Nesta
noite santa a Igreja celebra o ápice e o centro de sua fé: faz a memória da Páscoa
do Senhor, de sua ressurreição dentre os mortos e de sua vitória sobre a
separação que existia entre o ser humano e Deus através do Pecado. Fazemos a
Memória Pascal de Jesus, Cordeiro de Deus, imolado ao Pai em fidelidade ao
projeto do Reino e em vida entregue/doada à humanidade. Nesta noite fazemos a
memória de nossa passagem pelas águas da morte-vida, que nos deram vida nova. É
uma festa batismal. Somos, nesta noite santa, ressuscitados por Cristo, com
Cristo e em Cristo. Por isso, nesta grandiosíssima noite a Páscoa do Senhor torna-se
nossa Páscoa.
Para
adentramos no mistério desta noite santa, a liturgia nos propõe o texto do
evangelho de segundo Lucas (Lc 24,1-12). O último capítulo do terceiro
evangelho. Por isso, se faz necessário compreender o contexto e as motivações
do evangelista ao escrever este relato pascal, cuja a primeira seção (ou primeira
parte) somos convidados a meditar.
O
último capítulo do evangelho de Lucas, que fala da ressurreição de Jesus, não é
só a conclusão óbvia e tradicional de sua trajetória histórica, mas a meta última
de sua caminhada idealizada, o cumprimento de todas as promessas e expectativas
de salvação (FABRIS, 1998, p.238).
Lucas
situa os eventos pascais num só dia, e num só lugar, Jerusalém. Para o
evangelista, a cidade tem um papel importante para sua obra. A cidade,
representante simbólica da antiga história salvífica, é a meta não só
geográfica, mas teológica da caminhada de Jesus: em Jerusalém se revela a
grande ação salvadora de Deus, a morte e a ressurreição do messias; aqui ele,
como o “vivente” e glorificado, encontra os seus discípulos para enviá-los a
todos os povos (cf. FABRIS, 1998, p.238).
Mas
é interessante notar que Lucas organiza o relato em torno de três episódios: 1)
as mulheres que vão ao sepulcro; 2) a passagem dos discípulos de Emaús; e, por
fim, 3) a aparição (encontro) com o grupo dos onze. Acontecem num arco de um só
dia, o domingo. O que revela um motivo litúrgico para o texto (MAGGIONI, 1998, p.54).
Para
nós, interessa o primeiro relato (Lc 24,1-12). Elas vão até o sepulcro onde
havia sido posto o corpo de Jesus. Ao chegarem ao lugar, deparam-se com o sepulcro
aberto e vazio (v.1-2). Algo acontecera ali. Mas atenção, a tônica do relato
não deve ser colocada sobre o sepulcro vazio. Isso ainda é pouco. Diante do
sepulcro vazio não nasce a fé, mas a perplexidade, a desconfiança, o medo, a
inquietação, e mais frustração ainda. Diante do sepulcro vazio permanece ainda
a dúvida. O acento ou a tônica do texto devem ser direcionados para o que virá
a seguir.
Diante
da perplexidade e do risco da dúvida, o evangelista nos informa que aparecem dois
mensageiros celestes. Eles se colocam ao lado das mulheres e lhes interroga,
com uma pergunta em tons de afirmação: “Por que estais procurando entre os
mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou!” (v.5-6). Ora, se
faz necessário acolher uma revelação do alto para que nasça a Fé, e não
contemplar o sepulcro vazio. É urgente elevar o olhar e deixar de olhar para
chão!
É
importante fixar, o interesse central do evangelista não é o túmulo vazio, mas
o anúncio da ressurreição de Jesus dado na proximidade do túmulo. O túmulo
aberto, a ausência do corpo de Jesus nada dizem ainda (FABRIS, 1998, p.238).
