sábado, 25 de julho de 2020

HOMILIA PARA O XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 13,44-52:


A liturgia deste domingo nos apresenta a conclusão do Discurso parabólico – em Parábolas – de Jesus, contido integralmente no capítulo treze do Evangelho segundo Mateus. Já meditamos nos domingos anteriores, que o Discurso em Parábolas apresenta sete ilustrações/comparações feitas por Jesus, retiradas do ambiente cotidiano, simples e comum a todos, através das quais são revelados os mistérios do acontecimento/evento do Reino dos Céus. Mas é curioso como Mateus estrutura seu evangelho: o capítulo treze ocupa o centro da catequese mateana.

A obra de Mateus é composta de cinco grandes discursos, o Sermão da montanha (Mt 5 – 7), Discurso missionário (Mt 10 – 11), Discurso em Parábolas (Mt 13), Discurso eclesial (Mt 18) e, por fim, o Discurso Escatológico (Mt 24 – 25). Note-se que o discurso em parábolas encontra-se precisamente no meio da narrativa evangélica (se o esquematizarmos verticalmente perceberemos melhor esta estrutura e posicionamento do referido capítulo), pretendendo ensinar que o Reino anunciado por Jesus, através das parábolas, deverá ocupar o centro da vida e das opções do discípulo e da discípula de todos os tempos e lugares. O objetivo é o de motivar a comunidade a fazer opção pelo Reino, preferindo-o a qualquer outra realidade ou bem. É o que as duas primeiras parábolas meditadas neste domingo pretendem ilustrar. Lidas em conjunto, as duas parábolas mostram que não há contradição entre dom e esforço. A conquista do Reino exige esses dois elementos. Mergulhemos, pois, no texto!

“O Reino dos céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (v. 44). Jesus compara o Reino a um tesouro que alguém escondeu num campo – um vaso de argila cheio de moedas valiosas e joias. Fato comum, na antiguidade, por ocasião de guerras ou rivalidades. Quem possuía algum objeto de valor cavava o chão e o escondia na esperança de recuperá-lo quando passasse o momento difícil. Os tesouros eram encontrados muito tempo depois, por pessoas que não sabiam da sua existência, ao utilizarem o terreno para outras atividades de subsistência; daí, pegos de surpresa, subentendido no texto, também devido ao aspecto da alegria. Esta, por sinal, é uma característica essencial de quem encontrou o Reino e a ele aderiu plenamente. Todavia, chama-nos a atenção o fato de que este homem da parábola foi encontrado pelo tesouro; dito de outra maneira, ele não estava caçando tesouros, mas, surpreendente e involuntariamente, ele o encontrou. Mas sua atitude é que nos chama a atenção: mesmo tendo encontrado tal tesouro, ele, na verdade viu um motivo e uma oportunidade para mudar a sua vida.

Aquele homem da parábola serve de exemplo para Jesus (que se dirige às multidões e aos discípulos) e para Mateus (que se dirige à sua comunidade) daquele que encontrou algo pelo qual valia a pena renunciar a tudo o que possuía para ficar somente com o bem precioso que tinha acabado de encontrar. O Reino deve ser a primeira opção de quem o encontra.  Ele desestabiliza a normalidade das coisas, gera reviravolta, subversão, é o revés da ordem estabelecida, tanto a social quanto a religiosa (cf. CORNELIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Na segunda parábola, do comprador de pedras preciosas, Jesus provoca novamente seus ouvintes: “O Reino dos céus é como um comprador de pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola” (vv. 45-46). Todavia, a atitude deste mercador é que chama a atenção: ele sabe o que procura. Ele está, na verdade, à procura! Trata-se de um homem experiente, e, também, inquieto; capaz de distinguir o valioso do vulgar. Como na parábola anterior, também ele encontra algo que lhe faz tomar uma decisão radical. Também o discípulo, ao entrar em contato com o Reino e sua mensagem, coloca-o como o centro de sua vida, relativizando tudo mais. O Reino torna-se o absoluto de sua vida; tudo mais tem valor secundário.

