sábado, 28 de março de 2020

HOMILIA PARA O V DOMINGO DA QUARESMA – Jo 11,1-45:


A liturgia deste quinto domingo da Quaresma, apresenta-nos o capítulo onze do Evangelho segundo João, o qual relata para nós a reanimação de Lázaro. Esta narrativa carrega consigo o último sinal realizado por Jesus no evangelho joanino. O que nos faz recordar que ainda estamos ao interno do livro dos sinais (Jo 1,18 – 12,51), os quais preparam o leitor-discípulo para a Hora de Jesus, apresentada no Livro da Glória (Jo 13 – 20), e tratam, através de seu sentido simbólico, apontar e revelar a identidade de Jesus de Nazaré para que o discípulo possa tomar a sua decisão – favorável ou contrária – ao Senhor.

O substrato histórico da cena narrada são as vivificações que se encontram nos gestos de Elias e Eliseu (cf. 1Rs 17,17-24; 2Rs 4,8-37), na pregação de Isaías referente aos tempos messiânicos, no Antigo Testamento; as vivificações narradas nos sinóticos, por exemplo, a reanimação do filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17) e a reabilitação da filha de Jairo (Mc 5,22-43).

Uma terceira constatação, a nível de contexto, refere-se ao fato de que esse relato da reanimação de Lázaro foi inserido entre as ameaças de morte a Jesus por parte dos dirigentes do povo e da religião oficial (que o evangelista chama de “os judeus”), após o ensinamento o sinal realizados na piscina de Betesda (Jo 5), depois, por ocasião da festa da dedicação do templo em Jo 10,38. E, seguida a realização deste sinal, em Jo 11,46-54, quando as autoridades tramam descaradamente a morte de Jesus. Surge, então, um dado interessante: na iminência da sua morte, Jesus responde com o dom da vida.

Convém recordar que, o sinal narrado não trata propriamente de uma ressurreição, mas de uma “reanimação”, considerando que ressurreição é a passagem da morte para uma vida definitiva e plena, graças à ressurreição de Cristo. O que João narra é Jesus realizando a reanimação de um corpo que já se encontrava em estado de decomposição, foi recuperado, mas que continuou corruptível. Jesus apenas prolongou os dias de Lázaro com esse sinal extraordinário (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Agora podemos perscrutar o horizonte do texto e retirar dele sua mensagem central, uma vez que não poderemos comentar versículo por versículo, dada a extensão do relato. O autor sagrado situa-nos na cena. “Havia um doente, Lázaro, de Betânia, povoado de Maria e de sua irmã Marta” (v. 1). O evangelista apresenta Betânia, (lit. “casa da aflição”), como o espaço de uma comunidade cristã ideal, onde a fraternidade, de fato, reinava. Essa fraternidade é evidenciada pela apresentação que o evangelista faz de seus membros: Lázaro, Maria e Marta são apresentados apenas como irmãos; não há maior e menor entre eles, tampouco a figura paterna que, naquele tempo assegurava a unidade e a identidade ao interno dos clãs; a figura patriarcal e a sua mentalidade encontram-se superadas, não há hierarquia entre aqueles que a compõem. Era a comunidade ideal.

Ainda que apresentasse suas fragilidades, pois o catequista bíblico diz que Betânia era um povoado, o que na conotação da época era negativo, pois “povoado” era sinônimo de mentalidade fechada, conservadorismo e resistência. Outro motivo, era a sua distância de Jerusalém, 3 quilômetros, o que gerava certa instabilidade, por que sua proximidade não é, em essência geográfica tão somente, mas ideológica. Corria-se sempre o risco de assimilar a mentalidade da capital Jerusalém. Esta comunidade fica ainda mais fragilizada devido à falta que vêm a fazer um de seus membros, Lázaro, aquele que era amigo de Jesus. Ou amado por Ele. O adjetivo “amado” faz alusão ao discípulo amado: este, não é um personagem identificável, como muito se pensou, chegando a identificá-lo com o próprio evangelista João, o que seria um equívoco. O discípulo amado é símbolo para todo aquele que assumiu o propósito, a vida, a missão e a obra realizada por Jesus como programa para sua vida. É, portanto, símbolo da comunidade que adere a Jesus e seu projeto. Lázaro pode ser contado entre estes!

