sábado, 4 de maio de 2019

HOMILIA PARA O III DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 21,1-19:





O texto que a liturgia deste domingo pascal nos oferece para nossa meditação é retirado do capítulo vinte e um do Quarto Evangelho, também conhecido como epílogo do evangelho segundo João. O final original da obra joanina concentra-se o capítulo vigésimo, o qual pudemos meditar nos dois domingos anteriores (Jo 20, 1-30).

O v. 30 terminava a narrativa do encontro de Jesus ressuscitado com a comunidade afirmando que “muitos outros sinais foram realizados por Jesus, mas que não haviam sido colocados por escritos, mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo e, que, crendo, tenhais a vida em Seu Nome”.

A comunidade de João, motivada pelas dúvidas e questionamentos sob a experiência pós-pascal da comunidade com Jesus, tomou a iniciativa de redigir o capítulo vinte e um, fazendo a memória de outro fato importante relacionado a Jesus e a comunidade dos discípulos, os quais são narrados neste epílogo. As motivações foram muitas, mas retemos nossa atenção pelo menos em três: 1) a reabilitação de Pedro, que depois da oposição ao projeto de Jesus e após tê-lo negado três vezes, precisou ser evidenciada no intuito de mostrar a sua remissão e ressignificação de sua pessoa e missão diante da comunidade dos discípulos e para as gerações posteriores; 2) a questão dos outros sinais realizados por Jesus ressuscitado exigiu da comunidade exemplos concretos; 3) o encontro entre o Ressuscitado e a comunidade dos discípulos que ocorre, agora na Galileia e a céu aberto, e não mais num ambiente fechado, acenando para a realidade da condição do Ressuscitado que não se limita mais e nem se deixa reter pela comunidade (a condição do ressuscitado não é limitada ao tempo e ao espaço). E outros motivos que não são possíveis abarcar aqui (cf. CORNELIO, F. Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com)

Vamos ao texto. Dos vv.1-15 o evangelista narra uma pesca. Pedro e os outros se encontram a beira do mar da Galileia. Diferentemente das narrativas anteriores, este encontro com o Senhor ressuscitado se dá num lugar específico: a Galileia, em plena luz do dia e a céu aberto.

A Galileia, mais do que um dado geográfico, é um lugar teológico, ou seja, destinado a uma experiência de Deus. Foi o lugar daquela primeira experiência que os discípulos fizeram com Jesus; o lugar do primeiro chamado. Esta pesca, tem, pois, o sentido de reorientar os discípulos àquela primeira experiência com Jesus. A Galileia e as margens do lago são  como que um chamado para voltar e confirmar a vocação e a missão. Quem deixou-se seduzir por Jesus deve retomar a vida e os processos e continuar atraído pelo Ressuscitado. A ressurreição é oportunidade e convite a ressignificar a vida e a existência.

O evangelista faz questão de mencionar as personagens. São em número de sete. Pedro, Tomé, os irmãos Zebedeu (Tiago e João) e outros dois discípulos, dentre estes, o discípulo amado. O número sete indica a plenitude (a completude), e quer acenar para o a realidade da comunidade. Ela está completa, plena e dando os passos da experiência pascal. Mas alude também à universalidade da missão da comunidade. Ela deve chegar a todos. Do anúncio e do encontro com a Boa Nova de Jesus não deve ficar ninguém de fora. Pedro – mais uma vez movido de ímpeto – toma a iniciativa de ir pescar. E os demais, seguem com ele.

A pesca, mais do que uma informação dada pelo evangelista ou qualquer interpretação de que os discípulos voltaram a antiga função, simboliza a missão da comunidade. Todavia, a missão não pode ser tomada a peito sozinha. Este é o equivoco da comunidade, refletido no insucesso da pesca dos discípulos.

