sábado, 27 de abril de 2019

HOMILIA PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 20,19-31.




A experiência com o Ressuscitado acontece em seu mais profundo sentido, segundo o relato que somos hoje convidados a meditar na liturgia do segundo domingo da páscoa. Estamos ainda no capítulo vigésimo do Quarto Evangelho. Mas numa dimensão cronológica diferente daquela do Domingo de Páscoa. Não estamos mais no horizonte daquela “madrugada, quando ainda estava escuro”, mas no entardecer daquele Primeiro Dia. No entanto, é necessário recordar alguns elementos do texto da liturgia do domingo passado, do qual o texto de hoje é continuidade.

O evangelista apresentava a comunidade de discípulos e discípulas completamente desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (cf. Jo 20,1-3). Naquela ocasião, o catequista acenava para os sinais de uma nova criação; um mundo em gestação, embora ainda envolto no caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (cf. Jo 20,1).  Recordemos os Três personagens que protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o Discípulo Amado; ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles interpretou a ausência do corpo do sepulcro como sinal da ressurreição e acreditou, o Discípulo Amado (cf. Jo 20,8). Eles representam, portanto, a comunidade.

João situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia. Note-se, no entanto, que já não é mais a manhã do primeiro dia, após o sábado, como foi descrito no começo da seção. Aquele indicativo temporal servia de indicio de que a comunidade dos discípulos ainda não havia conseguido desvencilhar-se dos costumes judaicos do repouso sabático e da Lei mosaica, e, portanto, não desfrutava da realidade da ressurreição. A partir deste novo indicativo temporal (ao anoitecer ou “ao entardecer”), João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Sinal, também, de que ela já estava dedicando aquele “primeiro dia” para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Quanto ao espaço, já não se situa no sepulcro, mas no espaço da própria comunidade. Sinal de que ela venceu o sepulcro (cf. KONINGS, 2005, p. 354).

No entanto, o evangelista menciona o estado em que se encontrava aquela comunidade. Encontravam-se fechados, com medo dos Judeus. Embora se recompondo, essa comunidade continua em crise, o que se evidencia pela situação de medo informada pelo evangelista. Medo amplamente experimentado pela comunidade joanéia (7,13; 9,22; 12,42), hostilizada pela sinagoga e pelo mundo. Ora, esse tema do “medo” evoca a situação da comunidade joanina em relação à sinagoga (9,22), naqueles anos 90. A aparição de 20,19-23 é uma mensagem de reconforto para a comunidade do fim do século I (e de todos os tempos), uma vez que estamos na dinâmica da “fusão dos horizontes” (cf. KONINGS, 2005, p. 354)”. É típico de João usar o termo “judeus” ao referir-se às autoridades.

Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor. Sem a presença do Ressuscitado toda a comunidade perece e sua mensagem é bloqueada; as portas fechadas impedem a boa nova de ecoar (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).


O discípulo deve superar este medo e abrir-se à fé; só assim toma-se disponível para o dom da paz e da alegria, os dois dons que Jesus tinha prometido aos seus no seu discurso de testamento. A paz de Cristo é o contrário do medo (14,27; 16,33). A paz e a alegria são o dom do Cristo ressuscitado (v. 20-21), mas são também condição para reconhecê-lo (MAGGIONI, 1998, p. 484).

Aconteceu, então, que Jesus põe-se no meio deles. Importante informação dada pelo evangelista, pois ela indica que na comunidade do ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia nem relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro. Na Memória do Ressuscitado celebrada pela comunidade ninguém é maior e todos estão referenciados – numa circularidade – ao Senhor ressuscitado. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado opera neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Jesus lhes comunica a Paz, informa o evangelista. “A paz esteja convosco (gr. ειρήνη υμιν: Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas a repetição por mais duas vezes acena para algo mais profundo. Ela possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (Paz) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo o pagamento (o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início (cf. KONINGS, 2005, p. 355).



O Jesus joanino, ao desejar a Paz (hbr. Shalom) pretende ensinar que através do Dom de sua vida vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada!

Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. Sua condição ressuscitada traz as marcas de sua Paixão.  A cruz não foi o fim. Essa atitude de Jesus leva os discípulos à restituição da fé, uma vez que o principal motivo da desilusão e decepção deles foi o escândalo de um messias crucificado. Ora, a cruz não foi um acidente na vida de Jesus, e não pode ser esquecida pela comunidade; pelo contrário, foi consequência de suas opções e do seu jeito de viver, e as opções da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os discípulos estejam sempre, em todos os momentos da história, familiarizados com a cruz, não como símbolo ou adorno, mas como disposição de dar a vida por amor, como fez Jesus.  Mais do que estigmas, as mãos e o lado aqui são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré que continuam no Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Estando Jesus ao centro, novamente ele diz “A paz esteja convosco” e os envia em Missão. “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio”. A missão de Jesus estava fundamentada na incumbência do Pai; a deles, na incumbência de Jesus, que constitui com o Pai uma unidade. Aqui no v. 21 encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar) e a conjunção kathôs (como). Esta conjunção exprime semelhança e causalidade: a missão dos discípulos é a continuação daquela que Jesus recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem (MAGGIONI, 1998, p.485).