Na terceira e última parábola, a experiência dos pescadores no lago da Galileia serve de termo para a última comparação de Jesus. O Reino dos Céus é como uma rede jogada no mar e recolhe peixes de toda espécie (vv. 47-49). Depois que está cheia, os pescadores a puxam para a praia e recolhem os peixes bons, enquanto os imprestáveis são jogados fora (Lv 11,10-12). Existe, aqui, uma certa semelhança com a parábola do joio e do trigo. Mas, diferentemente daquela, onde a cizânia fora semeada por algum inimigo, aqui, os peixes ruins têm a mesma origem dos peixes bons. Esta parábola alerta, mais uma vez, a comunidade, para as contradições e a diversidade que compõem o Reino dos Céus, prevenindo-a de qualquer puritanismo e segregação.

Desde a comunidade apostólica, havia na Igreja a tendência equivocada de querer ser uma comunidade de santos, justos ou eleitos, ou seja, uma comunidade separada e isolada. Essa tendência era e é um entrave para a concretização do Reino. Com essa parábola da rede, bem mais que com a do joio e o trigo, Jesus apresenta o universalismo do Reino, marcado pela diversidade e inclusão, e sua exposição aos perigos. Essa parábola é, portanto, um convite para os discípulos retornarem às origens do chamado. Ora, Jesus não os chamou para irem à procura de pessoas boas e santas, mas simplesmente para “pescar seres humanos”, ou seja, ir ao encontra da humanidade inteira, sem distinção nem classificação (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Segue, novamente, uma alegorização por parte de Jesus: “Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos. E lançarão os maus na fornalha de fogo. E aí haverá choro e ranger de dentes” (v. 50). O fim do mundo será como um final de pescaria. Os anjos de Deus vão se dar ao trabalho de separar os justos dos malvados. Estes serão lançados num lugar de castigo e haverão de sofrer muito (Mt 13,41-42). Os líderes da comunidade não podem se constituir em juízes dos irmãos, condenando a quem não lhes parece entrar nos esquemas do Reino, ou seja, os esquemas do Reino criados por eles mesmos (Mt 7,1-2). A palavra de salvação e de condenação é exclusividade de Deus no dia do juízo (VITÓRIO, J, 2017, p.93).

Mas as parábolas exigem discernimento para serem compreendidas. Jesus questiona as multidões se elas de fato compreenderam tudo – uma forma semítica para todo o ensinamento dado pelo mestre. Elas, afirmativamente respondem que sim. É evidente que nada entenderam, pois o próprio evangelho nos desvelará a incompreensão dos que seguiam a Jesus, no tocante à sua mensagem. A compreensão significa a aceitação da sua mensagem com as consequências implicadas nela; não se trata da abstração teórica de um conteúdo, mas de assimilar um jeito novo de viver. Todavia, para compreender e nutrir esta compreensão, se faz necessário uma característica importante destacada por Jesus, ao final: “Todo mestre da Lei instruído na sabedoria do Reino dos Céus pode ser comparado com uma pessoa que abre um velho baú e vai retirando dele coisas novas e coisas velhas” (v.52). A sabedoria do Reino oferece ao discípulo uma nova chave de leitura para tudo, possibilitando-lhe ver a realidade com os olhos de Deus e perceber nela a ação divina (VITÓRIO, J, 2017, p.94).

Há quem diga estar o evangelista referindo-se a si mesmo! Ele seria esse mestre da Lei convertido ao Reino, que reinterpreta, relê e ressignifica, com a luz oferecida por Jesus, os velhos ensinamentos. Nessa perspectiva, as coisas velhas são a Lei e os profetas, enquanto as coisas novas são os ensinamentos de Jesus, que ele mesmo considerou como o pleno cumprimento da Lei e dos profetas (Mt 5,17).

