Ao celebrar a Eucaristia, a Igreja faz memória atualizadora da Paixão (vida), Morte e Ressurreição do Senhor. Ao mesmo tempo, ela celebra sua própria natureza e essência, a de ser eucaristizada (ou transubistanciada), através do Corpo e do Sangue de Jesus, em Seu próprio corpo eclesial, e, portanto, real. Por isso, a Igreja vive da Eucaristia, e a Eucaristia faz a Igreja!
O evangelho de hoje é tomado da narrativa da ceia do Senhor, na catequese de Marcos. A ceia celebrada por Jesus, de acordo com a cronologia apresentada pelos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), é uma ceia pascal. Diferentemente do Quarto Evangelho, o qual apresenta uma ceia de despedida às vésperas da pascoa. Todavia, as quatro narrativas da ceia inserem-se no horizonte da morte e ressurreição de Jesus, de seu Mistério Pascal. É sob este pano de fundo que estes relatos da ceia devem ser lidos: o sentido da vida levada até o fim.
A narrativa de hoje nos informa, num primeiro momento, que os discípulos, no primeiro dia dos ázimos, quando se imolavam os cordeiros no templo, se preocupam com local para realização da ceia pascal (v.12). A resposta de Jesus aos discípulos acena para uma novidade apresentada ao longo de todo o evangelho de Marcos: ele ordena que os discípulos se dirijam à cidade, onde encontrarão um homem que lhes cederá de sua casa para celebrar a páscoa (v.13-16). A casa representa muito no evangelho de Marcos, pois ela contrasta com o templo e as sinagogas do judaísmo da época. A comunidade dos discípulos não se reúne mais em meio as instituições judaicas, consideradas antigas e superáveis, mas nas casas. Tornando-se, assim, o lugar privilegiado do encontro da comunidade para fazer a memória do ressuscitado, na experiência pós-pascal, mas também assinalar a superação dos sistemas antigos e apontar para realidade nova apresentada por Jesus.
Importam, para nós, agora, os ditos de Jesus sobre o pão e sobre o cálice. No contexto da ceia pascal existiam sinais que os ajudavam a celebrar a libertação da casa da escravidão: o cordeiro pascal, o pão, o vinho, as ervas amargas. No entanto, os símbolos centrais eram o cordeiro pascal, o pão e o vinho. Os rabinos comentam que, ao interno da ceia, durante a benção dos pães e dos cálices com vinho, aos dirigentes, eram lhes permitidos fazer algum comentário (catequético) sobre aqueles símbolos. Jesus faz a mesma coisa com o pão e com vinho. Todavia, as palavras de Jesus sobre o pão, e, depois, sobre o vinho, não são um simples comentário. São as interpretações do sentido que ele dará à sua vida nas horas seguintes.
Durante a refeição, Jesus toma o pão, abençoa, reparte e distribui aos discípulos dizendo: “tomai, isto é o meu corpo”. Em seguida, toma o cálice com vinho, pronuncia a ação de graças e o distribui aos discípulos, que bebem dele. Depois, Jesus diz: “este é o meu sangue da (nova) Aliança derramado em favor de muitos” (v.22-24). Na ceia, Jesus faz do Pão e do Vinho os sinais de sua vida doada, ou seja, de seu corpo e sangue. No símbolo do pão repartido e despedaçado (que, em última análise, é fruto do grão de trigo pisado, triturado (morto)), Jesus interpreta, profeticamente, o que acontecerá com ele na cruz. O Pão é o Corpo de Jesus. O Corpo, para o povo bíblico, simbolizava a pessoa em sua totalidade e história existencial.
No símbolo do vinho, igualmente, Jesus vê o sentido de sua vida. Assim como a uva é pisoteada, sangrada e destruída para produzir o vinho, a vida de Jesus terá o mesmo fim. É interpretado como o sangue da Aliança (cf. Ex 24,8): o vinho evoca o sangue pelo qual Moisés firmou a aliança com Deus.