Damos um salto para o v.4: onde Jesus, informado sobre a enfermidade de Lázaro, responde que essa enfermidade é ocasião para a Glória de Deus, o que corresponde a Jo 9,3, quando se refere, do mesmo modo, ao cego de nascença e sua enfermidade. O catequista bíblico relembra para seus leitores-fiéis os milagres de Moisés realizados diante do povo, no Livro do Êxodo. Estes são sinais da manifestação da glória de Deus, de sua presença, porque a Glória (hbr. Kabod) na bíblia, no AT, significa a presença substanciosa de Deus junto e no meio de seu povo. A glória de Deus, nas Sagradas Escrituras, não pode ser entendida no sentido de brilho, resplendor, algo que chame a atenção. 

O que o evangelista quer ensinar para sua comunidade é o seguinte: em Jesus de Nazaré, Deus está presente. Sua vida, missão e obra, através dos sinais que aqui opera, revelam a manifestação da presença de Deus, agindo nele. O que Jesus realizará, para o bem dos discípulos (ocasião favorável), será um sinal que testifica Deus presente nele. Com razão ele afirma no v.15, "por causa de vós, alegro-me por não ter estado lá, para que creiais”. A morte de Lazaro é para mostrar a glória de Deus aos discípulos. Retrocedendo um pouco, no v.11, Jesus diz que Lázaro está dormindo. Este jogo de palavra lembra a vivificação da Filha de Jairo. Dormir, na mentalidade e na língua hebraica alude à morte, como o grego traduz bem.

Saltamos mais alguns versículos, e no v.19, o evangelista informa que muitos judeus (devido à proximidade de Jerusalém) tinham vindo para Betânia consolar Marta e Maria. Podemos nos lembrar de Lucas, que no capítulo 10 mostra as duas personagens. Marta é mais agitada do que Maria. Mais uma vez aqui, como no relato lucano, ela é quem toma a atitude e vai encontrar Jesus que já estava às portas da cidade. A morte era vista como causa de desespero e medo, e Jesus não era conivente com essa mentalidade. Por isso, Ele prefere não entrar no povoado: Marta vai ao encontro dele e, depois, também Maria, após ter sido chamada (vv. 20.28.30).

Jesus fica fora do povoado porque somente saindo das antigas estruturas e mentalidade é possível vivenciar o triunfo da vida: de fora do povoado, Jesus chama as irmãs a saírem; Ele não entra e, tampouco as conduz tomando-as pela mão, mas dá a liberdade de escolha; ao seu convite, as irmãs de Betânia e os cristãos de todos os tempos podem responder positiva ou negativamente (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

No v.21, Marta, após ter colocado Jesus na parede por causa de sua ausência durante a enfermidade de Lázaro, também faz uma profissão de Fé em Jesus, reconhecendo que Ele pode administrar aquilo que Deus dá. E, através deste reconhecimento, Marta, que é símbolo da comunidade abre espaço para um dom infinito que Deus pode dar somente em Jesus. Mas, para isso, é necessário dar passos importantes, como renunciar a certas mentalidades ainda existentes.

Após afirmar para Marta que Lázaro ressuscitará, a irmã do defunto expressa a mentalidade da época presente no imaginário Judeu (v.24). Lembra o Livro de Daniel, que se situa entre 167-164 a.C,  o qual menciona, pela primeira vez, a ressurreição nos últimos tempos. Pensamento este, presente na cabeça dos fariseus. Ela fala como uma boa fariseia. Este versículo mostra uma abertura progressiva da fé de Marta acerca da ressurreição que precisa ser ressignificada.

Então, no v.25, Jesus afirma: 'Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá”. O Senhor e o evangelista usam uma fórmula de revelação, aludindo ao nome divino “Eu Sou (YHWH)”. O evangelista João toca no tema da Escatologia presente, muito cara aos seus escritos e à sua teologia. Ele pretende afirmar para a sua comunidade que a ressurreição que se esperaria no fim dos tempos está aí, presente onde Jesus está. Ele supera o não-morrer, supera a ideia de ressurreição do Livro de Daniel. Supera a fé farisaica. Ele é a vida presente. 

