenemente faz uma autoproclamação simbólico-prefigurativa: “Eu sou o pão da vida!”. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim não terá mais sede” (v.35). Na teologia bíblica pão (e bebida) simbolizam o ensinamento e a sabedoria de Deus. A passagem do sentido material (o mal-entendido dos judeus) para o sentido simbólico se confirma pelo fato de a terminologia se ampliar do campo da fome para o da sede. A literatura sapiencial associa comer e beber com a instrução da Sabedoria (Pr 9,5; Sr 15,3; 24,21). O ensinamento e a sabedoria de Deus são dados agora por Jesus e pelo sentido da Sua vida.
De doador de pão que alimenta por poucas horas, Jesus se apresenta como o próprio pão que alimenta para a vida toda. Jesus não faz espetáculos públicos. A fé, por conseguinte, não se baseia no extraordinário, no estardalhaço, no barulho ou na milagreira, mas numa relação pessoal e decidida com Deus em Jesus. Implica criar intimidade com ele, deixar-se alimentar pela sua vida, vontade e, consequentemente, ter toda a vida conduzida conforme o Seu modo de viver. Alimentar-se desse pão é assumir na concretude da vida o estilo de Jesus, suas opções, atitudes e ensinamentos. Isso é eternidade de vida, pois, uma vida autêntica assim não pode ser destruída nem mesmo pela morte.
Algumas provocações são necessárias. Que Jesus procuramos, aquele que nos satisfaz com benesses, ou aquele que nos convida ao comprometimento com Ele; a tomar parte do Pão que é sua vida, sua história, suas escolhas e seu modo de ser? A procura de quais pães nos encaminhamos? Que Pão apresentamos às pessoas ao nosso redor?
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré /
Arquidiocese de Botucatu-SP.
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