sábado, 20 de abril de 2019

HOMILIA PARA A VIGÍLIA PASCAL – Lc 24,1-12





Nesta noite santa a Igreja celebra o ápice e o centro de sua fé: faz a memória da Páscoa do Senhor, de sua ressurreição dentre os mortos e de sua vitória sobre a separação que existia entre o ser humano e Deus através do Pecado. Fazemos a Memória Pascal de Jesus, Cordeiro de Deus, imolado ao Pai em fidelidade ao projeto do Reino e em vida entregue/doada à humanidade. Nesta noite fazemos a memória de nossa passagem pelas águas da morte-vida, que nos deram vida nova. É uma festa batismal. Somos, nesta noite santa, ressuscitados por Cristo, com Cristo e em Cristo. Por isso, nesta grandiosíssima noite a Páscoa do Senhor torna-se nossa Páscoa.

Para adentramos no mistério desta noite santa, a liturgia nos propõe o texto do evangelho de segundo Lucas (Lc 24,1-12). O último capítulo do terceiro evangelho. Por isso, se faz necessário compreender o contexto e as motivações do evangelista ao escrever este relato pascal, cuja a primeira seção (ou primeira parte) somos convidados a meditar.

O último capítulo do evangelho de Lucas, que fala da ressurreição de Jesus, não é só a conclusão óbvia e tradicional de sua trajetória histórica, mas a meta última de sua caminhada idealizada, o cumprimento de todas as promessas e expectativas de salvação (FABRIS, 1998, p.238).

Lucas situa os eventos pascais num só dia, e num só lugar, Jerusalém. Para o evangelista, a cidade tem um papel importante para sua obra. A cidade, representante simbólica da antiga história salvífica, é a meta não só geográfica, mas teológica da caminhada de Jesus: em Jerusalém se revela a grande ação salvadora de Deus, a morte e a ressurreição do messias; aqui ele, como o “vivente” e glorificado, encontra os seus discípulos para enviá-los a todos os povos (cf. FABRIS, 1998, p.238).

Mas é interessante notar que Lucas organiza o relato em torno de três episódios: 1) as mulheres que vão ao sepulcro; 2) a passagem dos discípulos de Emaús; e, por fim, 3) a aparição (encontro) com o grupo dos onze. Acontecem num arco de um só dia, o domingo. O que revela um motivo litúrgico para o texto (MAGGIONI, 1998, p.54).

Para nós, interessa o primeiro relato (Lc 24,1-12). Elas vão até o sepulcro onde havia sido posto o corpo de Jesus. Ao chegarem ao lugar, deparam-se com o sepulcro aberto e vazio (v.1-2). Algo acontecera ali. Mas atenção, a tônica do relato não deve ser colocada sobre o sepulcro vazio. Isso ainda é pouco. Diante do sepulcro vazio não nasce a fé, mas a perplexidade, a desconfiança, o medo, a inquietação, e mais frustração ainda. Diante do sepulcro vazio permanece ainda a dúvida. O acento ou a tônica do texto devem ser direcionados para o que virá a seguir.

Diante da perplexidade e do risco da dúvida, o evangelista nos informa que aparecem dois mensageiros celestes. Eles se colocam ao lado das mulheres e lhes interroga, com uma pergunta em tons de afirmação: “Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou!” (v.5-6). Ora, se faz necessário acolher uma revelação do alto para que nasça a Fé, e não contemplar o sepulcro vazio. É urgente elevar o olhar e deixar de olhar para chão!

É importante fixar, o interesse central do evangelista não é o túmulo vazio, mas o anúncio da ressurreição de Jesus dado na proximidade do túmulo. O túmulo aberto, a ausência do corpo de Jesus nada dizem ainda (FABRIS, 1998, p.238).

A pergunta-revelação traz um conteúdo fundamental: Jesus está vivo! O texto grego nos ajuda a perceber esta afirmação. Ele soa mais ou menos assim: “por que procurais um vivo (vivente) entre os mortos?”. Um vivente. Ora, o evangelista usa de uma pergunta porque, evidentemente espera uma resposta. A revelação divina acerca de Jesus exige sempre uma resposta do ser humano. Esta boa-noticia não é uma palavra que se ouve e basta. Pelo contrário, ela exige um acolhimento na vida do discípulo.

Um detalhe importante nos é dado por Lucas. A presença de dois mensageiros. Na antiguidade  e na cultura do povo de Jesus, um testemunho só seria devidamente válido e autorizado pelo depoimento concorde de duas ou três pessoas (cf. Dt 19,15). Eles funcionam, pois, como testemunhas autorizadas da ressurreição, dado que a figura e o testemunho dado por mulheres ou menores de idade não eram validos na época.

Eles testemunham para as mulheres que Jesus é o Vivente. O vivente aqui não significa o retornado à vida, mas inserido na vida mesma de Deus. Jesus entrou na vida de Deus. Encontra-se, agora, Nele. A ressurreição não é um ato tão somente, mas um estado; uma condição permanente!

A afirmação de que Jesus é o vivente, está carregada da influencia do ambiente bíblico, onde Deus é chamado o “vivente” (cf. Js 3,10; Jz 8,19). Na Igreja de Lucas, esta denominação é referida a Jesus ressuscitado (cf. At 1,3; 25,19) e é uma maneira de falar da ressurreição de Jesus em termos compreensíveis também para gente estranha à cultura bíblica. Se Jesus é o vivente, não tem mais sentido procurá-lo no lugar onde estão os mortos; Jesus não está mais no passado, mas vive no presente e é projetado rumo ao futuro como todo vivente. Então, o sepulcro vazio não diz mais nada sobre a nova realidade; c simplesmente um sinal negativo e equívoco. Também ela tem os traços do modo de falar bíblico da ressurreição dos mortos, sobretudo nos textos apocalípticos, onde a superação da morte é descrita com a imagem do despertar do sono ou de ficar de pé ou se levantar. Mas nem a inspeção do túmulo, nem uma fórmula de fé abrem o homem ao novo horizonte da ressurreição. Só a palavra de Deus, que se tornou a palavra ou a promessa de Jesus, oferece a chave hermenêutica para compreender a nova experiência salvífica. Por isso, Lucas relata as palavras de Jesus que explicam o sentido de sua morte (FABRIS, 1998, p.240).