Com qual das personagens das duas primeiras parábolas nos identificamos, com o homem que “foi encontrado” surpreso pelo Tesouro escondido, ou com o mercador experiente e inquieto que reconhece o grande valor da Joia que encontra? Estamos no horizonte do Dom ou do esforço (sadio)? Em ambos os casos a atitude é a que vale: temos tido estas mesmas atitudes, empenhando a vida pelo Reino (tesouro e pedra preciosa), tendo-o como centro de nossas vidas? Sabemos compreender e discernir como o mestre pede: reler, reinterpretar e ressignificar tudo segundo a perspectiva e a ótica de Jesus?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 18 de julho de 2020

HOMILIA PARA O XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 13,24-43:




A liturgia do décimo sexto domingo do tempo comum dá continuidade à meditação do Discurso em Parábolas de Jesus, contido em Mt 13. Neste capítulo encontramos sete ilustrações usadas por Jesus para anunciar os mistérios do Reino – como o Reinado de Deus vai se desenvolvendo na história. As parábolas fazem parte do gênero sapiencial, os meshalim, formas simples de ensinar o povo, servindo-se das situações cotidianas e da realidade. Jesus, como um bom sábio israelita, incorpora esta pedagogia para ensinar, visando chamar a atenção dos seus, provoca-los e gerar naqueles que o escutam uma mudança de mentalidade e de vida.

A liturgia continua a leitura do capítulo treze do evangelho mateano, a partir do v.24, que já nos insere no horizonte do texto. O ensino de Jesus ainda é dado às multidões. De seu interno, aquele que adere palavra de Jesus sairá o discípulo. A partir deste versículo, Mateus recorda três novas parábolas de Jesus: o joio e o trigo, a semente de mostarda e o fermento na massa (24-33). De 34-35, o evangelista interrompe o discurso de Jesus, e serve-se de uma citação do Antigo testamento, precisamente dos Salmos, a fim de justificar aos seus discípulos-leitores e ouvintes de seu evangelho, a motivação para falar em parábolas.

Jesus fala às multidões de modo a ser entendido. Por isso, prefere falar por meio de parábolas. As parábolas são uma maneira simples de se dirigir ao povo, por terem como ponto de referência elementos da vida quotidiana. A ilustração do conteúdo de suas palavras com comparações permite a Jesus ser compreendido pelos ouvintes. Um texto do Antigo Testamento ilustra esse expediente do Mestre. Trata-se do Salmo 78[77],2: “Abrirei minha boca para falar em parábolas. Proclamarei as coisas que estão ocultas desde a criação do mundo”. O salmista, de maneira parabólica, revela os desígnios secretos de Deus na história de Israel. Algo semelhante faz Jesus quando fala do Reino dos Céus. E a maneira sapiencial de ensinar que o Jesus de Mateus recupera (cf. VITÓRIO, 2017, p.91).

Dos vv.36-43, Jesus explica aos discípulos – portanto, um ensinamento reservado – apenas a parábola do Joio. As parábolas são contadas para todos, multidão e discípulos. Entretanto, só este grupo recebe explicação, pois deverão transmiti-las ao saírem em missão (Mt 13,52). É importante lembrar que as parábolas têm sua aplicação comunitária. Elas são contadas por Jesus e recordadas pelo evangelista a fim de coibir e sanar as tentações surgidas ao interno da comunidade cristã, incompatíveis com a mensagem de Jesus.

“O Reino dos céus é como uma semente de mostarda que um homem pega e semeia no seu campo. Os pássaros vêm e fazem ninhos em seus ramos” (v.31-32).  A parábola da semente de mostarda, é a resposta de Jesus aos desejos de grandeza e poder na sua comunidade. Diante da estrutura imperial e da grande organização da sinagoga, o projeto de Jesus era praticamente invisível. Os discípulos, sedentos de poder, não se conformavam com aquela situação. É necessário que a comunidade dos discípulos aceite a condição de pequenez em que se encontra e reconheça essa pequenez como necessidade para compreender a dinâmica do Reino. O qual não pode impor-se por sinais de grandeza nem de espetáculo. O importante é que ele seja cultivado, mesmo como uma semente pequena, e colocar-se no mundo para servir, como acontece com a mostarda. A única preocupação dos que lutam pelo Reino deve ser se estão sendo abrigo e serviço para os mais necessitados. E a tentação que Jesus visa coibir no seio da comunidade dos discípulos, e que Mateus que eliminar de sua comunidade é que o projeto do Reino ceda ao projeto de grandeza (sede de poder e sobreposição sobre os demais grupos) (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

