sábado, 25 de maio de 2019

HOMILIA PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 14,23-29:


Adentramos no sexto domingo do tempo pascal, seguindo com a leitura do testamento de Jesus no Evangelho segundo João, o qual constitui o seu grande ensinamento sobre o mandamento (dinamismo) do amor, e sobre a entrega da própria vida.

A liturgia propõe para a nossa meditação o texto de Jo 14,23-29. Sabe-se que esta pericope insere-se no livro da glória, a segunda parte do Quarto Evangelho, onde Jesus revela aos discípulos que chegou a hora da glorificação do Filho do Homem. Esta hora decisiva revela-se na Cruz. Ali, Jesus leva a termo a sua Obra, a obra que recebeu do Pai, que através do gesto livre da doação da vida do Filho revela, pois, todo o seu Poder, seu ser e seu agir.

Qual a finalidade de Jo 14, 23-29 para a comunidade dos discípulos, para a geração posterior e para nós, hoje? Fundindo os dos horizontes, o da comunidade dos discípulos e o da comunidade de joanina (a geração posterior dos fieis, na qual inclui-se todo o fiel-discípulo e leitor do Evangelho), a pragmática do texto atinge seu ápice quando a comunidade cristã lê (assimila e adere) o testamento/ensinamento de Jesus como sendo seu plano e projeto de vida, pautando o seu agir e sua identidade no modo de vida de Jesus, em seu ensino e em sua missão. Nesta perspectiva, a comunidade tem as ferramentas (os meios) para viver constantemente o convite e a realidade de uma vida ressuscitada garantida pelo dom do amor do Senhor e por seu Espírito.

Antes de tomarmos o texto de hoje, se faz necessário que nos versículos anteriores, Jesus prometeu o Espírito Santo aos discípulos. O Espírito Santo é o espírito de Jesus (Espírito do Ressuscitado) e do Pai. É o dinamismo de vida do Pai e do Filho, que doado por ambos dá vida, filiação e amor. É aquele que garante a continuidade da vida e a presença de Jesus para a comunidade. Mas esta presença se dá em virtude da vivência do mandamento do Amor. Jesus prometeu manifestar-se à quem ama como (e porque) ele ama. Assim, poderemos entrar no horizonte do texto.

“Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou” (vv.23-24). Jesus afirma a importância do amor e de guardá-lo como mandamento/Palavra. O Pai e Jesus se manifestam na vida daqueles que amam do mesmo modo de Jesus. Todavia, Ele, a esta altura do testamento estabelece uma condição para receber e participar do amor: amar a Jesus para receber o amor do Pai.

Mas amar a Jesus (viver a mesma vida que a dele) também o critério para saber se a sua Palavra é, de fato, guardada, ou seja, vivida. O verbo bíblico guardar (hbr. Shama) não significa reter para si, mas observar, no sentido de cumprir/viver o mandamento ou a Palavra de Deus. Só o amor pode motivar a adesão à Palavra/mandamento do amor de Jesus. Só aquele que decide-se por amar é que escuta e vive do amor.

Jesus assegura novamente: “o defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (v.25). Na teologia do Quarto Evangelho, o Espírito é defensor; tem a função de ensinar e recordar. O Espírito Santo é aquele que inscreve (escreve a partir, e, desde dentro de nós) a vida mesma de Jesus em nossa vida. O Espírito é a letra de Cristo que escreve no livro da vida humana a vida de Jesus. Ele tem a função de ser o defensor. O termo que João emprega é paraklétos (gr. Pará = junto de, ao lado de / kalein (kaleo) =  chamar), que significa “estar junto de”. Assim, o Espírito de Jesus está ao lado do fiel para que ele possa assumir o modo de vida de Cristo. Outras duas funções apresentadas, a de ensinar e renovar. Há que se ter presente que ambas as funções querem dizer a mesma coisa: atualizar. Ora, o verbo “recordar” na fé e tradição do Antigo Testamento é a memória bíblica. Fazer memória significa atualizar: tornar presente no hoje o ensinamento, a missão e a vida mesma de Jesus. O ensinar/recordar são duas atitudes imprescindíveis para a vida da comunidade, que necessitam da disciplina e da fidelidade dela. São as atitudes daqueles e daquelas que vivem a novidade do convite à vida ressuscitada e dela dar testemunho.

