A narrativa da paixão que meditamos nesta ocasião
da sexta-feira Santa, é retirada do Quarto Evangelho. Ela toma dois capítulos, começando
em 18,1 e estendendo-se à 19,42. Um modo eficaz de lê-lo consiste em situá-lo no
contexto da pedagogia litúrgica, isto é, na sequência do texto da quinta-feira santa
da ceia do Senhor. Ali, presenciava-se o gesto profético (e simbólico) da
entrega da vida de Jesus em-amor-até-o-fim, visibilizado no gesto da tradição paulina
da ceia do senhor (2ª leitura da liturgia) e no gesto do lava-pés. Ambos os
gestos são símbolos e profecias da entrega de Jesus na cruz. Por isso foi oportuno
perguntar sobre a identificação do leitor do texto com as personagens apresentadas
na narrativa; acerca do “deixar-se lavar os pés” pelo senhor; para poder lavar
os pés dos irmãos e tomar parte na vida de Jesus (“ter parte comigo”). Com que Jesus
sentávamos a mesa na liturgia de ontem? Com que Jesus sigo para cruz?
Chegou a Hora de Jesus. A narrativa situa-se
no chamado livro da Glória (Jo 13,1 – 20). A Hora de levar tudo (e todos) até o
Fim, como Jesus declarará no momento de sua morte, que “tudo está consumado
(finalizado)”, através do seu enaltecimento na Cruz. A hora da Cruz é o momento
em que Deus revela a sua presença e todo o seu poder em Jesus crucificado. Ela
foi preparada pelos sinais. A Hora de Jesus constitui o momento culminante do
Quarto Evangelho, no qual Jesus opera a sua obra definitiva.
Feitas as devidas contextualizações se faz
importante, antes de assumirmos a meditação de partes importantes da narrativa
(porque seria inviável medita-la integralmente aqui), dizer que a narrativa evangélica
da paixão segundo João é diferente das demais. Apresenta um Jesus soberano e
senhor de si, adquirindo tons de realeza. É importante, também, fazer uma
apresentação das personagens que, para este propósito, julgo centrais.
No Jardim (Jo 18,1-12):
Lancemos um olhar para Jesus. Na teologia
do Quarto Evangelho, João apresenta Jesus sempre consciente e onisciente. Na
narrativa da paixão, ele tem tudo em suas mãos. Ele não é feito vítima da
situação. Não permite que ninguém, exceto o Pai, tenha a Sua vida nas mãos. É
um Jesus senhor de si.
Jesus não é surpreendido por Judas e pelas
pessoas que vieram prendê-lo. Ele vai ao encontro do traidor, por quem estava
esperando (18, 4). Típica ironia joanina, o evangelista nos conta que Judas vem
equipado com lanternas e tochas. Judas preferiu as trevas à luz que veio no
mundo (3, 19). Ou seja, quando ele deixou Jesus, já era noite fechada (13, 30),
e agora ele precisa de luz artificial.
Na casa de Anás (Jo 18,13-27):
Temos três personagens. Um deles é Anás,
sogro de Caifás, o sumo sacerdote em exercício. Desconectados e confusos. O
segundo personagem é Pedro; enquanto Jesus está mostrando sua inocência, seu
mais conhecido seguidor está mostrando fraqueza. Novamente, somente no quarto
Evangelho, “um outro discípulo” tem um papel no drama da negação de Pedro (18,
15), presumivelmente “o discípulo que Jesus amava”. Não há fundamento em
identifica-lo a João (o que seria demasiado simplista). Mas, fato é, ele está a
frente de Pedro e contrasta com ele. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao
compreender e em acreditar, precisamente porque tem a primazia no amor de Jesus,
que é uma marca da verdadeira condição de discípulo
No palácio de Heródes, diante de Pilatos (
Jo 18, 28-42): um diálogo [repleto] de Verdade.
Encontramos uma personagem confusa. Um camaleão.
Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos cenários externos e
internos. Nesse vai-e-vem, Pilatos vai mudando e assimilando as imagens de seus
ambientes. Uma constatação importante, o cenário do inquérito contra Jesus acontece
dentro do palácio. Ao interno do palácio ocorre a alternância entre luz (externo)
e trevas (interno). Na maneira como João dispõe a narrativa, o inquérito acontece
ao interno para revelar esta oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A
intenção (ainda que através de sua ironia) é revelar Jesus (solitário e recluso
no palácio) como Luz diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas. Note-se
também o contraste: fora do palácio há incessante pressão, conspiração e
tumulto; dentro, há calma e diálogo penetrante. É sobre este diálogo que
manteremos nossa atenção.
Agora inicia-se o processo do Mundo,
representado pelo Império. O mundo não o conheceu, e os seus não acolheram-no.
De madrugada (ao raiar um novo dia). Jesus está diante do procurador romano.
Este o interroga, com base no que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” Interroga o
procurador. A resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti
mesmo, ou outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem
que não, mas dará as balizas para compreender o seu reinado. Deixando que o
próprio Pilatos tome sua decisão. Este se esquiva, dizendo que não é judeu, e
insiste sobre a culpabilidade de Jesus. A Sua resposta é paradigmática: “O meu
reino não é deste mundo.
Se o meu reino fosse deste mundo, os meus
guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não
é daqui”.
O que o Jesus joanino quer revelar através
desta resposta? É preciso tomar o texto original que expressa-se assim “o meu
reino não vem deste mundo (ek tou kosmou tuotou)”. Isso revela que a realeza de
Jesus não advém das realidade mundanas, das estruturas de poder, domínio,
opressão. Vem do alto. Jesus declara, pois, que sua realeza não depende do
poder deste mundo, mas de Deus. A autoridade que ele exerce pertence a Deus, e
o que ele faz é execução da vontade do Pai (KONINGS, 2005, p.328).
