A liturgia retoma o ciclo litúrgico do tempo comum. E propõe para a nossa meditação o capítulo terceiro do evangelho de Marcos. O capítulo inicia-se com um sumário que narra a atividade de Jesus com as multidões às margens do lago. Em seguida, dos v.v.13-19, o evangelista apresenta Jesus escolhendo e constituindo o grupo dos doze discípulos. Por fim, a narrativa de hoje, a qual conclui o capítulo (Mc 3,20-35).
O evangelista informa que Jesus voltou para a casa (em Cafarnaum; casa de Pedro ou do próprio Jesus?), junto com seus discípulos (v.20-21). Novamente, a multidão acorre até lá. É importante recordar que a casa é, no Evangelho de Marcos, símbolo e local da reunião da comunidade Cristã. É o lugar privilegiado de onde Jesus transmite o ensino para a comunidade dos discípulos. Superando, assim, os espaços judaicos da sinagoga e do templo. Talvez Marcos esteja retratando o próprio período da vida da comunidade, nos anos 65-70 d.C, em Roma.
O evangelista faz questão de informar que, os parentes (os da casa) de Jesus, ficam sabendo do que ele estava fazendo, e tomam a decisão de trazê-lo de volta para a casa (clã) deles, em Nazaré, porque pensavam que ele estava fora de si (v.22). Interessante este contraste que o evangelista estabelece entre a casa em que Jesus se reúne e os de sua própria casa, que, na verdade, são seus parentes. Eles se sentem incomodados com as atitudes de Jesus, e, naturalmente, sentem medo de que Ele pudesse constranger a sua família de sangue, mediante suas atitudes.
O que causa a estranheza da parentela de Jesus? Evidentemente, na sequência narrativa do texto de Marcos, até o momento, as atitudes que despertaram o medo dos familiares de Jesus foram as que ele vinha realizando: o ensino que transmitia e o modo de vida que levava; sua Autoridade diante da lei e das tradições religiosas; o fato de perdoar pecados e curar enfermidades (Mc 1,14-45). Com base nestas atitude de Jesus, podemos entender a preocupação dos da casa de Nazaré. “Ele está indo com paus e pedras para cima de tudo o que nós acreditamos”, poderiam pensar (ainda que equivocadamente). “Ele só pode estar fora de si! Devemos busca-lo e traze-lo de volta, antes que nos envergonhe!” O texto não informa que estes seriam os seus pensamentos, mas é plausível que seja este o medo subjacente: faze-los passar vergonha diante da sociedade, por estar fora de si.
Marcos insere, em seguida, novos personagens (v.23). Os fariseus, que descem de Jerusalém (centro de seus estudos) para a Galileia expressam outro sentimento mais agudo, em relação a Jesus, seu ensinamento e sua conduta de vida: “ele só pode realizar tudo isso, por estar possuído por Baalzebu, e expulsa os demônios” por meio deste ser mítico.
Baalzebu
era uma divindade pertencente a religião dos filisteus e dos cananeus, que
encontrou espaço no imaginário religioso do povo de Israel, quando das redações
da Bíblia no período do pós-exílio babilônico, mas que já figurava no panteão
das religiões vizinhas ao povo de Israel. No entanto, é muito importante ter
presente que, o acento do evangelista é colocado na atitude de rejeição das
autoridades judaicas, e não na figura mítica de um (senhor das moscas / baal
zevu = Belzebu). Os fariseus rejeitam a atuação de Jesus, e, consequentemente,
rejeitam que Deus possa agir através dele.
Jesus lhes responde através de uma parábola acerca do reino maligno dividido (vv.23-27). E, em seguida, acrescenta outra, fazendo uso da imagem de um forte, dono de casa, que é surpreendido por um valente mais forte que aquele. O Valente e mais forte é o próprio Jesus, que se serve de imagens do Antigo Testamento (a do valente de Deus, o forte guerreiro de Is 42; 49,24.25) para visibilizar que, através dele (de seus gestos e palavras) a vitória de Deus se faz presente no mundo. Jesus é o “mais forte” de que falava João (Mc 1,7).