“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo. Não se perturbe o vosso coração” (v. 27). Jesus fala da paz. É preciso entender de quê paz ele fala. É daquela que, no Antigo Testamento está associada à posse da terra prometida. Como consequência da posse da terra da promessa, o povo conquista a paz. Mas ela é dom e garantia do tempo do Messias. Significa que a espera acabou e que a promessa foi cumprida. Mas no Novo Testamento, a posse da terra da promessa começa se dá num modo de relacionar-se com Jesus. Nesse sentido, Jesus é a terra prometida. O Novo Testamento apresenta Jesus como a terra segura para o discípulo. Cristo é a terra da promessa cumprida. Então, para os discípulos de Jesus, a Paz é um modo de ser e de existir. É o modo de estar/ser em Cristo.

A paz que Jesus dá e comunica é Ele mesmo. Um modo de ser e de existir que é superior à “pax romana” (se queres paz prepara-te para a guerra), é aquela que visa oprimir, dominar, subjugar para manter a ordem, principalmente contra as minorias. A paz judaica é aquele típico bem estar.  A Paz que Jesus dá supera estes pensamentos romanos e judaicos.

Na certeza de que Jesus e o Pai fazem morada em quem vive o mandamento do amor, e ainda confere o Espírito Santo para ficar junto, ensinar e recordar tudo o que Ele mesmo ensinou, cabe aos discípulos e discípulas de todos os tempos, o esforço para que tudo isso seja manifestado também ao mundo. A condição para que isso aconteça é a vivência do mandamento do amor (CORNELO, F, Homilia dominical, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Pe. Joao Paulo Sillio.

Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 18 de maio de 2019

HOMILIA PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 13,31-35:




O evangelho deste Quinto Domingo do tempo pascal retoma a narrativa da ceia de despedida de Jesus, no Quarto Evangelho (Jo 13,1-38). Estamos ao interno do chamado Livro da Glória. O texto de Jo 13,31-35 situa-se após o gesto profético do lava-pés, o gesto simbólico da vida de Jesus levada até as últimas consequências; do anúncio da traição de Judas e do prenúncio da negação de Pedro.

Mas, no horizonte da catequese joanina, o texto de hoje encontra-se no bloco denominado testamento de Jesus (Jo 13 – 17), sendo quatro capítulos narrados ao redor da ceia, evento que não pode ser visto como ocasião para consumo de alimentos, muito menos resume-se na vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é o lugar da partilha e da comunhão de vida entre o anfitrião e os hospedes. Por isso, o testamento que Jesus deixa aos seus se dá ao interno da ceia.

 O testamento de Jesus é o ensino fundamental destinado ao discípulo que se decidiu pelo mestre. O conteúdo do seu testamento é o da revelação de Deus através da sua vida, mediante a sua doação e do mandamento do Amor. É sobre este conteúdo que a comunidade de João e as gerações futuras deverão se debruçar. Por isso, a nível de catequese litúrgica, a liturgia da Igreja oferece este texto para a meditação a fim de que as comunidades de todos os tempos, tendo feita a experiência com Jesus ressuscitado, possam pautar a sua vida ressuscitada nos seus ensinamentos.

Somente vivendo a partir do modo de vida de Jesus a comunidade continuará a experiência da ressurreição. Por isso, a liturgia nos convida a assumir este modo de vida através da meditação/contemplação desta narrativa. Vamos ao texto.

No v.31 temos uma delimitação importante: a saída de Judas. Ele se decidiu por romper com o grupo, com Jesus e com seu projeto. Ele optou por não aceitar a dinâmica do lavar os pés. Escolheu as trevas (por isso João situa estes acontecimentos no período noturno). Somente depois da saída de Judas Iscariotes é que Jesus deixa o seu testamento para os seus. Só pode assumir e receber – tomar parte – do testamento de Jesus aquele que comunga do seu modo de vida. Ao mesmo tempo, no horizonte do evangelho segundo João, a saída de Judas do grupo é o que desencadeia o ensinamento de Jesus sobre a Hora da Glória.