O v.26 continua “E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês isto?” Esta interrogação pode ser entendida por meio daquela fusão de horizontes: a pergunta é destinada tanto à personagem Marta,  bem como para a comunidade Joanina em crise de fé dos anos 90 d.C, como para o candidato à Fé em Cristo, que se prepara para receber o batismo, dado que o Quarto Evangelho é destinado aos iniciados e aos catecúmenos.

Contudo, para os dois grupos “que creem, viverão, ainda que mortos estejam fisicamente!” É claro que isso se refere à Lazaro primeiramente, e depois estende-se aos demais. Mas a beleza deste tema da escatologia presente joanina é tamanha que, aqueles que em vida biológica acreditaram e aderiram a Jesus, tem a oportunidade de experimentar esta Vida qualitativamente distinta, no aqui e no agora. Fazem a experiência de viverem já, no agora, uma vida sob cores e tons de eternidade; dão um salto qualitativo para a vida eterna; e a fé é o que abre espaço para este eon vindouro. Isso se faz presente através do dom que Deus faz em Jesus.

Marta faz, então, a sua profissão de fé, no v.26 como uma iniciada e catecúmena. Uma perfeita profissão de Fé, por assim dizer. João concorda na fala de Marta os títulos de sua cristologia, Cristo e Filho de Deus. Significa que Ela crê que Jesus é o messias, vindo na qualidade de Filho de Deus.

Somos convidados a dar mais um salto e nos dirigirmos aos vv.33-36, onde vemos um Jesus que chora. João narra um acontecimento da vida e da história de Jesus, que antecede qualquer formulação da cristologia do segundo milênio, a qual pintava uma faceta apenas gloriosa de Jesus, enfatizando muito a sua onisciência. O Jesus da cristologia dos evangelhos e, principalmente, do Quarto Evangelho é um homem autêntico. É uma maneira de dizer que o choro de Jesus não é um rito funerário, como era comum entre as irmãs dos defuntos, mas uma expressão do amor que tinha aos três amigos. É a única vez que se menciona dessa maneira o ato de chorar da parte de Jesus. Mas este estremecimento, na verdade, é um eco daquele estremecimento profético, quando o projeto de Deus era rejeitado pelo povo e por suas lideranças. Jesus, como os profetas do AT, rejeitados por causa do projeto de Deus, estremece internamente devido à rejeição e à dúvida em relação à sua identidade e missão.

Todavia, se faz necessária mais uma observação semântica. As irmãs choravam (vv. 31.33). Há, no entanto, uma distinção entre as duas maneiras de chorar, o que não se percebe na tradução litúrgica. Em relação a Maria, o evangelista emprega um verbo que significa chorar desesperadamente e com lamentos (em grego: κλαίω – klaío). Para afirmar o “choro” de Jesus, o evangelista emprega um outro verbo, que significa simplesmente “derramar lágrimas”, “lacrimejar” (em grego: δακρύω – dakryo), e expressa uma reação natural, sem desespero. Portanto, enquanto os demais, principalmente as irmãs, choravam desesperadamente, derretendo-se em prantos e lamentações, Jesus apenas derramou lágrimas porque, para Ele, a morte nunca é o fim (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Analisando os vv.39-45, deparamo-nos com o desfecho da narrativa deste sinal. Jesus chega ao lugar da sepultura de Lázaro e pede que retirem a pedra colocada na entrada. A pedra representa tudo o que separa a vida da morte: o medo, a violência, a opressão e tudo o que a Lei causava de mal no seio da comunidade dos discípulos. Para Jesus, a antiga Lei era sinal de morte. No entanto, Marta objeta, dizendo que seu irmão está sepultado há quatro dias, e que cheira mal, enfatizando qualquer impossibilidade de vida.