Sangue da Aliança ou Sangue da Nova Aliança? Em Mc, 14,24, a versão mais divulgada, e que chega até nós, se lê “nova Aliança” e não simplesmente Aliança, como nos manuscritos mais antigos. Todavia, não se trata de uma nova aliança no sentido de outra, mas de um modo novo de participação na Aliança de sempre. Trata-se do modo e da forma assumida e vivida por Jesus: suas ações, opções, escolhas. O jeito da sua vida!
Jesus conclui a catequese a respeito de sua vida da seguinte maneira: “Não voltarei a beber o fruto da vinha até o dia em que o beber, novo (não novamente!), no Reino de Deus”. Marcos quer ensinar para sua comunidade que a morte de Jesus sela o tempo deste mundo, e que o reencontro será o banquete do Reino plenamente realizado no mundo renovado.
Este evangelho nos ajuda, e muito, a rezarmos a solenidade de hoje. Vejamos. O que significa comungar? Fazer comunhão. Estabelecer uma relação com algo ou alguém. Comungar do Corpo e do Sangue de Jesus significa tomar parte, de modo relacional, de Sua vida (sangue) e de sua Pessoa (corpo). É o que a Igreja reza através da Oração Eucarística, quando pede para ser eucaristizada no corpo e no sangue do Senhor, mediante as espécies sacramentais, pelo Espírito.
Comungar do Corpo e do Sangue do Senhor significa tomar parte de sua vida, de suas opções, de suas atitudes e gestos. Implica em tornar-se os olhos, os ouvidos, o Coração, as mãos e os pés de Jesus de Nazaré, hoje, para santificar o mundo. Por isso, cada um deve examinar-se muito bem antes tomar parte da vida de seu Senhor. De nada adianta que eu me aproxime do altar do Senhor (Palavra e Sacrifício) se não passa pela minha consciência que ao comungar de seu Corpo eu Sangue eu sou eucaristizado N’Ele.
A finalidade da Eucaristia é a de fazer de nós, enquanto Igreja (comunidade dos discípulos do Senhor), o Seu próprio Corpo, não parece claro. Pois constantemente ouvimos e vemos os bons cristãos católicos, que, quase diariamente comungam, reproduzindo em suas vidas atitudes, convicções, sentimentos e práticas que são incoerentes com o Evangelho. Não estou falando de moralismos. Refiro-me às tantas ideias, atitudes e sistemas de morte que muitos bons cristãos e cidadãos de bem vem assumindo, em oposição ao projeto de Jesus.
A Eucaristia não ensina capitalizar, antes, partilhar e colocar tudo em comum. Não é um prêmio para os fortes, mas remédio para os fracos. Não é símbolo de domínio, opressão e submissão, mas sacramento profético de uma vida entregue até as últimas consequências em amor e serviço para todos. A eucaristia não deve reproduzir os sistemas e a lógica do mundo, mas transubstanciá-lo (ou melhor, eucaristiza-lo), do mesmo modo que o amor de Jesus transformou o escândalo de sua morte em dom e serviço à humanidade.
Para concluir esta meditação, tomo emprestada a reflexão do jesuíta, Pe. Geraldo De Mori SJ, meu ex-professor, em seu artigo sobre a Solenidade de hoje. “A solenidade de Corpus Christi deve traduzir-se em solidariedade, sobretudo para com os que passam fome e qualquer outra privação nestes tempos tão difíceis. Mas também é importante deixar-se impactar pelo mistério “escondido” e exposto no “ostensório”, não porque nele se encontre algo de mágico ou milagroso, mas porque neste mistério revela-se que o sublime assumiu a abissal humilhação daqueles que são submetidos à servidão, à injustiça, ao sofrimento, e que somente uma vida capaz de despossuir-se por amor – Jesus – é igualmente capaz de fazer emergir uma vida eucarística no mundo”.
Que o comungar se torne a decisão por uma vida Crístificada. Eucaristiza-te!
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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