O v.32 toca precisamente no tema da Glória (da glorificação) de Jesus, a qual é o lugar tenente da Glória de Deus. O tema da Glória no Quarto Evangelho é importante e perpassa a obra joanina do começo ao fim. Glória, aqui, não significa brilho/esplendor. O evangelista serve-se do pano de fundo do Antigo Testamento, trabalhando com o termo hebraico Kabod, o qual se traduz por Glória, mas no sentido de “presença”. Assim, a Glória de Deus outra coisa não é que a sua presença substanciosa na história. Na teologia do evangelho de João, a vida de Jesus torna-se o lugar da presença de Deus. Com efeito, a Glorificação do Filho do Homem, da qual fala Jesus é o ato de manifestar a presença de Deus através do dom da sua própria vida na Cruz. Por isso, é na Cruz que Deus revela todo o seu poder, sua presença e seu Ser no Crucificado.

Jesus assume para si a missão e identidade da personagem apocalíptica do Livro de Daniel (Dn 7,10), que na época de Jesus evocava um ser glorioso e potente. Geralmente, Jesus relaciona essa imagem ao seu sofrimento, tanto aqui em João quanto nos sinóticos (cf. Mt 17,22; 20,18; Mc 9,12.31; 10,33; Lc 9,22.44), contradizendo o uso recorrente no seu tempo. Em João, especialmente, glorificação e sofrimento são termos que se completam reciprocamente, quer dizer, glória e paixão estão intrinsecamente relacionadas (cf. CORNELIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

O evangelista, no texto grego serve-se da voz passiva, a qual indica Deus como o agente  realizador da ação (“passivo teológico ou divino”). O termo “glorificar” pode ser entendido, ainda, no sentido de “manifestação da glória”, revelação da presença divina: “Foi glorificado o filho do Homem, e Deus foi glorificado nele”. Ora, a glória de Jesus, enquanto Filho consiste em realizar os propósitos do Pai. A glória do Pai, por sua vez, é ver o Filho sendo-lhe fiel mediante o amor até o fim (cf. KONINGS, 2005, p. 269).

Mas só poderá tomar parte da glorificação de Deus em Jesus os que são tidos como “filhinhos”, ou seja, aqueles que aderiram e aderem ao projeto e à vida de Jesus: os iniciados na Fé. É a linguagem do Mestre para com os discípulos. Mas “filhinhos” é também o termo que 1Jo 2,1.12.28 etc. usa para se dirigir aos fiéis. Jesus fala agora aos fiéis como se já constituíssem uma comunidade eclesial (cf. KONINGS, 2005, p. 270).

Os filhinhos recebem, pois uma novidade de vida: um Novo mandamento. “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (v.34). Existem dois adjetivos que correspondem a “novo”: o primeiro deles, “néos” (gr. νέος) significa algo novo que se soma ao que já existe; o segundo kainós (gr. καινός) significa algo novo que substitui o velho, superando-o e fazendo-o desaparecer. É esse segundo termo que João usa aqui. Portanto, o mandamento novo dado por Jesus não vem a ser um acréscimo à antiga Lei, mas a sua completa superação. Quer dizer que, vivendo esse mandamento, a comunidade não necessita de nenhum outro. É esse o modelo de amor que a comunidade cristã deve assimilar e reproduzir.

O interessante é que Jesus não dá como testamento para sua comunidade um conjunto de normas ou ritos somente. Sim, é verdade que no "tomar e comer, e no tomar e beber", Ele nos dá a ordem de iteração "fazei isto em memória de mim", para que celebre-se sempre a sua vida através dos dons sacramentais. Mas a liturgia e o rito só adquirem a real eficácia quando verificados através do modo de vida de Jesus. E, ao mesmo tempo, os sacramentos atingem sua finalidade a partir do momento que inscrevem a vida de Cristo em nós. Por isso, seu testamento não é só delimitado pelo rito ou pelo preceito. Ele nos deixou um Mandamento novo, um modo de ser, agir e existir. Somente em João o mandamento do amor é dado com essa radicalidade e com este exemplo, ou seja, o amor de Jesus. Diante disso, a novidade apresentada pelo evangelista se torna ainda mais evidente, pois Jesus não reivindica nada para si e nem para Deus, o Pai; pede apenas amor recíproco entre os membros da comunidade: “amai-vos uns aos outros”; nesse amor recíproco entre os discípulos, obviamente, estará o amor a Deus, pois é Ele a fonte do amor e, consequentemente,  Jesus, o revelador do amor do Pai. O critério do amor que deve ser vivenciado na comunidade é o seu: “como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros”. O qual não é um amor qualquer, mas é aquele amor capaz de dar a vida pelo próximo, cuja expressão visível é o serviço (cf. Jo 13,15).