“O Reino dos céus é como o fermento que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique fermentado” (v. 33). A parábola do fermento Essa é uma das parábolas mais revolucionárias de Jesus porque apresenta o Reino dos céus sendo comparado a um elemento considerado impuro pela tradição judaica, o fermento, e com a atividade de uma mulher. Ora, para a cultura e tradição da época, a mulher pouca teria a contribuir com um projeto de sociedade como era o Reino dos céus e, no entanto, Jesus apresenta o seu agir como imagem da construção do seu Reino. A tentação que o Jesus de Mateus quer fazer a comunidade vencer é a do desânimo (vontade de desistir por não ver resultados nem efeitos gerados pela pregação e a forma de vida cristã). E era exatamente a paciência que estava acabando nos discípulos e levando-os ao desânimo. Como não viam efeito algum na pregação deles e de Jesus, pois o mundo continuava do mesmo jeito, estavam propensos a desistir, à medida em que aumentavam as exigências de coragem e disposição. Com uma parábola como essa, Jesus quis injetar ânimo e perseverança neles e, ao mesmo tempo, desconstruir a imagem distorcida de um Reino marcado pela grandeza e pelos sinais exteriores. O Reino de Deus, pelo contrário, se constrói no anonimato e na simplicidade.

Agora, chama-nos a atenção, a primeira parábola contada por Jesus logo no início, a qual ocupa grande parte do texto evangélico de hoje, por trazer uma alegorização ao final do relato: a parábola do Joio e do trigo. “O Reino dos céus é como um homem que semeou boa semente no seu campo. Enquanto todos dormiam, veio seu inimigo, semeou joio no meio e foi embora” (vv. 24-25). O joio (gr, ζιζάνια– zizânia), era uma planta muito parecida com o trigo, cujos grãos são tóxicos, capazes de provocar sérios danos à saúde de quem os consumir. Fora semeado pelo inimigo enquanto todos dormiam (v. 25), a noite, símbolo das trevas e da ausência de Deus na tradição bíblica.

A parábola apresenta o Reino numa realidade de tensão e hostilidade: a semente boa e a semente nociva; o mal e o bem; o amor e o ódio; a vida e a morte. Essa forma de conceber o Reino não agradava a muitos cristãos, inclusive aos discípulos, os quais imaginavam o Reino como uma comunidade separada, formada apenas por pessoas santas e justas. Jesus mostra o contrário: quem adere ao seu projeto de vida deve estar preparado para conviver com o diferente e até mesmo com o mal, sem compactuar com ele, obviamente. Nesse sentido, a tentação a ser vencida pelo discípulo do reino, que ouve e se põe à discernir (“Quem tem ouvidos, ouça”) é a do puritanismo (querer ser uma comunidade separada, formada apenas por pessoas santas e justas), e vem expressa através da preocupação dos funcionários do dono da plantação, “Queres que vamos arrancar o joio?” (v. 28b). Eles simbolizam aquelas pessoas muito religiosas de todos os tempos; dos fariseus dos tempos de Jesus aos cristãos-católicos piedosos de hoje, e de outras religiões também. São as pessoas intolerantes que, por causa de um falso zelo, alimentam disseminam ódio e violência.

A estes, o patrão responde: “Não! Pode acontecer que, arrancando o joio, arranqueis também o trigo. Deixai crescer um e outro até a colheita” (vv. 29-30a). Ou seja, o discípulo e a discípula do reino não podem apresentar-se como juiz de ninguém. Julgar é prerrogativa de Deus apenas, e esse não julga pelas aparências, sem antes ver os frutos. O Reino dos céus proposto por Jesus não é uma sociedade de pessoas perfeitas, alheia à história e às contradições da existência, não é uma comunidade de puros. O Reino só pode ser construído no meio do conflito. Por isso, exige capacidade de diálogo, respeito às diferenças e paciência (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Dos vv.37-39, Jesus destrincha aos discípulos alguns elementos da parábola, os quais ainda não haviam ficado claros; é que chamamos de alegorização. Cada elemento da história é identificado com precisão. O semeador do trigo é o Filho do Homem, ou seja, Jesus. O campo é a humanidade, o mundo. Os filhos do Reino são a boa semente. “Filhos”, aqui, tem o sentido de seguidores, militantes de uma causa. A cizânia-jôio são os “filhos do maligno”. O semeador da semente má é o diabo, o divisor e opositor do Reino. A colheita simboliza o fim do mundo. Mas última palavra em relação à qualidade das sementes será, única e tão somente, de Deus.
  