Fazia parte do imaginário judaico a crença de que até três dias após a morte, ainda era possível que o defunto voltasse a viver, pois acreditava-se que o seu espírito morto ainda vigiava o cadáver. A partir do quarto dia, começava a decomposição e, portanto, o espírito ia embora. Realizando o sinal até o terceiro dia, a “glória do Filho de Deus” não seria manifestada, pois os presentes reconheceriam como algo natural, conforme a crença. A chegado após quatro dias desbaratava tal crença e revelava a glória de Deus no Filho (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Jesus faz uma prece ao Pai, a qual é a expressão da comunicação e comunhão íntima e profunda entre Eles. Então ordena, exclamando com voz forte: “Lázaro, vem para fora!” (v.43). Lazaro (hbr. Eleazar, Deus Ajuda) é chamado novamente à vida, mas ainda amarrado; inclusive seus amigos e parente devem dar um jeito nisso, devem desamarrá-lo e deixá-lo ir. Esta ordem, de fato, significa o convite final que Jesus faz para a liberdade. É necessário “desatar” (v. 44) o ser humano de tudo o que o impede de caminhar livremente em busca da vida plena e da dignidade.

Mas o sinal aponta para uma realidade ulterior, como sabemos, e o discípulo não pode parar na simples materialidade do sinal, que no caso é a reanimação de Lázaro, que volta à vida ainda atado e com dificuldades (sua existência ainda é caduca). Este sinal de Jesus alude para uma realidade muito profunda: Diferentemente de Lázaro, Jesus ressuscita sem nada que o impeça, cordas ou faixas que lhe dificultem. Bem como a sua ida à Betânia, e o sinal ali realizado tiveram, portanto, um objetivo muito claro: libertar a comunidade da morte física, por um momento, e principalmente, da doença e morte ideológica, da qual encontrava-se ameaçada. Mais ainda, no nível da catequese batismal, para a qual esta narrativa também se ordena e orienta, a ordem de Jesus seria uma expressão do encaminhamento que a comunidade deveria dar à pessoa chamada ao batismo.

Somos convidados, diante deste relato a nos questionar sobre quem somos no horizonte do texto: Marta, a agitada que está perdendo a Esperança, vivendo ainda sob o véu das antigas concepções? Ou somos como Maria, que é símbolo do discípulo que crê e reconhece a importância do Senhor, indo lhe ao encontro? Se temos reconhecido Jesus como a Ressurreição e a Vida presente a nós, e, com isso acolhido o dom de Sua vida como oportunidade atualíssima de viver aqui e agora sob as cores e os tons de uma vida ressuscitada?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

sexta-feira, 27 de março de 2020

BÊNÇÃO URBI ET ORBI EXTRAORDINÁRIA.




Benção Urbi et Orbi extraordinária, com concessão de indulgência plenária:

A benção Urbi et orbi é administrada pelo Santo Padre em três ocasiões: na solenidade do natal do Senhor, 25 de dezembro, na solenidade pascal do domingo de páscoa e por ocasião de sua eleição como bispo de Roma, quando, findado os ritos do Conclave e anunciada a sua eleição pelo cardeal protodiácono no balcão central da basílica de São Pedro, após saudar os fiéis aglomerados, que ali esperam para ver o novo Bispo de Roma, e pastor universal da Igreja.

A Benção Apostólica Urbi et orbi recebe este nome porque faz memória aos tempos do império romano, que ao emitir um decreto ou uma disposição as definia assim: “para a cidade de Roma e para todo o mundo habitado, portanto Urbi et orbi. Nesse sentido esta benção é um sacramental administrado pelo Romano Pontífice em favor dos fiéis da cidade de Roma (Urbi) e dos filhos da Igreja, dispersos sobre a face da terra (Orbi), e a faz na sua dignidade episcopal e na condição de pastor supremo e universal da Igreja, condições estas inerentes ao múnus do Ministério Petrino. É, pois, a benção apostólica dirigida para a cidade e para o mundo. Igualmente os bispos, em função de seu caráter episcopal, podem conferir a Benção Apostólica.

Hoje, por razões conhecidas a todos, o Papa Francisco convocou um momento de adoração ao Senhor, no Santíssimo Sacramento eucarístico, onde administrará a benção Urbi et orbi, concedendo a indulgência plenária a todos aqueles que estiverem unidos em oração com ele, através dos meios de comunicação.