Como a ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos discípulos, ao enviá-los, ele sopra sobre eles o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus sopra nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Ressurreição de Jesus acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. Não é um simples carisma que recebem, algo que vem acrescentar-se à sua vida. É sopro divino, vida nova que recebem. É uma nova criação (cf. Sl 104,30). Sua vida tem outra força que antes.

O Evangelho do domingo passado mostrava a nova criação em sua primeira fase; hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o sopro de vida comunicado pelo Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já não age como um vigilante, olhando de cima, mas se faz presente no meio da comunidade, deixando-se tocar, vivendo como um igual. O verbo soprar (gr. έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. A primeira qualificação de Jesus em João era: o “Cordeiro que tira o pecado do mundo” (1,29). Agora, ele dá seu Espírito aos discípulos para que, ocupando seu lugar no mundo, participem dessa missão. Perdoar é bem compreendido. Mas o que significa reter? Pode ser um indicativo do sacramento da reconciliação? Quanto a isso, não. Reter (gr. Krateîn) “significa simplesmente declarar que alguém ainda não possui a fé que conduz ao perdão dos pecados (BEUTLER, 2016, p. 356)”.

Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

João insere uma nota importante. A comunidade dos discípulos não está completa. Falta Tomé. Se faz necessário compreender bem esta personagem, que desde muito tempo foi mal considerada. Retomemos a informação de que o motivo pelo qual a comunidade estava reunida à portas fechadas foi o medo; ora, se Tomé não estava com eles é porque não tinha medo e, portanto, circulava livremente e sem temor algum. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. Todavia, o erro de Tomé foi o de não aceitar o testemunho da comunidade!

Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), informa-nos João, Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz e, então se dirige a Tomé. Convida-o, quase que literalmente usando as palavras daquele discípulo, a executar o gesto que havia pedido como prova.

Tomé ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18) e cria, assim, uma inclusão que abarca e resume o Evangelho segundo João inteiro (BEUTLER, 2016, p. 359).

Aqui revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito questionadores chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

Tomé era chamado Dídimo (em grego: Dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o evangelista não apresenta o irmão gêmeo dele. Quem é o gêmeo de Tomé? Os personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho, a função de paradigmas para a comunidade e os leitores. Ou seja, os personagens anônimos servem para que os leitores  assumam aquela identidade; se identifiquem com ela. Um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto. Mas que também reconheçam a tentação da autossuficiência e do apego a si, ao recusar o testemunho (o modo de vida) da comunidade.

 “Para a geração apostólica, o acesso a Jesus era ainda possível mediante um encontro histórico, físico: eles podiam vê-lo, ouvi-lo, apalpá-lo. A geração seguinte devia aceitar a proclamação da mensagem da ressurreição. Tomé representa a transição da fé dos apóstolos para a fé da comunidade pós-apostólica. Ele deveria ter aceito a mensagem da ressurreição da parte dos dez e assim “ser crente”, em vez de, “incrédulo”, exigir sinais visíveis do Ressuscitado (BEUTLER, 2016, p. 359)”.

O capítulo 20 do evangelho joanino corresponde ao final original do Quarto Evangelho. Nesta seção o leitor-discípulo é convidado a tomar parte da experiência da comunidade dos discípulos com Jesus ressuscitado. Não se tratam de aparições, propriamente, mas de Encontros com o Crucificado-Ressuscitado. É evidente, que para aquelas testemunhas oculares não se constituiu tarefa fácil encarar as horas e os dias seguintes ao “acontecido” com Jesus de Nazaré. Por isso, o fiel e leitor do Quarto Evangelho, ou melhor, a geração posterior (na qual nos incluímos), deverá colocar-se no mesmo horizonte daquelas testemunhas oculares. Caberá a esta geração “Crer sem ver”, e por isso ser considerados o bem-aventurados por isso. Fundido os horizontes, o discípulo-leitor é convidado a tomar parte da narrativa da experiência da comunidade dos Doze. “Para João, morte e ressurreição não são realidades estanques, mas dois aspectos inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus (KONINGS, 2005, p. 346)”.

Diante desta belíssima catequese joanina, três perguntas se fazem necessárias: 1) Estamos no segundo domingo da Páscoa. Já faz uma semana que estamos envolvidos pela ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição interior: amedrontados e fechados, ou alegres e reedificados na Fé, pela virtude do Ressuscitado? 2) Quais atitudes de Tomé encontram lugar em mim, com toda a ambivalência daquela personagem? 3) Tomo consciência da importância que a vida e o testemunho da Comunidade tem para minha vivência de Fé, como matriz e geradora desta mesma Fé?

Arrisco uma Quarta pergunta: nossas comunidades encontram-se ressuscitadas, ou seja, conseguem testemunhar Cristo Ressuscitado para o mundo, e, com isso, viver a missão confiada no v.21?

Feliz Páscoa!

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

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