Mesmo incompatíveis com a Boa Nova do Reino, as três tendências a serem combatidas ao interno da comunidade têm marcado a sua história, desde as suas origens com os Doze, até os dias atuais. Por isso, motivados pelo texto, qual um espelho para (e da) nossa vida, cabe-nos questionar: a que grupo pertencemos? Que semente temos sido (trigo, joio ou mostarda)? Quais posturas temos adotado? A quais tentações temos cedido? Nossas comunidades podem ser reconhecidas como sementes de mostarda, acolhendo a todos sob seus ramos?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 11 de julho de 2020

HOMILIA PARA O XV DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 13,1-9 (texto breve):



A liturgia deste décimo quinto domingo do tempo comum, propõe para a nossa meditação o capítulo treze do Evangelho segundo Mateus, o terceiro discurso de Jesus: discurso em parábolas. As parábolas pertencem ao gênero literário sapiencial, denominado mashal. Os rabinos se serviam dos acontecimentos, dos contextos e das coisas simples para transmitirem o seu ensinamento acerca da Lei, usando, portanto, tal gênero literário. Jesus, igualmente se serve deste gênero que abarca a cotidianidade da vida e das circunstâncias para ensinar os discípulos e as multidões.

As parábolas possuem três funções características para atingir seu fim pedagógico: 1) assumir elementos simples da vida cotidiana e da realidade para chamar a atenção dos ouvintes; 2) provocar os mesmos ouvintes, para, 3) gerar uma mudança de comportamento na audiência, no público alvo – nos leitores.

Mateus reúne em sua catequese o ensinamento de Jesus sobre o segundo absoluto de sua vida e missão: o Reinado de Deus, que na catequese mateana, seu autor prefere a terminologia “dos Céus”, porque não quer ferir os costumes e a tradição religiosa de seus ouvintes-discípulos e leitores judeus-cristãos que, por reverência, não mencionam o nome de Deus. Dissemos que a vida de Jesus se pauta a partir de dois absolutos, a saber: a relação com o Deus que ele chama de Pai, e o anúncio do Reino. Este, torna-se o conteúdo de sua missão. O Reino ou Reinado – como a exegese atual prefere assim nomear – é a atuação de Deus na História humana através de Jesus de Nazaré. Por isso, o Reino é uma pessoa, como já dizia Orígenes, nos primórdios da tradição eclesial. A adesão a pessoa de Jesus de Nazaré, confessado como Senhor e Cristo, promove um novo viver na história do discípulo e na história humana, gerando e propondo um modo de ser e de viver, uma ética. O Reinado de Deus é uma pessoa, Jesus; e a ética – modo de ser e de existir – decorrente da opção fundante e pessoal da pessoa – o estilo, o jeito e a proposta de Jesus sendo encarnada na realidade humana.

As parábolas de Jesus sobre o Reinado de Deus, são, na verdade, modos diferentes de se mostrar – misteriosamente – a atuação de Deus na história. Mateus reúne neste capítulo sete parábolas destinadas a ilustrar o modo como o Reino atua na história. São chaves para interpretar a ação de Jesus e o destino do Reino, quando sua morte já está decretada (Mt 12,14) e os discípulos correm o risco de cultivar ideias equivocadas a respeito do Mestre. Ao revelar os “mistérios do Reino”, isto é, como Deus age na história, Jesus quer alertar os discípulos. Por isso, as parábolas são decifradas para eles, em particular. As multidões, que ainda não aderiram a Jesus ou o veem com suspeita, são inaptas para compreendê-las; daí as parábolas permanecerem enigmáticas para elas. A primeira parábola a ser meditada é a da semeadura. Fazemos a opção pelo texto breve (durante a semana postarei um comentário sobre o texto integral).