As condições estabelecidas pelo Santo Padre através do decreto emitido pela Penitenciaria Apostólica, são as seguintes:
1) rezar nas intenções do Santo Padre, as quais se dirigem a todos aqueles acometidos pela pandemia do COVID-19, rezando igualmente por seus familiares e pelos que cuidam destes enfermos, ambos impedidos, devido a gravidade da situação, de receber a absolvição sacramental através do Sacramento da Reconciliação, ou impedidos de receber o sacramento da Unção dos Enfermos; e vale lembrar que: a) também os fiéis que, mediante as restrições da O.M.S. e pela sensatez e prudência promanadas dos decretos das autoridades diocesanas, os bispos (para suas respectivas dioceses), ficaram impossibilitados de fazer sua confissão para a Páscoa do senhor encontram-se inseridos na eficácia deste remédio que Deus dispõe à Igreja, sua esposa, para o bem e salvação dos fiéis; b) recorda-se que o fiel, demonstrando “a contrição perfeita, proveniente do amor de Deus amado sobre todas as coisas, manifestada por um sincero pedido de perdão e acompanhada pelo votum confessionis, ou seja, pela firme desejo e resolução de recorrer, o quanto antes, à confissão sacramental (quando tudo voltar à normalidade), obtém o perdão dos pecados, até mesmo mortais”, conforme indicado pelo Catecismo da Igreja Católica (n.1452).
2) rezar a Oração do Senhor (o Pai-nosso), uma Ave-Maria e recitar a Profissão de fé (o Credo); ou,
3) de acordo com as possibilidades e se as circunstâncias permitirem, os fiéis poderão escolher entre: visitar o Santíssimo Sacramento ou a adoração eucarística, ou ler uma passagem das Sagradas Escrituras por pelo menos meia hora, ou rezar o Terço, ou a Via-Sacra, pedindo o fim da Pandemia. Recordando que o fiel que desejar executar este terceiro passo, deverá estar atento, quanto ao seu deslocamento até a Igreja, para que não se quebre o isolamento social pedido pelas autoridades sanitárias e competentes, de modo a não colocar em risco a sua vida e a dos demais irmãos.

A benção apostólica Urbi et orbi, com concessão da Indulgência Plenária será transmitida pelas medias católicas, e pelo Vatican News, as 14h (horário de Brasília). Por isso,  antes de acompanhar este momento celebrativo, recolha-se num lugar apropriado, faça seu exame de consciência e, de coração contrito, arrependido e humilde, apresente ao Senhor teus pecados, comprometendo-se a, mais tarde, procurar confissão sacramental, e implore com confiança a misericórdia e o perdão de Deus, e, então, participe desta oração e Benção com o Papa.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP.

LITURGIA - Artigo de CESARE GIRAUDO SJ - Reforma Liturgica:



 A REFORMA LITURGICA na Igreja Latina antes e depois do Vaticano II - CESARE GIRAUDO SJ.


(Tradução: Pe. João Paulo Góes Sillio, presbítero da Arquidiocese de Botucatu – SP; bacharel em teologia pela FAJE – BH)

Introdução.

Todos sabem que a reforma litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II realizou uma verdadeira renovação no modo de celebrar; mas poucos são, hoje, capazes de compreender a magnitude, ou porque, nascidos depois dos anos sessenta, não conhecem a realidade anterior, ou porque, polarizados no presente, não sabem fazer memória.

Tentaremos, por alguns momentos, relembrar esse passado, cronologicamente não muito distante, no entanto longínquo, se mensurado com a fita métrica da mudança de sensibilidade. Esta simples evocação permitirá, ao contrário, evidenciar os traços salientes da reforma litúrgica e os riscos da superficial compreensão corrente.

 1. Um olhar para a liturgia antes do Concílio.

Imaginemos adentrarmos, durante a celebração da missa, numa igreja (não importa se da cidade ou do campo), num domingo comum, coloquemo-nos na metade dos anos cinquenta, quarenta ou também trinta.  A fisionomia celebratíva destas décadas é sempre a mesma, nem diferindo substancialmente daquele inteiro milênio, do qual pertencem.