A
pergunta-revelação traz um conteúdo fundamental: Jesus está vivo! O texto grego
nos ajuda a perceber esta afirmação. Ele soa mais ou menos assim: “por que
procurais um vivo (vivente) entre os mortos?”. Um vivente. Ora, o evangelista
usa de uma pergunta porque, evidentemente espera uma resposta. A revelação
divina acerca de Jesus exige sempre uma resposta do ser humano. Esta boa-noticia
não é uma palavra que se ouve e basta. Pelo contrário, ela exige um acolhimento
na vida do discípulo.
Um
detalhe importante nos é dado por Lucas. A presença de dois mensageiros. Na
antiguidade e na cultura do povo de
Jesus, um testemunho só seria devidamente válido e autorizado pelo depoimento concorde
de duas ou três pessoas (cf. Dt 19,15). Eles funcionam, pois, como testemunhas
autorizadas da ressurreição, dado que a figura e o testemunho dado por mulheres
ou menores de idade não eram validos na época.
Eles
testemunham para as mulheres que Jesus é o Vivente. O vivente aqui não
significa o retornado à vida, mas inserido na vida mesma de Deus. Jesus entrou na
vida de Deus. Encontra-se, agora, Nele. A ressurreição não é um ato tão somente,
mas um estado; uma condição permanente!
A
afirmação de que Jesus é o vivente, está carregada da influencia do ambiente
bíblico, onde Deus é chamado o “vivente” (cf. Js 3,10; Jz 8,19). Na Igreja de
Lucas, esta denominação é referida a Jesus ressuscitado (cf. At 1,3; 25,19) e é
uma maneira de falar da ressurreição de Jesus em termos compreensíveis também
para gente estranha à cultura bíblica. Se Jesus é o vivente, não tem mais
sentido procurá-lo no lugar onde estão os mortos; Jesus não está mais no
passado, mas vive no presente e é projetado rumo ao futuro como todo vivente.
Então, o sepulcro vazio não diz mais nada sobre a nova realidade; c
simplesmente um sinal negativo e equívoco. Também ela tem os traços do modo de
falar bíblico da ressurreição dos mortos, sobretudo nos textos apocalípticos,
onde a superação da morte é descrita com a imagem do despertar do sono ou de
ficar de pé ou se levantar. Mas nem a inspeção do túmulo, nem uma fórmula de fé
abrem o homem ao novo horizonte da ressurreição. Só a palavra de Deus, que se
tornou a palavra ou a promessa de Jesus, oferece a chave hermenêutica para
compreender a nova experiência salvífica. Por isso, Lucas relata as palavras de
Jesus que explicam o sentido de sua morte (FABRIS, 1998, p.240).
Recordar
para compreender. A aparição dos anjos e sua mensagem não trazem, a rigor, nada
de novo. Tampouco inesperado. Mas tem a função de reavivar, ou acordar, a memória
do que já existia nelas. Na perspectiva dos mensageiros celestes as mulheres
deverão recordar, fazer memória, para poder compreender. Porque, para abrir-se
à ressurreição não basta ver o sepulcro vazio, tampouco basta a visão dos anjos:
mas fazer memória, o que não é uma simples recordação do passado – e, no caso,
os eventos da paixão e morte de Jesus – mas repensar, reler, ressignificar e
atualizar (trazer para o momento presente) aquele evento da vida, paixão e
morte de Jesus. Ora, é partindo da ressurreição que se poderá lançar luzes e
significados para sua vida e morte.
Lucas
sublinha repetidas vezes que a memória (a capacidade e o dom de reler/ressignificar)
é necessária para abrir-se à ressurreição e à sua credibilidade. Sem a recordação/memória
da vida de Jesus não se retém os sinais e o sentido da ressurreição.
Em
outras palavras, a ressurreição de Jesus não é compreensível se não estiver
relacionada com toda a trajetória histórica culminando na morte de cruz. E esta
por sua vez não tem sentido a não ser no horizonte mais vasto de uma caminhada
histórica de salvação que envolve todos os homens. A ressurreição de Jesus é a
explosão de um amor fiel, de empenho pela liberdade, como foi vivido pelo Filho
do Homem, que dá assim uma dimensão nova ao futuro de todos os homens (FABRIS,
1998, p.240).