A vivência deste Amor de Jesus torna-se o critério para reconhecer as comunidades e os discípulos de Jesus, “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (v. 35). Assim, se faz necessário questionar-nos um pouco: 1) Será que poderemos nos reconhecer entre os filhinho, aos quais se dirige Jesus, ou estamos ainda na dinâmica existencial de Judas, que rompeu com a comunhão e com projeto de vida e amor de Jesus? 2) Poderemos ser distinguidos e identificados através do Amor existencial de Jesus que deve permear e performar a nossa vida? 3) Nossas comunidades alimentam-se e balizam-se pelo mesmo amor de Jesus, sendo sinais e testemunhas deste Amor?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 11 de maio de 2019

HOMILIA PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 10,27-30.




O texto que a liturgia deste quarto domingo da páscoa nos propõe encontra-se em Jo 10,27-30. O capítulo décimo do evangelho de João apresenta a temática do Pastoreio (com destaque para a alegoria do Pastor Exemplar, ou “Belo Pastor”, dos vv.11-18). Este tema era muito presente na vida de Israel. A imagem do pastor/pastoreio e do rebanho nutria a fé do povo de Deus. É importante, primeiramente, saber que o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado ao povo. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer da história foi sendo atribuída às lideranças do povo, os reis e sacerdotes, a alcunha de pastores (guias). Mas, a história mostrou que esta função não foi desempenhada “segundo o coração de Deus (cf. Ez 34)” pelas mesmas lideranças.

Tendo compreendido um pouco do contexto do pastoreio/pastor, rebanho/ovelhas se faz necessário adentrar no contexto próximo (lugar literário onde o texto está situado) para entender o discurso de Jesus. Por isso, devemos voltar o olhar para o capítulo nono, o sinal realizado por Jesus na cura do cego de nascença.  O Sinal em Jo 9 consiste na revelação de Jesus como sendo o enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz para o mundo. O cego de nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual Jesus revela a Glória de Deus, e metáfora para as lideranças do povo, as quais estavam cegas, optando conscientemente em não querer ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de Nazaré, e cegadas, igualmente pelo poder, pelos privilégios e pela mentalidade mundana. Tal é corroborado pela postura destas lideranças judaicas. As lideranças do povo, que deveriam cuidar, acolher, promover-lhes a vida e a dignidade, acabavam expulsando do meio deles a gente simples do povo, aqueles que representavam-lhes alguma ameaça, ou, porque, simplesmente viviam fora de seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro do ex-cego (Jo 9,35-37).

Nesta alegoria do Bom Pastor, o evangelista opera um contraste entre as lideranças do povo, que agiam na contramão do projeto de Deus, e Jesus, que age segundo o coração (de pastor) de Deus, mostrando-se um pastor exemplar, que realiza aquilo que as lideranças do povo deveriam fazer, e não faziam.

O contexto imediato do texto – onde a cena encontra-se situada – é o da festa da Dedicação. É verdade que há uma mudança de cenário e de festa religiosa. O evangelista situa Jesus nos arredores do templo, num clima de inverno, por ocasião da festa da dedicação do templo. Embora não fosse tão frequentada como as três maiores festas judaicas (páscoa, pentecostes e tendas), a festa da dedicação também atraía um número considerável de peregrinos a Jerusalém. Essa festa foi estabelecida por Judas Macabeu no ano 165 a.C., para celebrar a vitória dos macabeus sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, já que esse tinha sido profanado pelos gregos (cf. 1 Mc 4,36-59); desde então, essa festa entrou no calendário judaico. Acontecia em Jerusalém e durava uma semana; o texto profético utilizado na liturgia dessa festa era o capítulo 34 de Ezequiel, texto em que o profeta faz uma enfática denúncia aos maus pastores de Israel. Esses apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, de acordo com o profeta, Deus tomou a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidar ele mesmo do rebanho (cf. Ez 34,11) (cf. CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Antes de tomarmos os versículos em questão é importante recapitular, pelo menos, três ditos de Jesus. O primeiro é o contido no v.7: “Amém, amém, eu vos digo: eu sou a porta das ovelhas”. Jesus, após contar a parábola do redil das ovelhas, declara ser ele mesmo a porta pela qual devem passar as ovelhas. Jesus quer dizer que para pertencer ao rebanho (ser discípulo) e possuir a vida eterna, isto é, do dom de Deus oferecido em Jesus é necessário primeiro passar (aderir) por Jesus. Outro dito encontra-se no v.11, onde Jesus declara, “Eu sou o Bom (gr. Kalós / Belo ou ideal) pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. Ora, só quem passa pela porta que é Jesus pode ser do seu rebanho e viver do dom da vida que Ele dá. E poderá assimilar também o ser pastor com-Jesus. Mas só se, primeiro, passou por Jesus. Por fim, o terceiro dito é o que nos inserirá no horizonte do texto: “Vós, porém, não me acreditais, porque não sois das minhas ovelhas” (Jo 10, 26). Jesus diz estas palavras aos lideres do judaísmo (fariseus e sacerdotes) dada a recusa de aceitar a novidade escatológica da presença de Deus em Jesus, e ser Ele o enviado de Deus. Contextualizado o texto de hoje, então podemos toma-lo em sua inteireza.