Notamos imediatamente que os fiéis se dispunham todos na nave, que uma barreira, munida de portões quase sempre fechados, separa-os do espaço reservado ao sacerdote. Além daquela barreira, denominada balaustra, no espaço que chamam de presbitério, durante a ação, os leigos não podem andar, sobretudo as mulheres. Exceto o clero em miniatura que são os coroinhas.


Os fiéis acabam rigorosamente divididos em grupos, por idade e por sexo. A cada um deles, respeitando uma prática comprovada, é oferecido um espaço específico. No primeiro banco se notam os pequenos: de um lado os meninos, de outro as meninas. Atrás deles estão os maiores: rapazes daqui e moças de lá. Mais atrás tomam lugar as mulheres, numerosas. Contudo, desde o tempo de São Paulo (cf. At 16,13), se sabe que eram as mulheres a dar corpo à assembleia litúrgica, talvez porque fossem instintivamente mais religiosas. Todos permanecem quase sempre ajoelhados; sentando-se somente para escutar a pregação. Também a comunhão é recebida de joelhos, distribuída da balaustra quer seja antes ou depois da missa - só excepcionalmente em solenidades era distribuída durante a missa.

“Mas e os homens, onde estão os homens?” perguntamos. Levantamos mais o olhar e os veremos no fundo da igreja, apoiados à porta ou encostados nas paredes. De fato, os homens estão habituados a perscrutarem o altar de longe. A cadeira do celebrante tampouco a veem, porque nunca se lhes dissera ser importante. E então, mesmo que exista de fato, o padre nunca se senta sobre ela. No entanto, os homens não são numerosos. Nós os vimos entrando, principalmente atrasados. Eles estão lá, no limiar da igreja, um pouco entediados, de pé, prontos para sair, prontos para obedecer ao padre assim que ele diz "Ite, missa est". "Ite" significa "andar/caminhar": este latim eles compreendem bem. Para dizer a verdade, há também outro pequeno grupo de homens na igreja, mas não conseguimos vê-los, porque tomaram seus lugares no coro, isto é, atrás da parede do altar monumental, de onde pouco escutam e nada veem.  

O que fazem os fiéis? Quando tem que cantar, cantam. Se a missa é cantada em gregoriano, todos cantam, com impulso, aquelas vocalizações que estão na memória. Às vezes, na ocorrência das solenidades, são forçados a ficar calados, a fim de que intervenha o coral, quem sabe, da paróquia vizinha, com grandiosas páginas e muitas vozes. Quando não se canta, as pessoas mais simples rezam o rosário. Àqueles mais progredidos nos caminhos do espírito se aconselham relacionar cada momento da missa com tantos outros momentos da paixão do Senhor. Para designar estes gêneros de missa meditada, alguns falam de "missa dramática", outros de "missa alegorística", outros ainda de "missa pintada", uma vez que nos livros de devoção, a explicação é facilitada por desenhos específicos que conectam os momentos individuais da missa a tantos momentos da paixão.

O sacerdote, diante do altar, dando as costas aos fiéis, "diz" a missa, em latim, no mais com um tom de voz submisso, que não atinge nem mesmo os ouvidos do coroinha da vez, ajoelhado a pouca distância. Os gestos do celebrante são calculados, medidos. Quando diz "Dominus vobiscum", abre os braços e rapidamente os fecha; quando abençoa, as vezes parece que corta o espaço, com a mão num angulo cortante.

A missa é regida com uma normativa precisa, que cada sacerdote conhece com perfeição.  Todos celebram do mesmo modo. Não existe espaço para invencionices, para a fantasia ou improviso. Os padres nem sonham em poder fazer uma mudança, mesmo que mínima, no que é estabelecido. Todos foram treinados nos mesmos manuais de rubrica, ou seja, aqueles que continham o regulamento da celebração. Ninguém estudou liturgia, porque liturgia não é [naquela época, anterior ao Vaticano II] uma ciência.