João nos informa que “naquela noite” os discípulos não pegaram nenhum peixe. O indicativo temporal “naquela noite” indica a ausência de Jesus. A noite é símbolo das trevas no Quarto Evangelho, e, por isso, da ausência de Luz. Para o evangelista, Jesus é a Luz. Ora, quando a comunidade empreende suas tarefas sem dar espaço para Jesus (sem que Ele esteja em meio), as suas iniciativas ou obras fracassam. Quando Jesus não está em nosso meio, as obras que fazemos, por bem intencionadas que sejam, perdem seu sentido. É preciso reconhecer que sem Jesus nada se pode fazer (Jo 14).

Mas, no amanhecer do novo dia, Jesus vem-lhes ao encontro na margem do lago. É preciso reconhecer o Senhor na luz do dia. Após o diálogo entre Jesus os discípulos, Ele ordena lançar as redes à direita. Esse convite aguça os sentidos da fé do discípulo amado que fazendo memória das palavras de Jesus reconhece ser o Senhor na beira da praia. Somente quem ama é capaz de fazer a memória e reconhecer que aquele que ordena lançar as redes é, de fato, o Senhor. O discípulo amado é aquele que foi capaz de reconhecer, assimilar e assumir aquela dinamicidade do Amor vivido por Jesus até o fim. Somente quem entendeu essa dinâmica radical do Amor é capaz de reconhecer o Senhor. Pedro, ao ouvir o discípulo amado lhe dá credito. Toma a roupa e veste-se, pois estava nu, ou seja, não estava preparado interna e externamente para o serviço. Por isso cinge-se após vestir-se, para indicar que está, agora, disponível para servir. E lança-se na água. É uma imagem que evoca o Batismo. Ele precisa passar pelas águas para torna-se uma nova pessoa e viver a vida-em-amor de Jesus e estar disponível para o serviço (cf. CORNELIO, F. Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

A finalidade deste relato atinge sua intencionalidade, que é a de reconhecer o Senhor nas atividades concretas e cotidianas. É nesse momento que Jesus interage com os discípulos. No hodierno da vida reconhecer a Graça de Deus que transforma a mesmice no tempo da Salvação. Na cotidianidade e na simplicidade de um trabalho até corriqueiro e rotineiro ver os sinais e a oportunidade de se fazer experiência com o ressuscitado.

O evangelista narra, então, um momento intenso entre Jesus ressuscitado e os discípulos. Uma refeição. O texto nos mostra que os discípulos trazem uma multidão de peixes para a praia e, para a surpresa deles, Jesus já lhes tinha preparado a refeição. O evangelista ressalta para a comunidade através deste gesto de Jesus a realidade da Eucaristia. No gesto singelo e profundo de uma refeição eles fazem a experiência com o ressuscitado. A refeição era o momento e o lugar privilegiado da partilha e da comunhão de vida, do amor e do servir os irmãos.

Em seguida, o narrador aponta para outro momento forte do texto. O diálogo entre Jesus e Pedro (Jo 21,15-19). Sabemos das atitude de endurecimento de Pedro, de seu ímpeto e de suas resistências frente ao projeto de vida de Jesus, até no momento da ceia. Sabemos também de sua negação no pátio da casa do sumo sacerdote, por ocasião do julgamento de Jesus. A sua consciência devia pesar, e de fato era este o estado de Simão Pedro. O diálogo que se segue com as três perguntas de Jesus ao pescador de Betsaida serve de contraponto àquela tríplice negação durante o processo contra Jesus. O diálogo é profundo. Mas podemos captar lhe a essência.

A primeira pergunta que Jesus faz a Simão pode ser entendida a partir de três perspectivas: 1) se o amor de Simão é mais intenso que dos outros, se ele ama a Jesus mais que os outros amam; 2) se amor de por Jesus é maior que amor que sente pelos seus; e, por fim, 3) se Pedro ama a Jesus mais que a seus empreendimentos, mais que a pesca? Isso é bem coerente, porque a pesca, como imagem da missão, só pode alcançar seu objetivo porque ela é fruto e motivada pelo Amor a Jesus (cf. KONINGS, 2005, p.370).