No v. 27, Jesus declara: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem”. Ele indica aqui a condição para ser “ovelha” (discípulo) de Jesus: ouvi-lo e segui-lo. Ao dizer as condições necessárias para ser discípulo e, portanto, participar do redil, Jesus denuncia que os lideres do povo não fazem parte de seu rebanho, porque não aceitam nem querem escutá-lo, tampouco segui-lo. Escutar e seguir são dois verbos-chaves para a compreensão da mensagem de Jesus. O verbo “escutar”, no ambiente bíblico, não significa simplesmente a capacidade ou faculdade biológico-física da percepção de um som ou ruído, mas é acima de tudo dar adesão completa àquele que fala, é deixar-se transformar e, consequentemente, conduzir-se pelas suas palavras.

Acontece que a atitude da escuta orienta para outra ação fundamental do discípulo, o seguimento. O seguimento proposto por Jesus, como consequência da escuta, significa seguir as mesmos caminhos dele, com liberdade e disposição. Os interlocutores de Jesus não viviam a dinâmica do “escutar-seguir”; apegados aos ritos e preceitos, tinham sido instruídos a obedecer e cumprir normas, apenas. Ao invés de cumpridores de ordens, fazer parte das ovelhas de Jesus é ser descobridores de estradas, buscadores de novos horizontes. O Deus pregado no templo era um soberano que, através de seus representantes ditos pastores, a casta sacerdotal, ditava normas do alto; apresentando-se como pastor, Jesus revela que Deus age de maneira completamente diferente: caminha a frente, não dá ordens, apenas aponta a direção; quem escuta a sua voz e o segue, torna-se íntimo dele (cf. CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

No v.28, Jesus garante que as suas ovelhas recebem o supremo dom que Ele pode doar, a “vida eterna”, a garantia de que elas jamais se perderão ninguém poderá tirá-las de suas mãos. O que seria esta vida eterna da qual fala Jesus? A vida da era eterna é a vida que pertence ao âmbito de Deus. Não é continuação desta mesma vida. Mas um dom superior em qualidade e em dinamicidade que está em Deus mesmo. Todavia, ela não é um prêmio dado àquelas pessoas boas no futuro.

A opção por Jesus e ao seu Evangelho simbolizada pela escuta da sua voz e o seu seguimento, eterniza a vida. Não é uma vida para o pós-morte, mas é uma vida tão plena, tão cheia de sentido e autêntica, a ponto de nem a morte poder destrui-la. É a vida presente que se torna eterna à medida em que a pessoa se deixa conduzir pela voz de Jesus. Ora, o próprio Jesus, mais adiante, afirmará que a vida eterna consiste no conhecimento dele e do Pai (cf. Jo 17,2-3). Portanto, quem ouve a sua voz lhe conhece e, por sua vez, conhece também o Pai, já que Ele e o Pai são um (v. 30). Logo, vida eterna é a vida de todo homem e toda mulher que escuta a voz de Jesus e abraça o seu seguimento. Tem-se, em Jesus, e, a partir dele, a oportunidade de se viver uma vida em tons de eternidade, e, portanto, ressuscitada, desde já!

“Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um” (29-30). Nestes dois versículos Jesus declara que o que vale em relação ao Pai vale também em relação a Jesus: os dois constituem uma realidade só (o evangelista usa o termo no gênero neutro). Esta frase exprime solidariedade radical, mas não significa nem identidade de pessoa nem igualdade de ordem entre Jesus e o Pai (cf. 14,28) (cf. KONINGS, 2005, p. 212).