Aos futuros sacerdotes se repete que a liturgia é uma arte prática, a se aprender bem por qualquer um que a saiba, para depois fazer, exatamente, como ele faz. De fato, os clérigos do último ano (formativo), nos quinze dias que precedem a ordenação sacerdotal, seguem a um pequeno aprendizado, que alguns chamam de curso de liturgia, no qual aprendem a "dizer" a missa. O sacerdote que estamos observando está totalmente habituado a fazer o que fazem eles: lê as leituras, obviamente em latim; prega em latim; canta com voz firme, porque conhece bem a melodia; então, traça tantos sinais da cruz.

Não é necessário divulgar mais detalhes. Aqueles que evocamos bastam para se fazer uma ideia bastante precisa de como os sacerdotes "diziam" a missa e de como os fiéis "escutavam-na". Trata-se de expressões assaz comuns, ainda atestadas na linguagem falada. Enquanto ao sacerdote era confiado, conforme o caso, às locuções "dizer a missa" ou "cantar a missa", a dos fiéis era descrita por uma colorida rosa de expressões, tais como "escutar a missa", "ouvir a missa", "estar na missa", “assistir a missa", "tomar missa", "tomar um pedaço da missa". No entanto, é necessário reconhecer que o sacerdote dizia a missa com grande devoção e os cristãos escutavam-na com sincera piedade. A fé dos nossos antepassados é nutrida assim desde mil anos. Embora ao recordar essa prática deles possa nos fazer esboçar um sorriso, isso não diminui a admiração e a veneração que devemos ter por aqueles que nos transmitiram a fé.

Feito estes esclarecimentos necessários, podemos destacar as sérias limitações desse modo de celebrar. O primeiro consistia no hiper-protagonismo do celebrante e na consequente passividade imposta aos fiéis. Dada a ordem ritual e a recepção indiscutível que a credenciava, a lacuna entre os papéis não era de forma alguma preenchida. A separação do presbitério da nave confirmou-a como evidência física. O segundo limite era representado pelo uso exclusivo da língua latina, bem conhecida pelos padres e, em graus variados, até mesmo pelas pessoas instruídas, mas implacavelmente repleta de mistério para a maioria das pessoas. O terceiro limite estava ligado à aplicação escrupulosa e quase mecânica das rubricas; parecia a batuta tranquilizadora sobre a qual repousava a falta de formação litúrgica do clero. Essa adesão incondicional à legislação vinculativa e meticulosa fez da práxis celebrativa uma liturgia de ferro.

As coisas não podiam continuar assim. Aqueles liturgistas e pastores esclarecidos que deram origem ao movimento litúrgico do século XX estavam convencidos disso. Ao encontrar, no caminho, pedras reais, representadas por uma adesão acrítica à prática, por um apego visceral ao que sempre havia sido feito, pelo medo do novo, graças a um paciente compromisso de pesquisa e reflexão, eles foram capazes de preparar o terreno para a praxis, na qual cresceu e floresceu a reforma litúrgica, de que hoje desfrutamos. Limitamo-nos a citar alguns grandes nomes: na França, Prosper Guéranger († 1875); na Bélgica, Lambert Beauduin († 1960); na Alemanha, Odo Casel († 1948) e Romano Guardini († 1968); na Áustria, Pius Parsch († 1954) e Josef Andreas Jungmann († 1975); na Itália, Ildefonso Schuster († 1954), agora beato, Emanuele Caronti († 1966), Mario Righetti († 1975), Giacomo Lercaro († 1976), e muitos outros.

Insatisfeitos com as tradições (com “t” minúsculo) às quais se apegaram, descobriram que elas correspondiam apenas à práxis enraizada no segundo milênio, mas divergiam consideravelmente da Tradição (com "T" maiúsculo) que, moldada no ensinamento dos padres da igreja, havia governado as celebrações no primeiro milênio.

Naquela época, as coisas não eram assim. Então os fiéis participaram ativamente da missa. Então - por assim dizer - eles "celebraram" a missa com seu sacerdote: ele na força do sacerdócio ordenado, eles na força do sacerdócio batismal comum. Por exemplo, São João Crisóstomo dizia: "O padre não celebra a Eucaristia sozinho (oudé eucharistéi monôs), mas todo o povo celebra com ele. Por isso, não se lança tudo sobre o sacerdote” (João Crisóstomo, Homilia XVIII da 2 Cor, em Patrologia Grega 61, 527).

