O evangelho proposto para o décimo terceiro domingo do tempo comum é o texto que concentra dois gestos de poder realizados por Jesus: a cura da mulher hemorrágica e o restabelecimento da filha de Jairo, chefe da sinagoga. Ambos condensados em Mc 5,21-43. O texto é rico e extenso. Por isso propomos a leitura e meditação a partir de versículos específicos.
O leitor-ouvinte do Evangelho segundo Marcos tem diante dos olhos duas figuras femininas. A mulher, no tempo da sociedade de Jesus era marcada pela exclusão. Não tinha voz, nem vez. Era posta na marginalização. Todavia, ao interno da tradição bíblica, a figura da mulher sempre foi tida como símbolo para o povo de Israel. Ora, o evangelista pretende relatar a situação do povo de Israel através das duas figuras femininas. Israel submisso à lei, e que morre, simbolizado pela filha de Jairo; Israel excluído pela lei, e que está morrendo – a mulher enferma do sangue.
O número doze é o ponto comum entre as duas cenas. Este, representa a totalidade de Israel. Doze eram as tribos que formavam o povo de Deus. O evangelista pretende indicar a situação de Israel, mas também todas as pessoas que se encontram nesta situação, uma vez que as personagens não recebem nome. Na Bíblia, quando os autores sagrados apresentam personagens anônimas, a intenção é fazer com que os leitores possam se identificar com elas. Podemos, agora, tomar os versículos que são importantes para a compreensão global do texto bíblico.
Após aproximar-se o chefe da sinagoga, chamado Jairo, o qual apresentou a situação de sua filha, de doze anos, enferma, Jesus se põe a caminho (v.v. 21-24). Marcos gosta de mostrar o mestre num constante movimento, e isso é uma lição para os discípulos. A caminhada com Jesus é sempre um deslocamento; um movimento. Um sair das próprias estruturas humanas e relacionais.
“Ora, achava-se ali uma mulher que, há doze anos, estava com uma hemorragia” (v.25). Marcos apresenta a mulher enferma do fluxo menstrual. Ela é anônima, e, portanto, um convite para que os leitores-discípulos se identifiquem com ela, ou que se sintam representados por ela por estarem na mesma situação de marginalização. Qual a situação em que a mulher se encontra: aquela da crueldade de uma instituição religiosa que diz à pessoa, “você se encontra impura pelo pecado”; a situação da impureza religiosa e, pois, da impossibilidade de purificação. Ora, se a pessoa se encontra impura, e só quem pode retirar a impureza do pecado é Deus, em última análise, então ela deve dirigir-se para Deus. Acontece que essa não era a mentalidade, nem a prática, das lideranças religiosas e da religião do tempo e da sociedade de Jesus. Uma situação dramática: a pessoa encontra-se impura, e, desejando dirigir-se à Deus, não o faz porque não pode devido à impureza.
Conforme o pensamento e costume do judaísmo, o sangue é princípio de vida do ser vivente, e, por isso, sagrado. Somente Deus tem direito sobre ele. A mulher padece doze anos do fluxo menstrual desregulado. Marcos não pretende mostrar somente a condição sanitária pela qual passava a mulher, mas o seu status diante da religiosidade: é impura. Tudo o que ela toca também se torna impuro. Se é solteira, não pode se casar; se casada, não pode coabitar e relacionar-se com o esposo até que fique bem. Estando, inclusive, quem a tocasse, sujeito à pena de morte.
“Tendo ouvido falar de Jesus, aproximou-se dele por detrás, no meio da multidão, e tocou na sua roupa” (v.27). O evangelista nos informa que a mulher ouviu falar de Jesus. Ele tem em mente a cena da purificação de um leproso realizada pelo mestre, em Mc 1,40. O leproso, que representa, por sua condição, um morto-vivo, foi purificado por Jesus não por conta de seus méritos, mas por conta da necessidade de vida daquele homem. A mulher, igualmente, pensa que também há espaço para ela, e, por isso, encontra um jeito de se aproximar de Jesus e tocar sua roupa. Tenhamos sempre presente toda a carga religiosa que poderia ser imputada a ele por ter sido tocado pela mulher impura. Ficava contaminado pela impureza dela. Sentindo-se tocado, Jesus pergunta aos discípulos quem foi. Eles, ironicamente, respondem que seria impossível saber devido a multidão que os seguia. Os discípulos, mesmo próximos e seguindo a Jesus apresentam uma incapacidade, a de ver a realidade que os rodeia.