Outros dados importantes que devem chamar a nossa atenção são formas e os termos em que são formuladas as três perguntas de Jesus. João emprega dois verbos importante, Filein (Filia, amor em forma de amizade) e Agapein (agapao, amor oblativo e operativo de Jesus).

Jesus é intenso na pergunta a Pedro, perguntando se ele O amava (agapás mou). Pedro responde nas duas vezes “Sim, senhor. Tu sabes que te amo (συ οιδας οτι φιλω σε, sy oidas hoti filo sê)” que pode ser entendido assim: “Senhor tu sabes que te quero bem, que sou teu amigo”. Pedro não tem estofo para captar a profundidade da pergunta de Jesus. O amor de que fala e pretende indicar Jesus é aquela adesão, decisão e fidelidade. O discípulo só consegue dizer que é seu amigo (cf. KONINGS, 2005, p.371).

Jesus, como sempre, surpreende. Pergunta uma terceira vez a Pedro se ele o ama. Aqui, o evangelista opera uma mudança nos termos: por duas vezes o autor usou o verbo agapein (amor) na pergunta de Jesus, e por duas vezes para Pedro usou o verbo Filia/filein (amizade). A reviravolta está no fato de, agora, Jesus perguntar a Pedro se ele é seu amigo. O Senhor é que adentra nas dinâmicas de Pedro. Ele vai ao encontro do discípulo. Ele se dirige até onde o discípulo/humanidade pode ou tem condições de ir, nada mais, nada menos.

Cristo vem até onde estamos ou temos condições e estar. Ele aceita e assume a nossa medida. Mas vai até onde Pedro está; assume as dinâmicas de Simão para reorientar e fazê-lo sair de si. É Jesus quem alcança a medida de Pedro fazendo-o relembrar que somente o amor é o caminho da relação e da vida, e, por conseguinte, da missão. Então, percebe-se que o acento do diálogo entre Jesus e Simão não recai num acerto de contas com o discípulo complicado. Mas é uma forma de mostrar que mesmo com as fragilidades (misérias e limites) do apóstolo, o amor entre os dois precisa ser sempre renovado e confirmado. É do amor que depende o fruto da missão.

Então, Pedro responde que o Senhor tudo sabe. Jesus, pela terceira vez faz o convite a Simão para que este apascente Suas ovelhas. Apascentar significa cuidar, nutrir, e dar condições de vida digna para todos. Mas a base para o pastoreio é aquela fidelidade do amigo. Por isso, para exercer esta missão, Pedro precisa renovar seu amor e sua fidelidade: ser amigo do Senhor. O amigo, na tradição bíblica, é aquele que coopera com o agir de Deus (cf. KONINGS, 2005, p.371).

O Jesus de João diz, então, a Pedro sobre os rumos que hão de tomar a sua vida e sua missão, “Em verdade, em verdade te digo: quando eras jovem, tu te cingias e ias para onde querias. Quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levará para onde não queres ir”.  Em seguida, ressignifica a vida de Pedro novamente, convidando-o: “Segue-me”.

Pedro deve entender o caminho (a vida) do Senhor. A morte de Jesus está no horizonte deste caminho. Quando o discípulo, assim como Pedro, compreende o que significa a fidelidade e o amor a Jesus, que é perpassado pela experiência da vida levada, em amor, até o fim, é que poderá, então, seguir a Jesus no discipulado (cf. KONINGS, 2005, p.372).

O texto nos questiona. 1) temos ressignificado nossa vida e missão, e, por conseguinte, nossa vocação batismal no horizonte do Amor ao Senhor (é o que nos indica a narrativa da pesca nos primeiros versículos)? 2) O que há, no horizonte de minha relação com Jesus, que possa impedir-me de assumir a condição de seu amigo? 3) Tenho permitido que o Senhor se aproxime de minha medida, ou quero aproximar-me do Senhor com aquela “piedosa e açucarada” pretensão (hipocrisia) de amor?

Peçamos a graça ao Senhor de que Ele possa se aproximar de nossa medida e nos reoriente para seu Amor.

Pe. João Paulo Sillio,
Arquidiocese de Botucatu-SP.

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