O texto que a liturgia deste domingo
pascal nos oferece para nossa meditação é retirado do capítulo vinte e um do
Quarto Evangelho, também conhecido como epílogo do evangelho segundo João. O
final original da obra joanina concentra-se o capítulo vigésimo, o qual pudemos
meditar nos dois domingos anteriores (Jo 20, 1-30).
O v. 30 terminava a narrativa do encontro
de Jesus ressuscitado com a comunidade afirmando que “muitos outros sinais
foram realizados por Jesus, mas que não haviam sido colocados por escritos, mas
estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo e, que, crendo,
tenhais a vida em Seu Nome”.
A comunidade de João, motivada pelas
dúvidas e questionamentos sob a experiência pós-pascal da comunidade com Jesus,
tomou a iniciativa de redigir o capítulo vinte e um, fazendo a memória de outro
fato importante relacionado a Jesus e a comunidade dos discípulos, os quais são
narrados neste epílogo. As motivações foram muitas, mas retemos nossa atenção
pelo menos em três: 1) a reabilitação de Pedro, que depois da oposição ao
projeto de Jesus e após tê-lo negado três vezes, precisou ser evidenciada no
intuito de mostrar a sua remissão e ressignificação de sua pessoa e missão diante
da comunidade dos discípulos e para as gerações posteriores; 2) a questão dos
outros sinais realizados por Jesus ressuscitado exigiu da comunidade exemplos
concretos; 3) o encontro entre o Ressuscitado e a comunidade dos discípulos que
ocorre, agora na Galileia e a céu aberto, e não mais num ambiente fechado, acenando
para a realidade da condição do Ressuscitado que não se limita mais e nem se
deixa reter pela comunidade (a condição do ressuscitado não é limitada ao tempo
e ao espaço). E outros motivos que não são possíveis abarcar aqui (cf. CORNELIO, F. Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com)
Vamos ao texto. Dos vv.1-15 o evangelista
narra uma pesca. Pedro e os outros se encontram a beira do mar da Galileia.
Diferentemente das narrativas anteriores, este encontro com o Senhor ressuscitado
se dá num lugar específico: a Galileia, em plena luz do dia e a céu aberto.
A Galileia, mais do que um dado geográfico,
é um lugar teológico, ou seja, destinado a uma experiência de Deus. Foi o lugar
daquela primeira experiência que os discípulos fizeram com Jesus; o lugar do
primeiro chamado. Esta pesca, tem, pois, o sentido de reorientar os discípulos àquela
primeira experiência com Jesus. A Galileia e as margens do lago são como que um chamado para voltar e confirmar a
vocação e a missão. Quem deixou-se seduzir por Jesus deve retomar a vida e os
processos e continuar atraído pelo Ressuscitado. A ressurreição é oportunidade
e convite a ressignificar a vida e a existência.
O evangelista faz questão de mencionar as
personagens. São em número de sete. Pedro, Tomé, os irmãos Zebedeu (Tiago e
João) e outros dois discípulos, dentre estes, o discípulo amado. O número sete
indica a plenitude (a completude), e quer acenar para o a realidade da
comunidade. Ela está completa, plena e dando os passos da experiência pascal.
Mas alude também à universalidade da missão da comunidade. Ela deve chegar a
todos. Do anúncio e do encontro com a Boa Nova de Jesus não deve ficar ninguém
de fora. Pedro – mais uma vez movido de ímpeto – toma a iniciativa de ir pescar.
E os demais, seguem com ele.
A pesca, mais do que uma informação dada
pelo evangelista ou qualquer interpretação de que os discípulos voltaram a
antiga função, simboliza a missão da comunidade. Todavia, a missão não pode ser
tomada a peito sozinha. Este é o equivoco da comunidade, refletido no insucesso
da pesca dos discípulos.