Recordar para compreender. A aparição dos anjos e sua mensagem não trazem, a rigor, nada de novo. Tampouco inesperado. Mas tem a função de reavivar, ou acordar, a memória do que já existia nelas. Na perspectiva dos mensageiros celestes as mulheres deverão recordar, fazer memória, para poder compreender. Porque, para abrir-se à ressurreição não basta ver o sepulcro vazio, tampouco basta a visão dos anjos: mas fazer memória, o que não é uma simples recordação do passado – e, no caso, os eventos da paixão e morte de Jesus – mas repensar, reler, ressignificar e atualizar (trazer para o momento presente) aquele evento da vida, paixão e morte de Jesus. Ora, é partindo da ressurreição que se poderá lançar luzes e significados para sua vida e morte.

Lucas sublinha repetidas vezes que a memória (a capacidade e o dom de reler/ressignificar) é necessária para abrir-se à ressurreição e à sua credibilidade. Sem a recordação/memória da vida de Jesus não se retém os sinais e o sentido da ressurreição.

Em outras palavras, a ressurreição de Jesus não é compreensível se não estiver relacionada com toda a trajetória histórica culminando na morte de cruz. E esta por sua vez não tem sentido a não ser no horizonte mais vasto de uma caminhada histórica de salvação que envolve todos os homens. A ressurreição de Jesus é a explosão de um amor fiel, de empenho pela liberdade, como foi vivido pelo Filho do Homem, que dá assim uma dimensão nova ao futuro de todos os homens (FABRIS, 1998, p.240).

A ressurreição de Jesus é a grande afirmação da parte de Deus de que a vida do seu Filho tornou-se uma vida salvífica e redentora. Em outras palavras, a ressurreição de Jesus, operada pelo Pai, foi o grande sim dito da parte de Deus à vida de Jesus de Nazaré – à forma e ao modo como ele decidiu-se por vive-la. Deus diz uma palavra definitiva sobre a vida de Jesus: ela é indestrutível. Por isso, ele está ressuscitado, em pé (gr. Egheirete).

Dos vv. 8-11 as mulheres retornam para junto dos onze – Lucas nos dá a conhece-las. Elas seguem a ordem dos mensageiros celestiais e passam para a condição de missionárias, anunciadoras daquela boa-notícia. O verbo usado por Lucas (gr. angello, anunciar) é um verbo missionário, que sempre indica o anúncio de um evento importante e inesperado (os quatro evangelista fazem uso dele em suas narrativas, Mt 28,8-10; Mc 16,10.13; Lc 24,9 e Jo 20,18).

Mas elas se deparam com a incredulidade dos onze. Para além do que foi dito acerca da credibilidade dos testemunhos das mulheres, a incredulidade dos discípulos para o evangelista é profunda e verdadeira. É um fechamento e endurecimento por parte do grupo diante da verdade divina acerca da ressurreição de Jesus e ao convite de fazer memória da vida e obra de Jesus para poder fazer a experiência da ressurreição. O verbo usado por Lucas, apisteuein, está no imperfeito e sugere uma incredulidade obstinada e contínua. Os onze resistem acreditar e em fazer a memória de Jesus.

Dentre os onze emerge uma figura proeminente: Pedro. Ele toma a atitude diferente. Ainda que descrita de modo rápido (levanta-se, corre até o sepulcro, encontra-o aberto, se inclina para olhar para dentro) é importante. A atitude de Pedro é reforçada pelo verbo blepein, olhar com atenção. E retorna ao seus maravilhado (gr. thaumazein). Mas o espanto de Pedro é também uma pergunta. Todavia, este espanto e perplexidade são já um passo importante do discípulo. Mas ainda não é a Fé.

Pedro primeiro percorreu a lenta caminhada da fé: da crise e do medo, na negação de Jesus preso e humilhado, à dúvida diante da mensagem das mulheres, à admiração e ao estupor do túmulo vazio, e ao encontro com o Senhor que vive (FABRIS, 1998, p.241).

O relato conclui-se com a constatação da incredulidade: da parte dos discípulos é obstinada e fechada; da parte de Pedro é abertura e disponibilidade. O tema da incredulidade perpassa os quatro evangelhos no tocante à ressurreição. Entretanto, Lucas quer insistir com a comunidade que para suscitar a fé na ressurreição não são suficientes o sepulcro vazio, nem as palavras das mulheres. Se faz necessário um encontro e uma experiência pessoal com Jesus Ressuscitado.

Mas da parte das mulheres, emerge a certeza e a abertura para fazer a memória da vida, paixão e morte de Jesus, para fazer a experiência da ressurreição. Elas se dispõe, primeiro, a levar a sério o convite dos mensageiros celestes: recordar das Palavras de Jesus (sua vida e obra) bem como o acontecido com ele (sua paixão e morte), e relê-las à luz da Ressurreição. A ressurreição é a vida de Jesus passada a limpo pelo Pai e pelas comunidades dos discípulos de todos os tempos que se propõem a viver a exemplaridade da vida de Jesus em suas vidas.

Isso é viver uma vida ressuscitada!

Feliz e Santa Páscoa do Senhor!

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP

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