sábado, 3 de julho de 2021

SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - Mt 16,13-19:


 


A cada ciclo litúrgico que a Igreja vive, somos convidados a fazer a memória de Pedro e de Paulo. Para isto, a liturgia nos propõe a perícope pertencente ao capítulo dezesseis do Evangelho segundo São Mateus (Mt 16,13-19).

O texto de hoje começa no v.13. Mas ele iniciara com duas situações que servem de estopim para a narrativa que se segue. O primeiro acontecimento foi uma controvérsia entre Jesus e os fariseus, os quais pediram a ele um sinal que comprovasse que ele seria messias (Mt 16,1-4). Ora, Jesus, a esta altura do evangelho, já havia realizado muitos sinais e realizado muitos ensinamentos. Não há porque satisfazer a curiosidade dos chefes religiosos com os sinais. Estes não são ocasião de exibicionismo para Jesus. A segunda situação foi motivada pela advertência feita aos discípulos para que eles tomassem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). O fermento dos fariseus, ao qual Jesus se refere é a ideia errada que nutriam em relação a Deus e ao messias, bem como a própria maneira hipócrita de viver. É importante situar o contexto com esses pormenores para poder compreender a atitude de Jesus de levar seus discípulos para longe da cidade santa, Jerusalém, que estava impregnada com essas ideologias triunfalistas acerca do messias esperado. Agora pode-se entrar no horizonte do texto de hoje.

Mateus indica geograficamente a seus leitores-discípulos onde o fato se dá. “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe” (v.13a). Cidade situada ao norte de Israel; dedicada à Cesar, imperador romano. Sede do poder romano na província da Palestina e, portanto, lugar de culto ao imperador e de cultivo da ideologia imperial. Um território pagão. Por outro lado, Cesaréia fica distante de Jerusalém, sede do poder religioso. Jesus e seus discípulos encontram-se longe das influências do poder religioso. Ali poderiam fazer uma experiência nova e pura com Deus através de Jesus. “ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” (v. 13b). Filho do Homem é aquela personagem bíblica de que nos fala a literatura apocalíptica de Dn 7. É o encarregado por Deus de executar o Seu senhorio e vontade na história. É o plenipotenciário enviado em nome de Deus. Jesus se identifica e reconhece-se a partir desta personagem. Mas a personagem alude também a sua condição humana.

Fato é, que não há concordância entre os biblistas a respeito da intencionalidade de Jesus na pergunta. Uns alegam que ele estaria preocupado com sua imagem. Outros, que ele não estaria preocupado com sua imagem, mas com a correta compreensão de sua pessoa e missão. Mais do que preocupado com a imagem que a multidão fazia dele, estava preocupado com a ideia que faziam de sua missão.

Segundo os discípulos, a opinião pública dizia: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). A atuação de Jesus tinha dado margem para variadas interpretações, e as figuras do passado serviam aos espectadores de Jesus fazerem alguma imagem Dele. Acontece que Jesus não foi um reformador como Elias (e Eliseu, no Antigo Testamento), muito menos como João Batista, na transição do Antigo para o Novo. Ele inaugura uma novidade em relação ao modo de se relacionar e experimentar o Deus de Israel, e uma novidade quanto ao modo de se relacionar com o próximo. É bem verdade que o modo através do qual Jesus decidiu-se por viver sua missão foi a via profética.

Mas Jesus supera os profetas de Israel. Embora continuem sempre atuais, eles são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como uma personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso a impede de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história (CORNÉLIO, F, Homilia Domincal, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Após a resposta dos discípulos, Jesus retorna a pergunta, agora, para ele: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v.15). Trata-se de uma pergunta importante, porque ela revela como os discípulos, o círculo mais próximo e pessoal de Jesus, o concebiam. Mais ainda, a reposta revelaria também as expectativas que traziam consigo, e qual mentalidade nutriam acerca dele.

“Tu és o Cristo, 0 Filho do Deus vivo” (v.16), responde acertadamente Simão, em nome dos doze. É uma reposta que ele dá em nome do grupo, e, portanto, eclesial. Uma profissão de fé comunitária. Os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam com Pedro.

“Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17). Jesus admira-se com a resposta tão acertada. E reconhece ser Pedro um bem-aventurado, ao compreender uma verdade muito profunda. Entretanto, seu entendimento não provém do esforço humano; só pode ser revelação do Pai dos céus. Esta bem-aventurança não provém do mérito do discípulo, mas unicamente da iniciativa de Deus.

O que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino. O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição de pertencer ao mundo dos pequenos. A bem-aventurança de Pedro consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por ela.

“Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus declara Simão-Pedro como rocha firme devido à Fé que professara. O acento aqui não recai sobre o discípulo Pedro, mas sobre a Fé que ele, conjuntamente com a comunidade dos discípulos, a Igreja, professa. A pedra firme por sobre o qual se edifica a comunidade dos crentes em Cristo é o conteúdo e o núcleo da Fé professada pelo discípulo. Pedro, na verdade, é o garantidor da unidade em torno desta Fé. Esta não se baseia num conjunto de ideias ou de proclamações dogmáticas, mas se embasa numa pessoa e na relação experiencial com ela: o Messias e Filho do Deus vivo, Jesus de Nazaré.

É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”, que foi transformada no segundo nome de Simão, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, alude à superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção que se assenta por sobre a pedra-rocha (petra) da fé que  professou: “Tu és o Messias e Filho do Deus vivente”.

Só aqui e em Mt 18,17, o evangelista chama de “Igreja” a comunidade dos discípulos do Reino, evocando o antigo povo de Deus (hbr. qahal). A missão da igreja consiste em ser, na história humana, um sinal da presença do Reino, vivendo os seus valores e o seu projeto.

A chave simboliza a autoridade conferida a Pedro, da qual a comunidade também participa. Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino acontecer já aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expressado nas bem-aventuranças (Mt 5 – 7), tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” são, acima de tudo, responsabilidades, e não um poder.

O texto litúrgico de hoje termina, mas, ao mesmo tempo encaminha para conclusão do capítulo dezesseis, o qual apresenta o primeiro anúncio da paixão, que visa abrir a compreensão dos discípulos para que comecem a compreender o verdadeiro modo pelo qual Jesus decide-se encaminhar a sua vida e missão, vaticinando a eventualidade de sua paixão e morte, coroadas pelo evento redentor e salvífico da ressurreição. O modo pelo qual Jesus exercerá plenamente seu messianismo é o modo da cruz. O caminho da cruz que foi assimilado, com não pouca dificuldade, pelo discípulo Simão-Pedro, através de sua vida gasta pelo Evangelho da libertação e da Graça.

A pergunta que Jesus faz aos discípulos se direciona também à nós. 1) Quem é Jesus de Nazaré para mim? 2) Qual a ideia de messias e Filho de Deus possuo e fiz experiência? O triunfalista, opressor, belicoso, poderoso? Ou o messias e Filho de Deus que realiza sua missão através da obediência ao Pai e ao projeto do Reino, vivendo uma existência em amor, compaixão, misericórdia e serviço aos irmãos?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

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