João nos informa que “naquela noite” os
discípulos não pegaram nenhum peixe. O indicativo temporal “naquela noite”
indica a ausência de Jesus. A noite é símbolo das trevas no Quarto Evangelho, e,
por isso, da ausência de Luz. Para o evangelista, Jesus é a Luz. Ora, quando a
comunidade empreende suas tarefas sem dar espaço para Jesus (sem que Ele esteja
em meio), as suas iniciativas ou obras fracassam. Quando Jesus não está em nosso
meio, as obras que fazemos, por bem intencionadas que sejam, perdem seu
sentido. É preciso reconhecer que sem Jesus nada se pode fazer (Jo 14).
Mas, no amanhecer do novo dia, Jesus
vem-lhes ao encontro na margem do lago. É preciso reconhecer o Senhor na luz do
dia. Após o diálogo entre Jesus os discípulos, Ele ordena lançar as redes à
direita. Esse convite aguça os sentidos da fé do discípulo amado que fazendo
memória das palavras de Jesus reconhece ser o Senhor na beira da praia. Somente
quem ama é capaz de fazer a memória e reconhecer que aquele que ordena lançar
as redes é, de fato, o Senhor. O discípulo amado é aquele que foi capaz de
reconhecer, assimilar e assumir aquela dinamicidade do Amor vivido por Jesus
até o fim. Somente quem entendeu essa dinâmica radical do Amor é capaz de reconhecer
o Senhor. Pedro, ao ouvir o discípulo amado lhe dá credito. Toma a roupa e
veste-se, pois estava nu, ou seja, não estava preparado interna e externamente
para o serviço. Por isso cinge-se após vestir-se, para indicar que está, agora,
disponível para servir. E lança-se na água. É uma imagem que evoca o Batismo.
Ele precisa passar pelas águas para torna-se uma nova pessoa e viver a vida-em-amor
de Jesus e estar disponível para o serviço (cf. CORNELIO, F. Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
A finalidade deste relato atinge sua intencionalidade,
que é a de reconhecer o Senhor nas atividades concretas e cotidianas. É nesse
momento que Jesus interage com os discípulos. No hodierno da vida reconhecer a
Graça de Deus que transforma a mesmice no tempo da Salvação. Na cotidianidade e
na simplicidade de um trabalho até corriqueiro e rotineiro ver os sinais e a
oportunidade de se fazer experiência com o ressuscitado.
O evangelista narra, então, um momento
intenso entre Jesus ressuscitado e os discípulos. Uma refeição. O texto nos
mostra que os discípulos trazem uma multidão de peixes para a praia e, para a
surpresa deles, Jesus já lhes tinha preparado a refeição. O evangelista
ressalta para a comunidade através deste gesto de Jesus a realidade da
Eucaristia. No gesto singelo e profundo de uma refeição eles fazem a
experiência com o ressuscitado. A refeição era o momento e o lugar privilegiado
da partilha e da comunhão de vida, do amor e do servir os irmãos.
Em seguida, o narrador aponta para outro
momento forte do texto. O diálogo entre Jesus e Pedro (Jo 21,15-19). Sabemos
das atitude de endurecimento de Pedro, de seu ímpeto e de suas resistências
frente ao projeto de vida de Jesus, até no momento da ceia. Sabemos também de
sua negação no pátio da casa do sumo sacerdote, por ocasião do julgamento de
Jesus. A sua consciência devia pesar, e de fato era este o estado de Simão
Pedro. O diálogo que se segue com as três perguntas de Jesus ao pescador de Betsaida
serve de contraponto àquela tríplice negação durante o processo contra Jesus. O
diálogo é profundo. Mas podemos captar lhe a essência.
A primeira pergunta que Jesus faz a Simão
pode ser entendida a partir de três perspectivas: 1) se o amor de Simão é mais
intenso que dos outros, se ele ama a Jesus mais que os outros amam; 2) se amor
de por Jesus é maior que amor que sente pelos seus; e, por fim, 3) se Pedro ama
a Jesus mais que a seus empreendimentos, mais que a pesca? Isso é bem coerente,
porque a pesca, como imagem da missão, só pode alcançar seu objetivo porque ela
é fruto e motivada pelo Amor a Jesus (cf. KONINGS, 2005, p.370).
Outros dados importantes que devem chamar
a nossa atenção são formas e os termos em que são formuladas as três perguntas
de Jesus. João emprega dois verbos importante, Filein (Filia, amor em forma de amizade)
e Agapein (agapao, amor oblativo e operativo de Jesus).