Dos  vv.1-3, Mateus situa-nos na cena. Jesus está nas margens do mar da Galileia. Ali uma multidão se reúne para ouvi-lo. Toma a iniciativa de subir numa embarcação e começa a ensinar. Mateus não quer que Jesus seja comparado aos rabinos de seu tempo, que ensinavam em pequenos grupinhos e de modo privado. Para Ele, está fora de cogitação discorrer sobre como interpretar a Lei de Moisés, nos moldes dos rabinos. Sua preocupação centra-se, antes, no desafio de ser discípulo em contextos adversos.

Logo, o deslocamento de Jesus da casa para às margens do mar significa que, mesmo em um contexto de hostilidades à pregação do anúncio do Reino, a comunidade cristã não pode fechar-se em si nem buscar seguranças. Pelo contrário, deve lançar-se, colocar-se em saída e ir às margens. Com essa atitude de sair de casa e ir às margens do mar, Jesus convida a Igreja de todos os tempos a ser uma Igreja em saída (CORNELIO, F, Homilia dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

De 4-9, Jesus começa a expor a dinâmica do acontecimento do Reinado de Deus servindo-se da imagem do semeador, que sai para semear. A semente que carrega consigo vai, ao longo do caminho caindo. Cai em terreno pedregoso, em meio a espinhos, em solo arenoso e, por fim, em terra boa e fértil.

O elemento-surpresa da parábola que deve chamar a atenção do ouvinte e, posteriormente, do leitor discípulo do evangelho, que é, por si só paradoxal é o próprio semeador. O ouvinte ou leitor poderá se questionar: “mas que tipo de semeador desatento é esse, que não percebe que as sementes vão caindo pelo caminho?”. Esta provocação, como dissemos no início, é intencional. Ela serve para despertar o discípulo.

O semeador, numa leitura cristológica é o próprio Jesus. A semente, numa perspectiva teológica, é o próprio Reinado de Deus na história. A missão do semeador, numa perspectiva eclesiológica e, portanto, comunitária, é a missão mesma da comunidade. Nesse sentido, a missão dela será a mesma do semeador, o Senhor, que inaugura a atuação salvífica de Deus na história e na realidade humana. O sentido desta parábola, portanto, é o de ilustrar o acontecimento/evento do Reinado de Deus em meio as muitas realidades, sejam elas positivas ou negativas. É uma maneira bem simples de Jesus dizer aos seus que o mistério do Reino acontece, é eficaz, real e atuante na realidade e na história humana em meio a muitas perdas, simbolizadas pelos tipos de terrenos perpassados pelo semeador.

Jesus explicará, em seguida, particularmente aos discípulos, a peculiaridade de cada terreno atingido pela semente. Todavia, a semente caída em terra boa simboliza quem acolhe a palavra e anúncio do Reino e se deixa transformar por eles, produzindo os frutos do amor, do perdão e da reconciliação, desejados por Jesus. Cem, sessenta e trinta por cento dizem respeito à capacidade de cada um acolher a mensagem do Reino e fazê-la frutificar em boas obras. Essa imagem exagerada dos frutos é importante: o máximo que se esperava de uma espiga de trigo eram trinta grãos. Aqui está uma demonstração da vida em plenitude que receberão aqueles que aderirem ao projeto do Reino. O que parecia ser muito (trinta frutos) passa a ser mínimo diante da beleza que é a vida de quem se deixou conduzir pelos frutos do Reino. A colheita surpreendente (cem frutos por semente) só é possível para quem confia na Palavra e se abre completamente aos valores do Reino. O que parecia muito, fora da mentalidade nova proposta por Jesus, é o mínimo na dinâmica do Reino. Todavia, só quem tem discernimento é capaz de compreender o significado da parábola (Mt 11,15; 13,43). E, com muita reflexão, poderá captar a mensagem de esperança e encorajamento desse ensinamento de Jesus.