“A mulher, cheia de medo e tremendo, percebendo o que lhe havia acontecido, veio e caiu aos pés de Jesus, e contou-lhe toda a verdade. Ele lhe disse: Filha, a tua fé te curou. Vai em paz e fica curada dessa doença” (v.33-34). A mulher, ao receber o olhar de Jesus, espera ao menos o castigo e a reprovação dele. Mas esta não foi a Sua atitude. Seu olhar e suas palavras foram de ternura. Ele a chama de “filha”. Não esbravejou com ela, nem a rechaçou por tê-lo tocado e feito com que ficasse impuro.
A mulher, do ponto de vista religioso, cometeu um sacrilégio. Mas a resposta de Jesus a libera das consequências. E diz: a tua fé te salvou. Infelizmente a tradução litúrgica usa o verbo curar, quando no original grego se apresenta o verbo salvar. A mulher transgressora da lei – que não gerava mais vida e excluía as pessoas – para Jesus é protótipo da fé. Ele a despede, e não exige que se dirija ao templo apresentar-se à Deus. Para Jesus, é Deus que se apresenta às pessoas, não exigindo nada delas, mas doando-se e oferecendo vida a elas.
No início, Jairo tinha pedido que Jesus fosse impor as mãos sobre a menina (v. 23). Jesus faz mais do que lhe é pedido: “Jesus pegou na mão da menina e disse: “Talitá cum” – que quer dizer: “Menina, levanta-te!” (v. 41). Pegar na mão é mais significativo. A imposição das mãos era um rito bastante comum no judaísmo e nas outras experiências religiosas do antigo Oriente, assimilada e adotada no cristianismo. Pegar na mão é sinal de companheirismo, disponibilidade de caminhar juntos. Porém, neste contexto, é um sinal de transgressão de Jesus, já que o corpo da menina era um suposto cadáver, naquele momento; e quem tocasse num cadáver ficava impuro por sete dias, conforme a Lei (cf. Nm 19,11). Para Jesus, no entanto, nenhum preceito estava acima da sua vontade de transmitir a vida para as pessoas. Segurando na mão da menina, ele ordena que ela se levante, e eis o resultado: “Ela levantou-se imediatamente e começou a andar, pois tinha doze anos. E todos ficaram admirados” (v. 42). Ao contrário do acontecido com a mulher hemorroíssa, ele voltou a pedir o silêncio, que constitui um elemento importante para a teologia de Marcos: o chamado “segredo messiânico”, como já foi acenado, e cuja revelação será fruto da Páscoa. Por sinal, este milagre é uma prefiguração da ressurreição do próprio Jesus, quando a vida nova será estendida à humanidade inteira. Eis, então, o último versículo: “Ele recomendou com insistência que ninguém ficasse sabendo daquilo. E mandou dar de comer à menina” (v. 43). A ordem para dar de comer à menina serve para demonstrar a realidade da vida; ela não é um fantasma, mas a filha concreta de Jairo. Inclusive, a refeição também faz parte das aparições de Jesus Ressuscitado, como um meio de confirmação para os discípulos (cf. Lc 24,13-49; Mc 16,14; Jo 20–21) (cf. CORNELIO, F, Reflexão Dominical in. porcausadeumcertoreino.blogspot).
O texto de hoje, ao mesmo tempo em que revela a enfermidade e a situação de morte de Israel, simbolizadas pelas duas personagens femininas, mostra um Jesus que se coloca na contramão de tudo e de todos para poder comunicar a vida em abundância às pessoas. Na cena da mulher hemorroíssa, permite-se ficar impuro para liberá-la da impureza. Na narrativa da filha do chefe da sinagoga, ele adentra na situação de morte, tocando e ficando uma vez mais impuro, para poder comunicar a vida. Aprendamos a estar com o Senhor onde ele se faz presente, juntos dos excluídos e marginalizados.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário