A
experiência com o Ressuscitado acontece em seu mais profundo sentido, segundo o
relato que somos hoje convidados a meditar na liturgia do segundo domingo da
páscoa. Estamos ainda no capítulo vigésimo do Quarto Evangelho. Mas numa
dimensão cronológica diferente daquela do Domingo de Páscoa. Não estamos mais
no horizonte daquela “madrugada, quando ainda estava escuro”, mas no entardecer
daquele Primeiro Dia. No entanto, é necessário recordar alguns elementos do
texto da liturgia do domingo passado, do qual o texto de hoje é continuidade.
O
evangelista apresentava a comunidade de discípulos e discípulas completamente
desnorteada, não apenas porque o Senhor e mestre fora morto, mas porque até
mesmo o seu cadáver parecia ter sido roubado (cf. Jo 20,1-3). Naquela ocasião,
o catequista acenava para os sinais de uma nova criação; um mundo em gestação,
embora ainda envolto no caos, simbolizado pelo escuro da madrugada (cf. Jo
20,1). Recordemos os Três personagens
que protagonizaram aquele relato: Maria Madalena, Pedro e o Discípulo Amado;
ambos fizeram a constatação do sepulcro vazio, mas somente um deles interpretou
a ausência do corpo do sepulcro como sinal da ressurreição e acreditou, o
Discípulo Amado (cf. Jo 20,8). Eles representam, portanto, a comunidade.
João
situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A
narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia.
Note-se, no entanto, que já não é mais a manhã do primeiro dia, após o sábado,
como foi descrito no começo da seção. Aquele indicativo temporal servia de
indicio de que a comunidade dos discípulos ainda não havia conseguido
desvencilhar-se dos costumes judaicos do repouso sabático e da Lei mosaica, e,
portanto, não desfrutava da realidade da ressurreição. A partir deste novo
indicativo temporal (ao anoitecer ou “ao entardecer”), João dá mostras de que a
comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo,
processualmente, a experiência da ressurreição. Sinal, também, de que ela já
estava dedicando aquele “primeiro dia” para celebrar a Memória do Senhor
Ressuscitado. Quanto ao espaço, já não se situa no sepulcro, mas no espaço da
própria comunidade. Sinal de que ela venceu o sepulcro (cf. KONINGS, 2005, p.
354).
No
entanto, o evangelista menciona o estado em que se encontrava aquela
comunidade. Encontravam-se fechados, com medo dos Judeus. Embora se recompondo,
essa comunidade continua em crise, o que se evidencia pela situação de medo
informada pelo evangelista. Medo amplamente experimentado pela comunidade
joanéia (7,13; 9,22; 12,42), hostilizada pela sinagoga e pelo mundo. Ora, esse
tema do “medo” evoca a situação da comunidade joanina em relação à sinagoga
(9,22), naqueles anos 90. A aparição de 20,19-23 é uma mensagem de reconforto
para a comunidade do fim do século I (e de todos os tempos), uma vez que
estamos na dinâmica da “fusão dos horizontes” (cf. KONINGS, 2005, p. 354)”. É
típico de João usar o termo “judeus” ao referir-se às autoridades.
Na
Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada
acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O
medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de
alguns. Acena também, para a ausência do Senhor. Sem a presença do Ressuscitado
toda a comunidade perece e sua mensagem é bloqueada; as portas fechadas impedem
a boa nova de ecoar (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
O
discípulo deve superar este medo e abrir-se à fé; só assim toma-se disponível
para o dom da paz e da alegria, os dois dons que Jesus tinha prometido aos seus
no seu discurso de testamento. A paz de Cristo é o contrário do medo (14,27;
16,33). A paz e a alegria são o dom do Cristo ressuscitado (v. 20-21), mas são
também condição para reconhecê-lo (MAGGIONI, 1998, p. 484).
Aconteceu,
então, que Jesus põe-se no meio deles. Importante informação dada pelo
evangelista, pois ela indica que na comunidade do ressuscitado (e na comunidade
joanina) não existe supremacia nem relações piramidais. Ela é uma comunidade
igualitária e livre, tendo um único centro. Na Memória do Ressuscitado
celebrada pela comunidade ninguém é maior e todos estão referenciados – numa
circularidade – ao Senhor ressuscitado. Para uma comunidade viver realmente os
propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu
existir esteja o Ressuscitado. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles),
o Ressuscitado opera neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro
antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o
ânimo da comunidade fracassada (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in
porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
Jesus
lhes comunica a Paz, informa o evangelista. “A paz esteja convosco (gr. ειρήνη υμιν: Eiréne
ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas
a repetição por mais duas vezes acena para algo mais profundo. Ela possui
conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico,
alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O
Shalom (Paz) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim),
cujo o pagamento (o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a
Paz. Aqui, parece implicar também a
realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus
haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele
lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo
mencionado no início (cf. KONINGS, 2005, p. 355).
O
Jesus joanino, ao desejar a Paz (hbr. Shalom) pretende ensinar que através do Dom de
sua vida vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As
promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada!
Jesus
mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela
lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e
Ressuscitado. Sua condição ressuscitada traz as marcas de sua Paixão. A cruz não foi o fim. Essa atitude de Jesus leva
os discípulos à restituição da fé, uma vez que o principal motivo da desilusão
e decepção deles foi o escândalo de um messias crucificado. Ora, a cruz não foi
um acidente na vida de Jesus, e não pode ser esquecida pela comunidade; pelo
contrário, foi consequência de suas opções e do seu jeito de viver, e as opções
da comunidade devem ser as mesmas. Portanto, é necessário que os discípulos
estejam sempre, em todos os momentos da história, familiarizados com a cruz,
não como símbolo ou adorno, mas como disposição de dar a vida por amor, como
fez Jesus. Mais do que estigmas, as mãos
e o lado aqui são os sinais da identidade de Jesus de Nazaré que continuam no
Cristo Ressuscitado, porque é a mesma pessoa. E os principais traços
característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são
sinais do serviço, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração (CORNÉLIO,
F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
Estando
Jesus ao centro, novamente ele diz “A paz esteja convosco” e os envia em
Missão. “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio”. A missão de Jesus
estava fundamentada na incumbência do Pai; a deles, na incumbência de Jesus,
que constitui com o Pai uma unidade. Aqui no v. 21 encontramos três termos
importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar) e a conjunção kathôs
(como). Esta conjunção exprime semelhança e causalidade: a missão dos
discípulos é a continuação daquela que Jesus recebeu do Pai e encontra nela seu
modelo e origem (MAGGIONI, 1998, p.485).
Como
a ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos
discípulos, ao enviá-los, ele sopra sobre eles o seu Espírito. O gesto de
soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus sopra nas narinas do
vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na
Ressurreição de Jesus acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a
comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. Não é um simples
carisma que recebem, algo que vem acrescentar-se à sua vida. É sopro divino,
vida nova que recebem. É uma nova criação (cf. Sl 104,30). Sua vida tem outra
força que antes.
O
Evangelho do domingo passado mostrava a nova criação em sua primeira fase;
hoje, essa criação chega ao seu ponto alto com o sopro de vida comunicado pelo
Ressuscitado. Nessa nova criação, o “Criador” já não age como um vigilante,
olhando de cima, mas se faz presente no meio da comunidade, deixando-se tocar,
vivendo como um igual. O verbo soprar (gr. έμφυσάω – emfysáo) significa
doação de vida. Assim, podemos dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a
humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também
comunicadora dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade
alinhada ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir, viver
e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro (CORNÉLIO, F.
Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
“A
quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes,
eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela
continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. A
primeira qualificação de Jesus em João era: o “Cordeiro que tira o pecado do
mundo” (1,29). Agora, ele dá seu Espírito aos discípulos para que, ocupando seu
lugar no mundo, participem dessa missão. Perdoar é bem compreendido. Mas o que
significa reter? Pode ser um indicativo do sacramento da reconciliação? Quanto
a isso, não. Reter (gr. Krateîn) “significa simplesmente declarar que alguém
ainda não possui a fé que conduz ao perdão dos pecados (BEUTLER, 2016, p. 356)”.
Jesus
não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o
mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os
lugares em todos os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão:
fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o
Ressuscitado com a sua paz. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse
Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja
recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29).
Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo
mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que
perdoa mesmo os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam pecados sem perdão
quando os discípulos e discípulas de Jesus deixam de amar como Ele amou. Em
outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade
(CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
João
insere uma nota importante. A comunidade dos discípulos não está completa.