Por isso, Ninguém consegue arrancar as ovelhas da mão de Jesus (cf. v 28b) porque tudo o que está em sua mão está também na mão do Pai. A mão, na linguagem bíblica, é uma metáfora do poder protetor de Deus, da sua força e dos seus cuidados paternais e maternos (cf. Os 11,3; Dt 33,3; Is 43,13; 49,2; Sl 31,6; 95,4; Sb 3,1; Dn 5,23) (cf. CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Ora, o Belo Pastor do Quarto Evangelho não carrega ninguém ao colo. Pelo contrário, ele sai ao encontro das ovelhas, convive com elas, existindo um conhecimento mútuo entre eles; conduz e aponta caminhos! Da outra parte, os que aderem a Jesus, assumindo a condição de ovelhas devem apresentar a característica da escuta e manifesta-la através do seguimento a Jesus.

Por isso, o evangelho de hoje nos questiona: 1) Somos verdadeiras ovelhas de Jesus? 2) Temos ouvido (aderido) à voz (evangelho e vida) de Jesus e, portanto, seguido a exemplaridade da vida do Pastor Ideal?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 4 de maio de 2019

HOMILIA PARA O III DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 21,1-19:





O texto que a liturgia deste domingo pascal nos oferece para nossa meditação é retirado do capítulo vinte e um do Quarto Evangelho, também conhecido como epílogo do evangelho segundo João. O final original da obra joanina concentra-se o capítulo vigésimo, o qual pudemos meditar nos dois domingos anteriores (Jo 20, 1-30).

O v. 30 terminava a narrativa do encontro de Jesus ressuscitado com a comunidade afirmando que “muitos outros sinais foram realizados por Jesus, mas que não haviam sido colocados por escritos, mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo e, que, crendo, tenhais a vida em Seu Nome”.

A comunidade de João, motivada pelas dúvidas e questionamentos sob a experiência pós-pascal da comunidade com Jesus, tomou a iniciativa de redigir o capítulo vinte e um, fazendo a memória de outro fato importante relacionado a Jesus e a comunidade dos discípulos, os quais são narrados neste epílogo. As motivações foram muitas, mas retemos nossa atenção pelo menos em três: 1) a reabilitação de Pedro, que depois da oposição ao projeto de Jesus e após tê-lo negado três vezes, precisou ser evidenciada no intuito de mostrar a sua remissão e ressignificação de sua pessoa e missão diante da comunidade dos discípulos e para as gerações posteriores; 2) a questão dos outros sinais realizados por Jesus ressuscitado exigiu da comunidade exemplos concretos; 3) o encontro entre o Ressuscitado e a comunidade dos discípulos que ocorre, agora na Galileia e a céu aberto, e não mais num ambiente fechado, acenando para a realidade da condição do Ressuscitado que não se limita mais e nem se deixa reter pela comunidade (a condição do ressuscitado não é limitada ao tempo e ao espaço). E outros motivos que não são possíveis abarcar aqui (cf. CORNELIO, F. Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com)

Vamos ao texto. Dos vv.1-15 o evangelista narra uma pesca. Pedro e os outros se encontram a beira do mar da Galileia. Diferentemente das narrativas anteriores, este encontro com o Senhor ressuscitado se dá num lugar específico: a Galileia, em plena luz do dia e a céu aberto.

A Galileia, mais do que um dado geográfico, é um lugar teológico, ou seja, destinado a uma experiência de Deus. Foi o lugar daquela primeira experiência que os discípulos fizeram com Jesus; o lugar do primeiro chamado. Esta pesca, tem, pois, o sentido de reorientar os discípulos àquela primeira experiência com Jesus. A Galileia e as margens do lago são  como que um chamado para voltar e confirmar a vocação e a missão. Quem deixou-se seduzir por Jesus deve retomar a vida e os processos e continuar atraído pelo Ressuscitado. A ressurreição é oportunidade e convite a ressignificar a vida e a existência.

O evangelista faz questão de mencionar as personagens. São em número de sete. Pedro, Tomé, os irmãos Zebedeu (Tiago e João) e outros dois discípulos, dentre estes, o discípulo amado. O número sete indica a plenitude (a completude), e quer acenar para o a realidade da comunidade. Ela está completa, plena e dando os passos da experiência pascal. Mas alude também à universalidade da missão da comunidade. Ela deve chegar a todos. Do anúncio e do encontro com a Boa Nova de Jesus não deve ficar ninguém de fora. Pedro – mais uma vez movido de ímpeto – toma a iniciativa de ir pescar. E os demais, seguem com ele.

