A liturgia do décimo sexto domingo do
tempo comum dá continuidade à meditação do Discurso em Parábolas de Jesus, contido
em Mt 13. Neste capítulo encontramos sete ilustrações usadas por Jesus para
anunciar os mistérios do Reino – como o Reinado de Deus vai se desenvolvendo na
história. As parábolas fazem parte do gênero sapiencial, os meshalim, formas
simples de ensinar o povo, servindo-se das situações cotidianas e da realidade.
Jesus, como um bom sábio israelita, incorpora esta pedagogia para ensinar,
visando chamar a atenção dos seus, provoca-los e gerar naqueles que o escutam
uma mudança de mentalidade e de vida.
A liturgia continua a leitura do capítulo treze
do evangelho mateano, a partir do v.24, que já nos insere no horizonte do
texto. O ensino de Jesus ainda é dado às multidões. De seu interno, aquele que
adere palavra de Jesus sairá o discípulo. A partir deste versículo, Mateus
recorda três novas parábolas de Jesus: o joio e o trigo, a semente de mostarda
e o fermento na massa (24-33). De 34-35, o evangelista interrompe o discurso de
Jesus, e serve-se de uma citação do Antigo testamento, precisamente dos Salmos,
a fim de justificar aos seus discípulos-leitores e ouvintes de seu evangelho, a
motivação para falar em parábolas.
Jesus fala às multidões de modo a ser
entendido. Por isso, prefere falar por meio de parábolas. As parábolas são uma
maneira simples de se dirigir ao povo, por terem como ponto de referência
elementos da vida quotidiana. A ilustração do conteúdo de suas palavras com
comparações permite a Jesus ser compreendido pelos ouvintes. Um texto do Antigo
Testamento ilustra esse expediente do Mestre. Trata-se do Salmo 78[77],2:
“Abrirei minha boca para falar em parábolas. Proclamarei as coisas que estão
ocultas desde a criação do mundo”. O salmista, de maneira parabólica, revela os
desígnios secretos de Deus na história de Israel. Algo semelhante faz Jesus
quando fala do Reino dos Céus. E a maneira sapiencial de ensinar que o Jesus de
Mateus recupera (cf. VITÓRIO, 2017, p.91).
Dos vv.36-43, Jesus explica aos discípulos
– portanto, um ensinamento reservado – apenas a parábola do Joio. As parábolas são contadas para todos, multidão e discípulos.
Entretanto, só este grupo recebe explicação, pois deverão transmiti-las ao
saírem em missão (Mt 13,52). É importante lembrar que as parábolas têm sua
aplicação comunitária. Elas são contadas por Jesus e recordadas pelo
evangelista a fim de coibir e sanar as tentações surgidas ao interno da comunidade
cristã, incompatíveis com a mensagem de Jesus.
“O Reino dos céus é como uma semente de
mostarda que um homem pega e semeia no seu campo. Os pássaros vêm e fazem
ninhos em seus ramos” (v.31-32). A parábola
da semente de mostarda, é a resposta de Jesus aos desejos de grandeza e poder
na sua comunidade. Diante da estrutura imperial e da grande organização da
sinagoga, o projeto de Jesus era praticamente invisível. Os discípulos,
sedentos de poder, não se conformavam com aquela situação. É necessário que a
comunidade dos discípulos aceite a condição de pequenez em que se encontra e
reconheça essa pequenez como necessidade para compreender a dinâmica do Reino. O
qual não pode impor-se por sinais de grandeza nem de espetáculo. O importante é
que ele seja cultivado, mesmo como uma semente pequena, e colocar-se no mundo
para servir, como acontece com a mostarda. A única preocupação dos que lutam
pelo Reino deve ser se estão sendo abrigo e serviço para os mais necessitados.
E a tentação que Jesus visa coibir no seio da comunidade dos discípulos, e que
Mateus que eliminar de sua comunidade é que o projeto do Reino ceda ao projeto
de grandeza (sede de poder e sobreposição sobre os demais grupos) (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).
“O Reino dos céus é como o fermento que
uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique
fermentado” (v. 33). A parábola do fermento Essa é uma das parábolas mais
revolucionárias de Jesus porque apresenta o Reino dos céus sendo comparado a um
elemento considerado impuro pela tradição judaica, o fermento, e com a
atividade de uma mulher. Ora, para a cultura e tradição da época, a mulher pouca
teria a contribuir com um projeto de sociedade como era o Reino dos céus e, no
entanto, Jesus apresenta o seu agir como imagem da construção do seu Reino. A tentação
que o Jesus de Mateus quer fazer a comunidade vencer é a do desânimo (vontade
de desistir por não ver resultados nem efeitos gerados pela pregação e a forma
de vida cristã). E era exatamente a paciência que estava acabando nos
discípulos e levando-os ao desânimo. Como não viam efeito algum na pregação
deles e de Jesus, pois o mundo continuava do mesmo jeito, estavam propensos a
desistir, à medida em que aumentavam as exigências de coragem e disposição. Com
uma parábola como essa, Jesus quis injetar ânimo e perseverança neles e, ao
mesmo tempo, desconstruir a imagem distorcida de um Reino marcado pela grandeza
e pelos sinais exteriores. O Reino de Deus, pelo contrário, se constrói no
anonimato e na simplicidade.