Então, Jesus desfere contra os fariseus: “Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens, tanto os pecados, como qualquer blasfêmia que tiverem dito. Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas será culpado de um pecado eterno (v. 28-29)”. Como entender estes ditos de Jesus? Ele se refere a irremissibilidade do pecado? A expressão grega “αἰωνίου ἁμαρτήματος / aioníou hamartímatos” traduz a expressão hebraica “hattá ôlam”(pecado eterno). Mas esta expressão não deve ser entendida como a recusa do perdão. Ela acena, na verdade, para a qualidade do pecado cometido; a profundidade da ação realizada, e não à quantificação temporal (eterno). Na tradição judaica, o “hattá ôlam” não pode ser expiado pelas práticas de expiação prescritas pela lei (sacrifícios etc.), ficando a pessoa entregue à misericórdia de Deus. O que Jesus quer ensinar é o seguinte: aqueles que dizem que “ele está com um espírito impuro”, na verdade negam, de forma contundente, a presença de Deus (e seu Espírito) em Jesus. Este dito é uma denúncia de Jesus diante da recusa das autoridades.
A sua família finalmente chega em Cafarnaum, mas não consegue ter com ele. Avisado sobre a chegada de sua mãe e seus irmãos, Jesus interroga os que lhe avisavam: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” (v.31). À pergunta de Jesus, o evangelista acrescenta um movimento interessante, informando que Jesus lançava um olhar para a multidão e para os discípulos que o escutavam, enquanto acrescenta: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (vv.33-35). Para mostrar que, no Reino, o parentesco natural, (algo tão importante na sociedade oriental), já não tem peso em comparação com o parentesco dos que, cumprindo a vontade de Deus, são filhos de Deus e irmãos entre si.
Entendamos: Jesus supera os laços e vínculos sanguíneos, mas não os rejeita! Ao passo que os seus, de sua casa, o rejeitavam, e, de um modo mais sutil e brando que o dos fariseus, não reconheciam que Jesus agia pelo Espírito de Deus. Não reconheciam que Em Jesus, a novidade de Deus se fazia presente: todos podem escutar as Palavras de Deus e Dele se tornarem discípulos, colocando-as em prática.
O
evangelho deste décimo domingo do tempo comum apresenta-nos a rejeição de Jesus
por parte de seus familiares e por parte dos líderes de sua gente. Um Jesus
rejeitado, que, em contrapartida, não rejeita a ninguém. Supera os laços
familiares do sangue e do clã. Propõe uma forma de vida para tornar-se
participante da família de Deus: ouvir a Sua Palavra e colocá-la em prática. A
nova família de Jesus é composta daqueles e daquelas que aderem à novidade de
Deus mesmo agindo através de Jesus. Não se pode esquecer que esta família recém-inaugurada
por Jesus não é uma “família perfeita”. Os perfeitinhos, pelo contrário, estão
de fora e se recusam a tomar parte do projeto de Deus que se visibiliza em
Jesus. São os fariseus, escribas, saduceus – a elite religiosa do povo – que se
acham já justificados por observarem a lei. A família de Jesus, que tem por critério
reunir-se ao redor da Palavra de Deus é composta pelos imperfeitos, pelos vulneráveis,
pelos descartáveis; por todos aqueles que não tem voz e nem vez. Por todos nós,
necessitados de conversão.
De qual grupo temos feito parte? No das autoridades do povo que rejeito o modo de vida de Jesus? No da sua família, que se envergonha dele? Ou da sua nova família? O “ouvir a Palavra e coloca-la em prática” tem sido nosso distintivo enquanto discípulos e como comunidade de Jesus?
Pe.
João Paulo Sillio
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP
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