A pesca, mais do que uma informação dada pelo evangelista ou qualquer interpretação de que os discípulos voltaram a antiga função, simboliza a missão da comunidade. Todavia, a missão não pode ser tomada a peito sozinha. Este é o equivoco da comunidade, refletido no insucesso da pesca dos discípulos.

João nos informa que “naquela noite” os discípulos não pegaram nenhum peixe. O indicativo temporal “naquela noite” indica a ausência de Jesus. A noite é símbolo das trevas no Quarto Evangelho, e, por isso, da ausência de Luz. Para o evangelista, Jesus é a Luz. Ora, quando a comunidade empreende suas tarefas sem dar espaço para Jesus (sem que Ele esteja em meio), as suas iniciativas ou obras fracassam. Quando Jesus não está em nosso meio, as obras que fazemos, por bem intencionadas que sejam, perdem seu sentido. É preciso reconhecer que sem Jesus nada se pode fazer (Jo 14).

Mas, no amanhecer do novo dia, Jesus vem-lhes ao encontro na margem do lago. É preciso reconhecer o Senhor na luz do dia. Após o diálogo entre Jesus os discípulos, Ele ordena lançar as redes à direita. Esse convite aguça os sentidos da fé do discípulo amado que fazendo memória das palavras de Jesus reconhece ser o Senhor na beira da praia. Somente quem ama é capaz de fazer a memória e reconhecer que aquele que ordena lançar as redes é, de fato, o Senhor. O discípulo amado é aquele que foi capaz de reconhecer, assimilar e assumir aquela dinamicidade do Amor vivido por Jesus até o fim. Somente quem entendeu essa dinâmica radical do Amor é capaz de reconhecer o Senhor. Pedro, ao ouvir o discípulo amado lhe dá credito. Toma a roupa e veste-se, pois estava nu, ou seja, não estava preparado interna e externamente para o serviço. Por isso cinge-se após vestir-se, para indicar que está, agora, disponível para servir. E lança-se na água. É uma imagem que evoca o Batismo. Ele precisa passar pelas águas para torna-se uma nova pessoa e viver a vida-em-amor de Jesus e estar disponível para o serviço (cf. CORNELIO, F. Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

A finalidade deste relato atinge sua intencionalidade, que é a de reconhecer o Senhor nas atividades concretas e cotidianas. É nesse momento que Jesus interage com os discípulos. No hodierno da vida reconhecer a Graça de Deus que transforma a mesmice no tempo da Salvação. Na cotidianidade e na simplicidade de um trabalho até corriqueiro e rotineiro ver os sinais e a oportunidade de se fazer experiência com o ressuscitado.

O evangelista narra, então, um momento intenso entre Jesus ressuscitado e os discípulos. Uma refeição. O texto nos mostra que os discípulos trazem uma multidão de peixes para a praia e, para a surpresa deles, Jesus já lhes tinha preparado a refeição. O evangelista ressalta para a comunidade através deste gesto de Jesus a realidade da Eucaristia. No gesto singelo e profundo de uma refeição eles fazem a experiência com o ressuscitado. A refeição era o momento e o lugar privilegiado da partilha e da comunhão de vida, do amor e do servir os irmãos.

Em seguida, o narrador aponta para outro momento forte do texto. O diálogo entre Jesus e Pedro (Jo 21,15-19). Sabemos das atitude de endurecimento de Pedro, de seu ímpeto e de suas resistências frente ao projeto de vida de Jesus, até no momento da ceia. Sabemos também de sua negação no pátio da casa do sumo sacerdote, por ocasião do julgamento de Jesus. A sua consciência devia pesar, e de fato era este o estado de Simão Pedro. O diálogo que se segue com as três perguntas de Jesus ao pescador de Betsaida serve de contraponto àquela tríplice negação durante o processo contra Jesus. O diálogo é profundo. Mas podemos captar lhe a essência.

A primeira pergunta que Jesus faz a Simão pode ser entendida a partir de três perspectivas: 1) se o amor de Simão é mais intenso que dos outros, se ele ama a Jesus mais que os outros amam; 2) se amor de por Jesus é maior que amor que sente pelos seus; e, por fim, 3) se Pedro ama a Jesus mais que a seus empreendimentos, mais que a pesca? Isso é bem coerente, porque a pesca, como imagem da missão, só pode alcançar seu objetivo porque ela é fruto e motivada pelo Amor a Jesus (cf. KONINGS, 2005, p.370).

