Os quatro versículos que meditamos nesta perícope do evangelho de Marcos, situam-se na continuidade do evento narrado anteriormente, em 6,7-13, se descartarmos a interrupção narrativa que o evangelista insere em 6,14-29, através da qual relata a morte/martírio de João Batista por Herodes (e pelas ideologias imperiais). Por isso, os versículos, 30-31 deste sexto capítulo funcionam como que uma transição para a cena que meditaremos hoje, que remete o leitor ao envio missionário narrado em 6,13. Mas o presente texto serve, ainda, de introdução para o acontecimento seguinte, o qual adquire vital importância para esta seção do evangelho de Marcos: a primeira multiplicação dos pães.
Algumas notas importantes para entender este texto e a presente seção literária do evangelho de Marcos, o que facilitará a leitura e compreensão do texto que virá a seguir. Mas, antes de tudo, o que significa uma seção literária? Objetivamente, uma parte narrativa ou discursiva que apresentam temas importantes, os quais se tornam recorrentes até o final da narrativa. Quais temas emergem nesta seção? O tema da fé, que, na verdade, relaciona-se à formação do discípulo, acompanhado do tema do pão: o discípulo precisa, antes de tudo, ser fecundado (e formado) na Fé para poder repartir o Pão (da fé e das necessidades humanas). Esta seção (da formação) da fé e do pão é enquadrada entre os capítulos 6,30 – 8,21.
Uma primeira multiplicação de pães abre a seção logo após o evangelista informar que Jesus sentiu compaixão da multidão “desreferenciada” (como ovelhas sem pastor). E começa ensinar lhes, para depois repartir o pão. A seção se conclui com uma segunda multiplicação de pães, seguida de um sumário, através do qual Jesus recapitula os ensinamentos aos discípulos, e, que, mesmo assim, acabam não entendendo a missão e o ensino do mestre (8,21). Existe, nesta seção, ainda, uma certa cegueira por parte dos discípulos, que lhes impedem de serem formados na Fé. Mas, abordaremos estes temas em outra ocasião. Importa saber que o texto que temos hoje, 6,30-34, trata da formação do discípulo na fé.
Meditávamos, na ocasião anterior que Jesus, diante da rejeição sofrida em sua cidade, por parte dos seus, e, depois, por todo o povo, toma a consciência de que o Israel enfermo (simbolizado pela mulher hemorrágica e a filha de Jairo, de doze anos, morta) só poderia ser curado através do anúncio da Boa Nova do Reino. E, para tanto, toma a decisão de enviar os seus discípulos em missão, dando-lhes poder (autoridade) sobre os espíritos impuros e enfermidades (Mc 6,13).
O texto de hoje, nos mostra o retorno dos discípulos. “Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que haviam feito e ensinado (v.30)”. Uma nota importante: os discípulos, no episódio anterior, são enviados. Portanto, se tornam apóstolos. Retornam e narram as experiências vividas. Interessante é que Marcos não diz nada acerca do conteúdo da missão dos discípulos-missionários. O evangelista pretende ensinar a sua comunidade que a missão do discípulo é semelhante a do mestre. O discípulo-apóstolo realiza as mesmas coisas que realizara o seu mestre. Nada menos; nada mais.
Mas são os versículos seguintes que revelam a pedagogia de Jesus. Ele, após ouvir os relatos dos doze decide-se em leva-los para um lugar deserto, para descansar um pouco, pois a multidão não deixava nem que eles se alimentassem (v. 31-32). Há que se recordar que Jesus escolhe e elege os seus discípulos “para que ficassem (permanecessem) com Ele”. Ou seja, para que fizessem uma experiência relacional com Ele, afim de que aprendessem acerca de sua vida, de suas opções e sua missão. Que se tornem companheiros e companheiras Dele: que estabeleçam uma relação pessoal e intima com Jesus. A essa relação pessoal e íntima chamamos Fé. Assim sendo, a Fé é uma relação-opção a Jesus. Uma relação de fala e escuta, de silêncio, resposta e aposta. Mas, sobretudo, livre. E que precisa ser cuidada, formada e aperfeiçoada.
Jesus os leva para um lugar deserto para descansar. Bonita esta pedagogia, pois ela revela que aquele mestre que chamou, elegeu e enviou os seus discípulos, é uma pessoa que cuida deles! Leva-os para um lugar deserto. Na bíblia, o deserto é o lugar da experiência intima com Deus, ou mesmo do refazimento desta primeira experiência. É o lugar teológico da escuta da Palavra de Deus. Com este gesto de Jesus, o evangelista acena para dois ensinamentos: 1) a comunidade dos discípulos-missionários de Jesus deve refazer-se sempre e constantemente através da escuta da Palavra; 2) o descanso deve reorientar ou reorbitar o discípulo na logica do mestre.
O Cristo que chama, elege e envia não se trata de um inconsequente que esquece daqueles e daquelas que enviou. Mas cuida deles. Cuida-lhes de sua humanidade e do processo de humanização deles; cuida e forma lhes a Fé – a relação pessoal e íntima com o Deus de Jesus.
O descanso proposto por Jesus aos discípulos, na verdade, constitui-se um itinerário formativo. Não se trata de um descanso alienador, mas humanizador (ou humanizante), porque a fé é humanizadora. Se dissemos que a fé trata-se de uma relação pessoal e intima com o Deus de Jesus, ela deve ser formada de modo que esta relação humanize mais ainda o ser humano. Percebamos que o Jesus que chama é o mesmo que cuida. Quando o discípulo se deixa cuidar (forma-se, a amar-se) por Jesus, então poderá, ele, cuidar dos demais e formar lhes a fé.
O que se torna evidente no v.34: “Jesus teve compaixão da multidão porque eram como ovelhas sem pastor”. O descanso da comunidade dos discípulos não são férias. Mas oportunidade de se reorientarem nas palavras do mestre, e serem cuidados por ele, para que possam agir de modo semelhante. Embora irrenunciável, a experiência do encontro do lugar deserto não pode se sobrepor às necessidades concretas das pessoas, principalmente das mais vulneráveis. Ao invés de envaidecer-se com o aparente sucesso, pois as multidões o buscavam incansavelmente, Jesus sente compaixão. Compaixão quer dizer o amor profundo e máximo de Deus, que nasce das entranhas, comparável somente ao amor materno; literalmente, compaixão significa “contorcer as entranhas” (gr. σπλαγχνίζομαι / splagnísomai), o núcleo mais profundo e íntimo do ser humano, conforme a mentalidade semítica. “E começou a ensinar lhes”. Fica, uma vez mais, oculto o conteúdo deste ensino às multidões. Porém, passível de dedução: o anúncio da Boa Notícia do Reino. Reino que se compadece das necessidades das pessoas.
Que possamos tomar consciência de que o seguimento a Jesus implica uma convivência profunda e humanizadora com Ele. Desta relação (Fé) é que brota o apelo de sentir compaixão dos que se encontram desorientados, excluídos e marginalizados em relação a Deus e a Jesus. Nos deixemos humanizar por Jesus (por sua Palavra e Pessoa) que chama, e, ao mesmo tempo cuida de nós, para que possamos cuidar dos outros em suas necessidades, repartindo o pão da dignidade, da humanidade, da liberdade e do amor.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu,
Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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