Por três óticas pode-se tirar a lição do Evangelho deste domingo: a comunitária, cristológica e escatológica. Na perspectiva comunitária, alerta vai na seguinte direção: o discípulo é tentado ao eficientismo. “Tudo que se faz deve ser bom!” Mas Jesus quer ensinar que o mistério do Reino vai acontecendo, sim, porém por força própria, mesmo em meio a muitas perdas. Contudo, o investimento deve ser total, ainda que seja nas pequenas coisas. A força do crescimento desta semente depende de Deus. Ao semeador cabe somente a semeadura. Por isso, nem mesmo a colheita dependerá dele, mas, escatologicamente, a Deus. A missão do Semeador, e, consequentemente, dos discípulos, consiste apenas no lançar a semente. Vale também repensar a pastoralidade da Igreja, que, muitas vezes cai na tentação do eficientismo, e, em decorrência disso, na pastoral do milagre e do sucesso. Eclesiológicamente, a comunidade dos discípulos (a Igreja) não deve ter a pretensão do sucesso garantido. Não deverá julgar a sua identidade mediante a isso. Mas poderá medir sua autenticidade diante das muitas perdas. Quando se começa a perceber muito sucesso, é porque a mentalidade do Anti-Reino entrou em suas estruturas.

Percebamos que, mesmo em termos cristológicos, o próprio Jesus foi quem muito semeou; no final de sua vida, não colheu nada. Para onde foram seus discípulos? Ora, o que vale para o mestre, vale igualmente para o discípulo!

A dimensão escatológica se mostra na qualidade dos frutos. Somente no final da missão é que se verá, de fato, que tipo de semente se produziu. Os que se acham os tais, poderão se reconhecer também como sementes que não produziram ou solos inférteis. Os que achavam que nada produziram poderão ser as sementes autênticas, que deram frutos em abundância.

Estrada, pedra, espinhos e terra boa é metáfora para o coração de cada um. Que a Igreja seja estimulada sair constantemente de si mesma para lançar as sementes do Reino, a Palavra, em todas as circunstâncias. O importante é ter coragem de assumir as margens sem medo. É necessário, inclusive, ter a coragem de fracassar.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 4 de julho de 2020

HOMILIA PARA O XIV DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 11,25-30:



O décimo quarto domingo do tempo comum apresenta o capítulo onze do Evangelho segundo Mateus, para a nossa reflexão. Sempre se faz importante contextualizar o texto, a fim de se compreender a mensagem de Jesus, transmitida pelo catequista bíblico Mateus para sua comunidade e para as gerações seguintes dos seguidores e das seguidoras de Jesus.

No capítulo décimo, Jesus inaugurou e transmitiu o ensinamento acerca de sua missão (e, consequentemente, a do discípulo) – o discurso missionário. Todavia, o envio missionário não acontece imediatamente ao ensinamento. Ele será postergado e só acontecerá no final do Evangelho, quando o discípulo estará pronto para se tornar missionário-apóstolo do Reino, porque compreendeu o sentido da vida de Jesus.

Os capítulos 11 – 12 apresentam as várias reações diante do ensino e da ação de Jesus, transformado em objeto de controvérsia por parte dos adversários, escribas e fariseus, e dos incapazes de compreender sua pregação. A partir de então, o evangelho apresentará a contínua rejeição de Jesus. E, mais, seus inimigos tomam a decisão de matá-lo (Mt 12,14). Em contraste a estes grupos rivais, encontra-se o grupo dos pequeninos. Com essa deixa, se pode entrar no horizonte do texto litúrgico proposto para a nossa meditação.

“Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos
e as revelaste aos pequeninos” (v.25). O evangelista constata um louvor em forma de bênção, elevado por Jesus ao Pai, Senhor do céu e da terra (isto é, senhor de tudo). Mas o louvor de Jesus tem um motivo: foi do agrado de Deus revelar os mistérios do Reino aos pequeninos. Ou seja, correspondeu a iniciativa do próprio Deus, em Jesus, agir desse modo. O modo de agir de Deus vai na contramão do pensamento, dos esquemas e da lógica humana.