Jesus é intenso na pergunta a Pedro, perguntando
se ele O amava (agapás mou). Pedro responde nas duas vezes “Sim, senhor. Tu
sabes que te amo (συ οιδας οτι φιλω σε, sy oidas hoti filo sê)” que pode ser
entendido assim: “Senhor tu sabes que te quero bem, que sou teu amigo”. Pedro
não tem estofo para captar a profundidade da pergunta de Jesus. O amor de que fala e
pretende indicar Jesus é aquela adesão, decisão e fidelidade. O discípulo só
consegue dizer que é seu amigo (cf. KONINGS, 2005, p.371).
Jesus, como sempre, surpreende. Pergunta
uma terceira vez a Pedro se ele o ama. Aqui, o evangelista opera uma mudança nos
termos: por duas vezes o autor usou o verbo agapein (amor) na pergunta de
Jesus, e por duas vezes para Pedro usou o verbo Filia/filein (amizade). A
reviravolta está no fato de, agora, Jesus perguntar a Pedro se ele é seu amigo.
O Senhor é que adentra nas dinâmicas de Pedro. Ele vai ao encontro do discípulo.
Ele se dirige até onde o discípulo/humanidade pode ou tem condições de ir, nada
mais, nada menos.
Cristo vem até onde estamos ou temos
condições e estar. Ele aceita e assume a nossa medida. Mas vai até onde Pedro
está; assume as dinâmicas de Simão para reorientar e fazê-lo sair de si. É
Jesus quem alcança a medida de Pedro fazendo-o relembrar que somente o amor é o
caminho da relação e da vida, e, por conseguinte, da missão. Então, percebe-se
que o acento do diálogo entre Jesus e Simão não recai num acerto de contas com
o discípulo complicado. Mas é uma forma de mostrar que mesmo com as fragilidades
(misérias e limites) do apóstolo, o amor entre os dois precisa ser sempre
renovado e confirmado. É do amor que depende o fruto da missão.
Então, Pedro responde que o Senhor tudo
sabe. Jesus, pela terceira vez faz o convite a Simão para que este apascente Suas
ovelhas. Apascentar significa cuidar, nutrir, e dar condições de vida digna
para todos. Mas a base para o pastoreio é aquela fidelidade do amigo. Por isso,
para exercer esta missão, Pedro precisa renovar seu amor e sua fidelidade: ser
amigo do Senhor. O amigo, na tradição bíblica, é aquele que coopera com o agir
de Deus (cf. KONINGS, 2005, p.371).
O Jesus de João diz, então, a Pedro sobre
os rumos que hão de tomar a sua vida e sua missão, “Em verdade, em verdade te
digo: quando eras jovem, tu te cingias e ias para onde querias. Quando fores
velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levará para onde não queres
ir”. Em seguida, ressignifica a vida de
Pedro novamente, convidando-o: “Segue-me”.
Pedro deve entender o caminho (a vida) do
Senhor. A morte de Jesus está no horizonte deste caminho. Quando o discípulo,
assim como Pedro, compreende o que significa a fidelidade e o amor a Jesus, que
é perpassado pela experiência da vida levada, em amor, até o fim, é que poderá,
então, seguir a Jesus no discipulado (cf. KONINGS, 2005, p.372).
O texto nos questiona. 1) temos
ressignificado nossa vida e missão, e, por conseguinte, nossa vocação batismal
no horizonte do Amor ao Senhor (é o que nos indica a narrativa da pesca nos
primeiros versículos)? 2) O que há, no horizonte de minha relação com Jesus,
que possa impedir-me de assumir a condição de seu amigo? 3) Tenho permitido que
o Senhor se aproxime de minha medida, ou quero aproximar-me do Senhor com
aquela “piedosa e açucarada” pretensão (hipocrisia) de amor?
Peçamos a graça ao Senhor de que Ele possa
se aproximar de nossa medida e nos reoriente para seu Amor.
Pe. João Paulo Sillio,
Arquidiocese de Botucatu-SP.
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