Agora, chama-nos a atenção, a primeira
parábola contada por Jesus logo no início, a qual ocupa grande parte do texto evangélico
de hoje, por trazer uma alegorização ao final do relato: a parábola do Joio e
do trigo. “O Reino dos céus é como um homem que semeou boa semente no seu
campo. Enquanto todos dormiam, veio seu inimigo, semeou joio no meio e foi
embora” (vv. 24-25). O joio (gr, ζιζάνια– zizânia), era uma planta muito
parecida com o trigo, cujos grãos são tóxicos, capazes de provocar sérios danos
à saúde de quem os consumir. Fora semeado pelo inimigo enquanto todos dormiam
(v. 25), a noite, símbolo das trevas e da ausência de Deus na tradição bíblica.
A parábola apresenta o Reino numa realidade
de tensão e hostilidade: a semente boa e a semente nociva; o mal e o bem; o
amor e o ódio; a vida e a morte. Essa forma de conceber o Reino não agradava a
muitos cristãos, inclusive aos discípulos, os quais imaginavam o Reino como uma
comunidade separada, formada apenas por pessoas santas e justas. Jesus mostra o
contrário: quem adere ao seu projeto de vida deve estar preparado para conviver
com o diferente e até mesmo com o mal, sem compactuar com ele, obviamente.
Nesse sentido, a tentação a ser vencida pelo discípulo do reino, que ouve e se
põe à discernir (“Quem tem ouvidos, ouça”) é a do puritanismo (querer ser uma
comunidade separada, formada apenas por pessoas santas e justas), e vem
expressa através da preocupação dos funcionários do dono da plantação, “Queres
que vamos arrancar o joio?” (v. 28b). Eles simbolizam aquelas pessoas muito
religiosas de todos os tempos; dos fariseus dos tempos de Jesus aos
cristãos-católicos piedosos de hoje, e de outras religiões também. São as
pessoas intolerantes que, por causa de um falso zelo, alimentam disseminam ódio
e violência.
A estes, o patrão responde: “Não! Pode
acontecer que, arrancando o joio, arranqueis também o trigo. Deixai crescer um
e outro até a colheita” (vv. 29-30a). Ou seja, o discípulo e a discípula do
reino não podem apresentar-se como juiz de ninguém. Julgar é prerrogativa de
Deus apenas, e esse não julga pelas aparências, sem antes ver os frutos. O
Reino dos céus proposto por Jesus não é uma sociedade de pessoas perfeitas,
alheia à história e às contradições da existência, não é uma comunidade de
puros. O Reino só pode ser construído no meio do conflito. Por isso, exige
capacidade de diálogo, respeito às diferenças e paciência (CORNÉLIO, F, Homilia
Dominical, in.porcausadeumcertoreino.blogspot.br).
Dos vv.37-39, Jesus destrincha aos discípulos
alguns elementos da parábola, os quais ainda não haviam ficado claros; é que
chamamos de alegorização. Cada elemento da história é identificado com
precisão. O semeador do trigo é o Filho do Homem, ou seja, Jesus. O campo é a
humanidade, o mundo. Os filhos do Reino são a boa semente. “Filhos”, aqui, tem
o sentido de seguidores, militantes de uma causa. A cizânia-jôio são os “filhos
do maligno”. O semeador da semente má é o diabo, o divisor e opositor do Reino.
A colheita simboliza o fim do mundo. Mas última palavra em relação à qualidade
das sementes será, única e tão somente, de Deus.
Mesmo incompatíveis com a Boa Nova do
Reino, as três tendências a serem combatidas ao interno da comunidade têm
marcado a sua história, desde as suas origens com os Doze, até os dias atuais. Por
isso, motivados pelo texto, qual um espelho para (e da) nossa vida, cabe-nos
questionar: a que grupo pertencemos? Que semente temos sido (trigo, joio ou
mostarda)? Quais posturas temos adotado? A quais tentações temos cedido? Nossas
comunidades podem ser reconhecidas como sementes de mostarda, acolhendo a todos
sob seus ramos?
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.
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