As palavras “meu reino não é daqui (=
deste mundo)”, portanto, não sugerem fuga do mundo, nem justificam a alienação
política (17,15). Pelo contrário, convocam o cristão a uma lucidez política
superior. Aderir ao reino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o
que faz, é palavra de Deus e que liberta de toda escravidão. No âmbito
político, Deus está do lado da liberdade verdadeira, que fomenta a verdadeira
dedicação mútua das pessoas na solidariedade e na
responsabilidade (KONINGS, 2005, p.328).
Aqui ele se identifica como testemunha da
verdade. "Da verdade" é um genitivo de pertença. “Verdade” deve ser
entendida a partir do fundo bíblico (cf. 1,14; 14,6): lealdade, fidelidade, coerência e firmeza no pacto,
na amizade, no amor. O que Jesus vem atestar é o reinado da veracidade do Deus
fiel, que se manifesta na prática e na palavra de Jesus (ver 1,14).
O reino da verdade é também a prática do
mandamento que Jesus legou como marca de pertença: o amor (cf. esp. 15,9-17;
13,35). Ao mesmo tempo, o termo deve ser entendido no quadro do simbolismo joanino,
em contraste com a mentira. A mentira é a incredulidade, a recusa a Jesus, a
pretensão de ter Deus sem passar pelo caminho que é Jesus, uma vez que ele se
dá a conhecer. No Evangelho de João, a mentira parece encarnar-se na liderança
dos “judeus” e no diabo a quem eles obedecem (cf. cap. 8, sobretudo 8,44);
aqui, confiam sua guarda a Judas, que está em poder do diabo. Mas sabemos que
João pensa também naqueles que, em seu tempo, no seio da comunidade cristã,
voltam as costas a Jesus (cf. sobretudo 1Jo 2,22) (KONINGS, 2005, p.327).
Jesus encaminha o diálogo com Pilatos,
após a pergunta em tons afirmativos “Então, tu és rei?”. O nazareno responde: “é
você quem está dizendo isso”, em outras palavras “Tire as consequências você
mesmo, Pilatos”. Pilatos, sim, é “deste mundo”. Não deseja abrir-se à verdade.
Mas neste diálogo emerge uma novidade
muito profunda e marcante. Pensemos. Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as
vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para dar cabo de uma sentença.
Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá aponta para uma
revelação importante: o juiz não é Pilatos. No inquérito, quem assume a figura
do juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de investigado. Na verdade, o
procurador romano é que foi colocado na berlinda por Jesus. João quer acenar
para aquela característica de Jesus: o soberano e senhor de si e da situação,
que não é pego nem surpreendido. Que não é entregue, mas que se entrega livre e
voluntariamente até o fim (KONINGS, 2005,
p.328).
A morte (19,28-37):
Após um caminho
longo, Jesus chega ao lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho acre, Jesus
exclama: “Tudo está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e
“entrega o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo,
“consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30); e ainda teleióo, indicando o
cumprimento das Escrituras (v. 29). Tudo isso lembra a expressão eis to
telos em 13,1: “… sabendo… Jesus… amou-os até o fim”. O cumprimento da
missão até o fim é idêntico ao testemunho do amor até o fim e ao cumprimento
das Escrituras: nestas três realidades devemos ver o Pai que, permanecendo em
Jesus, realiza as suas obras (14,10) (KONINGS, 2005, p.342). O dito “Tudo está
consumado” acena para a realidade de que toda a vida de Jesus, através de suas
obras e Palavra, refletem a vontade de Deus. Que Ele, Jesus, foi, de fato, o
plenipotenciário enviado da parte de Deus para realizar a Sua Obra. Significa, ainda,
que a vida e obra de Jesus atingem a Plenitude. Mas também revela a superação
dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais. Eles estão superados.
Por isso, João
faz coincidir a morte de Jesus no calvário com o exato momento em que se
imolavam os cordeiros no templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com
o dom de sua vida em amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único
mediador entre a humanidade e Deus. Não é mais a observância da Lei, nem das
prescrições levítico-cultuais os meios para se ter acesso a Deus, mas a
humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.
Muitos comentadores
querem ver nestas palavras, diferentes das expressões equivalentes usadas pelos
sinópticos, uma alusão ao dom do Espírito Santo (cf. 7,39), o que combinaria
bem com a ideia de que a comunidade deve continuar, na força do Espírito, a
obra que Jesus levou a termo por sua parte (cf. também v. 34 e 20,19-23) (KONINGS,
2005, p.342).
Mas o “entregar o espírito” (a existência)
acena para aquela onisciência e senhorio de Jesus, de que falou-se a pouco. O
verbo grego paradidomai (entregar/doar) percorre toda a narrativa da paixão,
mas aqui ele revela e, ao mesmo tempo afirma o domínio de Jesus diante da
situação: quem entrega sua vida é ele mesmo, sabendo que tem o poder de retoma-la
novamente. Ninguém a entrega. Ele livremente a doa, para que o Pai reconheça
esta mesma vida como salvífica e redentora, dizendo a última palavra na vida do
Filho.
O relato de hoje nos deixa diante de duas
perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido minha existência
cristã e meu discipulado?
A chave e o modo para viver o discipulado
é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado pela Cruz.
Mas Ela não será a última palavra.
Esperemos.
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP
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