Falta Tomé. Se faz necessário compreender bem esta personagem, que desde muito
tempo foi mal considerada. Retomemos a informação de que o motivo pelo qual a
comunidade estava reunida à portas fechadas foi o medo; ora, se Tomé não estava
com eles é porque não tinha medo e, portanto, circulava livremente e sem temor
algum. Essa sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo.
Todavia, o erro de Tomé foi o de não aceitar o testemunho da comunidade!
Oito
dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do
Ressuscitado), informa-nos João, Jesus novamente se pões no meio deles,
deseja-lhes a Paz e, então se dirige a Tomé. Convida-o, quase que literalmente
usando as palavras daquele discípulo, a executar o gesto que havia pedido como
prova.
Tomé
ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável:
“Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que
entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O
título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18) e
cria, assim, uma inclusão que abarca e resume o Evangelho segundo João inteiro
(BEUTLER, 2016, p. 359).
Aqui
revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus:
“Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação
do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito questionadores
chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O
evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e
aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a
presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de
manifestação do Ressuscitado.
Tomé
era chamado Dídimo (em grego: Dídimos), cujo significado é gêmeo. No entanto, o
evangelista não apresenta o irmão gêmeo dele. Quem é o gêmeo de Tomé? Os
personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho, a função de paradigmas para a
comunidade e os leitores. Ou seja, os personagens anônimos servem para que os
leitores assumam aquela identidade; se
identifiquem com ela. Um convite aos leitores e discípulos de todos os
tempos a tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento,
perspicaz e convicto. Mas que também reconheçam a tentação da autossuficiência e do apego a si, ao recusar o testemunho (o modo de vida) da comunidade.
“Para a geração apostólica, o acesso a Jesus
era ainda possível mediante um encontro histórico, físico: eles podiam vê-lo,
ouvi-lo, apalpá-lo. A geração seguinte devia aceitar a proclamação da mensagem
da ressurreição. Tomé representa a transição da fé dos apóstolos para a fé da
comunidade pós-apostólica. Ele deveria ter aceito a mensagem da ressurreição da
parte dos dez e assim “ser crente”, em vez de, “incrédulo”, exigir sinais
visíveis do Ressuscitado (BEUTLER, 2016, p. 359)”.
O
capítulo 20 do evangelho joanino corresponde ao final original do Quarto Evangelho.
Nesta seção o leitor-discípulo é convidado a tomar parte da experiência da
comunidade dos discípulos com Jesus ressuscitado. Não se tratam de aparições,
propriamente, mas de Encontros com o Crucificado-Ressuscitado. É evidente, que
para aquelas testemunhas oculares não se constituiu tarefa fácil encarar as
horas e os dias seguintes ao “acontecido” com Jesus de Nazaré. Por isso, o fiel
e leitor do Quarto Evangelho, ou melhor, a geração posterior (na qual nos
incluímos), deverá colocar-se no mesmo horizonte daquelas testemunhas oculares.
Caberá a esta geração “Crer sem ver”, e por isso ser considerados o
bem-aventurados por isso. Fundido os horizontes, o discípulo-leitor é convidado
a tomar parte da narrativa da experiência da comunidade dos Doze. “Para João,
morte e ressurreição não são realidades estanques, mas dois aspectos
inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus (KONINGS, 2005, p.
346)”.
Diante
desta belíssima catequese joanina, três perguntas se fazem necessárias: 1)
Estamos no segundo domingo da Páscoa. Já faz uma semana que estamos envolvidos
pela ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição
interior: amedrontados e fechados, ou alegres e reedificados na Fé, pela
virtude do Ressuscitado? 2) Quais atitudes de Tomé encontram lugar em mim, com
toda a ambivalência daquela personagem? 3) Tomo consciência da importância que
a vida e o testemunho da Comunidade tem para minha vivência de Fé, como matriz
e geradora desta mesma Fé?
Arrisco
uma Quarta pergunta: nossas comunidades encontram-se ressuscitadas, ou seja,
conseguem testemunhar Cristo Ressuscitado para o mundo, e, com isso, viver a
missão confiada no v.21?
Feliz
Páscoa!
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu-SP.
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