Quem são os pequeninos? Um mesmo vocábulo grego, dependendo do contexto em que é usado, assume conotações diferentes, dando origem a traduções diferentes. Isso acontece com a palavra pequenino. Ao interno do evangelho mateano, o autor se serve de dois termos gregos para falar deste grupo: mikrós e népios. O primeiro é utilizado ainda no capítulo décimo e está referido ao grupo dos discípulos. A mesma palavra ocorre novamente em 11,11 (“o menor no Reino dos Céus”); 13,32 (“a menor de todas as sementes”); 18,6.10.14 (“escandalizar a um destes pequeninos ... não desprezar a um destes pequeninos ... não se perca nem um só destes pequeninos”). Mikrós (pequeno) é antônimo de me meno mégas (grande). No caso dos discípulos, ser pequeno é contrapor-se à ambição do poder e do domínio dentro da comunidade, coisa dos grandes, no sentido mundano. Trata-se de quem não pretende assumir a postura de Mestre e compreende seu ministério como serviço. Népios, utilizado no texto de hoje, tem o significado de criança, menino, menor, menor de idade. É o símbolo daquele que se deixa instruir. Este terá precedência na revelação porque, não se julgando proprietário, dono, detentor da verdade, está aberto à novidade do Reino ensinada por Jesus. Qualquer pessoa que assuma tal atitude pode ser chamada de népios. Em português, pode-se chamá-los de simples (cf. VITÓRIO, 2017, p.79).

No v.27, Jesus declara: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai,
e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. O Pai, Senhor do céu e da terra, ou seja, de tudo, decidiu colocar tudo nas mãos de Jesus, e ele pode revelar os mistérios de Deus a quem ele quiser. O Pai, Senhor de tudo, coloca tudo nas mãos de Jesus, o Filho. E este, por sua vez, tem a autoridade de colocar tudo a respeito de Deus a quem ele quiser. Isso soa, aos ouvidos dos opositores de Jesus, incompreensível, dado a dureza de seus corações na firme opção em rejeitar a Jesus, e porque eram os detentores do poder religioso da época.

Dito de outra maneira, o conhecimento do Pai passa por Jesus! Por conseguinte, rejeitar Jesus e fechar-se para sua pregação significa, em última análise, rejeitar Deus e fechar o coração para Sua palavra.

No v.28, Jesus reorienta a vida e a direção dos pequeninos e dos discípulos através de um convite ressignificador: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso”. Este dito de Jesus foi sempre mal compreendido, dando margem para compreensões moralistas e escrupulosas ao texto. O fardo a que se refere Jesus não são os pecados, frutos das atitudes humanas permeadas pela liberdade. Fardo, na intenção de Jesus e de Mateus, se refere à Lei mosaica, com suas 613 prescrições, as quais são derivações forçadas das interpretações que os escribas e fariseus faziam sobre os mandamentos da Torá. Estas seiscentas e treze leis oprimiam as pessoas, dada sua complexidade (Mt 23.4), e não geravam mais vida, senão somente o nutrimento de sistemas e mecanismos injustos, promotores de alienação e de morte para o povo simples. Portanto, não se trata do jugo do pecado, mas, sim, o da Lei transformada em peso para as pessoas (cf. Sr 6,22-32; 51,26-27).

Jesus, Sabedoria encarnada na história (Pr 8), em contrapartida, propõe um julgo, diferente do fardo/peso. Fazendo-se discípulo dele, aprendendo com ele, manso e humilde de coração, que não busca dominar, é possível encontrar descanso, pois seu jugo não machuca ninguém e seu peso é leve. Ele exige dos discípulos somente o essencial, a justiça do Reino (Mt 7,33). O essencial proclamado por Jesus é quantitativamente mais simples, mas qualitativamente muito mais exigente que a justiça dos escribas e fariseus (Mt 5,20), apegados à letra e às prescrições que legitimavam seus estilos de vida. Jesus reordena a vida do discípulo às exigências do coração, do amor e da misericórdia, que promovem a Justiça do Reino. E não para uma lei que já não gera vida, senão oprime e acabrunha.

O texto evangélico de hoje nos questiona: quem somos e onde estamos? Encontramo-nos inseridos entre os pequeninos – abertos, disponíveis e livres para acolher o projeto de Jesus –, ou entre os sábios e entendidos, ciosos e fechados sobre si mesmo e sobre o que sabem – impermeáveis e resistentes ao projeto do Reino anunciado por Jesus? Nossas comunidades, são comunidades dos pequeninos ou dos sábios?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.