A
ressurreição de Jesus é a grande afirmação da parte de Deus de que a vida do
seu Filho tornou-se uma vida salvífica e redentora. Em outras palavras, a
ressurreição de Jesus, operada pelo Pai, foi o grande sim dito da parte de Deus
à vida de Jesus de Nazaré – à forma e ao modo como ele decidiu-se por vive-la.
Deus diz uma palavra definitiva sobre a vida de Jesus: ela é indestrutível. Por
isso, ele está ressuscitado, em pé (gr. Egheirete).
Dos
vv. 8-11 as mulheres retornam para junto dos onze – Lucas nos dá a conhece-las.
Elas seguem a ordem dos mensageiros celestiais e passam para a condição de
missionárias, anunciadoras daquela boa-notícia. O verbo usado por Lucas (gr. angello,
anunciar) é um verbo missionário, que sempre indica o anúncio de um evento
importante e inesperado (os quatro evangelista fazem uso dele em suas
narrativas, Mt 28,8-10; Mc 16,10.13; Lc 24,9 e Jo 20,18).
Mas
elas se deparam com a incredulidade dos onze. Para além do que foi dito acerca
da credibilidade dos testemunhos das mulheres, a incredulidade dos discípulos
para o evangelista é profunda e verdadeira. É um fechamento e endurecimento por
parte do grupo diante da verdade divina acerca da ressurreição de Jesus e ao
convite de fazer memória da vida e obra de Jesus para poder fazer a experiência
da ressurreição. O verbo usado por Lucas, apisteuein, está no imperfeito e
sugere uma incredulidade obstinada e contínua. Os onze resistem acreditar e em
fazer a memória de Jesus.
Dentre
os onze emerge uma figura proeminente: Pedro. Ele toma a atitude diferente.
Ainda que descrita de modo rápido (levanta-se, corre até o sepulcro, encontra-o
aberto, se inclina para olhar para dentro) é importante. A atitude de Pedro é
reforçada pelo verbo blepein, olhar com atenção. E retorna ao seus maravilhado
(gr. thaumazein). Mas o espanto de Pedro é também uma pergunta. Todavia, este
espanto e perplexidade são já um passo importante do discípulo. Mas ainda não é
a Fé.
Pedro
primeiro percorreu a lenta caminhada da fé: da crise e do medo, na negação de
Jesus preso e humilhado, à dúvida diante da mensagem das mulheres, à admiração
e ao estupor do túmulo vazio, e ao encontro com o Senhor que vive (FABRIS,
1998, p.241).
O
relato conclui-se com a constatação da incredulidade: da parte dos discípulos é
obstinada e fechada; da parte de Pedro é abertura e disponibilidade. O tema da
incredulidade perpassa os quatro evangelhos no tocante à ressurreição. Entretanto,
Lucas quer insistir com a comunidade que para suscitar a fé na ressurreição não
são suficientes o sepulcro vazio, nem as palavras das mulheres. Se faz
necessário um encontro e uma experiência pessoal com Jesus Ressuscitado.
Mas
da parte das mulheres, emerge a certeza e a abertura para fazer a memória da
vida, paixão e morte de Jesus, para fazer a experiência da ressurreição. Elas
se dispõe, primeiro, a levar a sério o convite dos mensageiros celestes: recordar
das Palavras de Jesus (sua vida e obra) bem como o acontecido com ele (sua
paixão e morte), e relê-las à luz da Ressurreição. A ressurreição é a vida de
Jesus passada a limpo pelo Pai e pelas comunidades dos discípulos de todos os
tempos que se propõem a viver a exemplaridade da vida de Jesus em suas vidas.
Isso
é viver uma vida ressuscitada!
Feliz
e Santa Páscoa do Senhor!
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu-SP
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