Outros dados importantes que devem chamar a nossa atenção são formas e os termos em que são formuladas as três perguntas de Jesus. João emprega dois verbos importante, Filein (Filia, amor em forma de amizade) e Agapein (agapao, amor oblativo e operativo de Jesus).

Jesus é intenso na pergunta a Pedro, perguntando se ele O amava (agapás mou). Pedro responde nas duas vezes “Sim, senhor. Tu sabes que te amo (συ οιδας οτι φιλω σε, sy oidas hoti filo sê)” que pode ser entendido assim: “Senhor tu sabes que te quero bem, que sou teu amigo”. Pedro não tem estofo para captar a profundidade da pergunta de Jesus. O amor de que fala e pretende indicar Jesus é aquela adesão, decisão e fidelidade. O discípulo só consegue dizer que é seu amigo (cf. KONINGS, 2005, p.371).

Jesus, como sempre, surpreende. Pergunta uma terceira vez a Pedro se ele o ama. Aqui, o evangelista opera uma mudança nos termos: por duas vezes o autor usou o verbo agapein (amor) na pergunta de Jesus, e por duas vezes para Pedro usou o verbo Filia/filein (amizade). A reviravolta está no fato de, agora, Jesus perguntar a Pedro se ele é seu amigo. O Senhor é que adentra nas dinâmicas de Pedro. Ele vai ao encontro do discípulo. Ele se dirige até onde o discípulo/humanidade pode ou tem condições de ir, nada mais, nada menos.

Cristo vem até onde estamos ou temos condições e estar. Ele aceita e assume a nossa medida. Mas vai até onde Pedro está; assume as dinâmicas de Simão para reorientar e fazê-lo sair de si. É Jesus quem alcança a medida de Pedro fazendo-o relembrar que somente o amor é o caminho da relação e da vida, e, por conseguinte, da missão. Então, percebe-se que o acento do diálogo entre Jesus e Simão não recai num acerto de contas com o discípulo complicado. Mas é uma forma de mostrar que mesmo com as fragilidades (misérias e limites) do apóstolo, o amor entre os dois precisa ser sempre renovado e confirmado. É do amor que depende o fruto da missão.

Então, Pedro responde que o Senhor tudo sabe. Jesus, pela terceira vez faz o convite a Simão para que este apascente Suas ovelhas. Apascentar significa cuidar, nutrir, e dar condições de vida digna para todos. Mas a base para o pastoreio é aquela fidelidade do amigo. Por isso, para exercer esta missão, Pedro precisa renovar seu amor e sua fidelidade: ser amigo do Senhor. O amigo, na tradição bíblica, é aquele que coopera com o agir de Deus (cf. KONINGS, 2005, p.371).

O Jesus de João diz, então, a Pedro sobre os rumos que hão de tomar a sua vida e sua missão, “Em verdade, em verdade te digo: quando eras jovem, tu te cingias e ias para onde querias. Quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levará para onde não queres ir”.  Em seguida, ressignifica a vida de Pedro novamente, convidando-o: “Segue-me”.

Pedro deve entender o caminho (a vida) do Senhor. A morte de Jesus está no horizonte deste caminho. Quando o discípulo, assim como Pedro, compreende o que significa a fidelidade e o amor a Jesus, que é perpassado pela experiência da vida levada, em amor, até o fim, é que poderá, então, seguir a Jesus no discipulado (cf. KONINGS, 2005, p.372).

O texto nos questiona. 1) temos ressignificado nossa vida e missão, e, por conseguinte, nossa vocação batismal no horizonte do Amor ao Senhor (é o que nos indica a narrativa da pesca nos primeiros versículos)? 2) O que há, no horizonte de minha relação com Jesus, que possa impedir-me de assumir a condição de seu amigo? 3) Tenho permitido que o Senhor se aproxime de minha medida, ou quero aproximar-me do Senhor com aquela “piedosa e açucarada” pretensão (hipocrisia) de amor?

Peçamos a graça ao Senhor de que Ele possa se aproximar de nossa medida e nos reoriente para seu Amor.

Pe. João Paulo Sillio,
Arquidiocese de Botucatu-SP.