Os fiéis compreendiam tudo: o que se lia nas leituras, o que o padre dizia nas orações; especialmente na oração eucarística: era a oração de todos e a oração por todos. Na época de Agostinho, o Amém das pessoas que se seguia à doxologia final foi reconhecido como valor de uma assinatura que, por si só, confirma e sela o documento escrito anteriormente (Cf. AGOSTINO, Sermo “Hoc quod videtis”, in Patro.Latina 46, 835-836). Na época de Jerônimo, o Amém ribombou nas igrejas de Roma como trovão do céu. Os fiéis aprovavam com entusiasmo, porque captavam bem o que o presidente da assembleia havia dito a Deus Pai, em nome deles (Cf. Jerônimo, In epistolam ad Galatas 2,3, in Patro.Latina 26, 355).

Foram precisamente os estudos desses grandes liturgistas, que gradualmente sensibilizaram a Igreja, a ponto de trazê-la, primeiro, de modo degustativo, para a reforma da vigília pascal em 1951 e de toda a Semana Santa em 1955, depois para a grande reforma litúrgica da Igreja, no Concílio Vaticano II.

2. A constituição Sacrossanctum Concilium e a reforma litúrgica.

Não é possível resumir em poucas linhas, aquilo que representa a constituição Sacrossanctum Concilium para a igreja, hoje. Ela, sem dúvida, descortinou horizontes velados. Ele lembrou-nos, por exemplo, que "a liturgia é o ponto culminante para o qual a ação da Igreja tende e, ao mesmo tempo, a fonte da qual emana toda a sua força" (SC 10). Ele enfatizou, em várias ocasiões, a necessidade de todos os fiéis serem formados "para a participação plena, consciente e ativa nas celebrações litúrgicas, exigida pela própria natureza da liturgia" (SC 14; cf 11.19.21.27.30.41.48.49.50.79.113.114.121).

Para iniciar esse processo de renovação, a constituição reconheceu o estatuto de disciplina acadêmica para a Liturgia, estabelecendo que "nos seminários e nas casas religiosas, para os estudantes, a liturgia sagrada deve ser contada entre as matérias mais importantes e necessárias e, nas faculdades teológicas, entre as principais disciplinas" (SC 16). Preocupava-se sobretudo com a formação especial dos "que se destinam ao ensino da sagrada liturgia" (CS 15), que por sua vez deverão transmitir ao clero "uma formação espiritual de caráter litúrgico" (SC 17) e terão de ajudar os sacerdotes que já trabalham na vinha do Senhor "a penetrar cada vez mais no sentido do que fazem nas ações sagradas" (SC 18).  

A constituição então declarou claramente que "a santa Mãe Igreja deseja fazer uma reforma geral precisa da liturgia", reconsiderando "a ordem dos textos e dos ritos, de maneira que as realidades sagradas, por eles significados,  sejam expressadas mais claramente, e o povo cristão, na medida do possível, possa compreende-los mais facilmente e participar deles com uma celebração plena, ativa e comunitária" (SC 21).

Inculcou-nos que "a celebração comunitária, caracterizada pela presença e participação ativa dos fiéis", deve ser preferida "à celebração individual e quase privada, sobretudo a missa" (SC 27). Ela propôs o ministério não mais como sendo o protagonismo exasperado de um só, mas como uma estrutura articulada de funções, lembrando ao ministro que ele terá que se limitar "a realizar tudo e apenas o que, de acordo com a natureza do rito e das normas litúrgicas, estiver dentro de sua competência" (SC 28). Ela descartou que, na celebração, se dê preferência aos indivíduos e suas condições sociais [em detrimento a outros] (cf. SC 32).

Desejou-se expressamente nas celebrações sagradas, "uma leitura mais abundante, mais variada e mais bem escolhida das Escrituras Sagradas" (SC 35). Ela recomendou fortemente a homilia, como parte integrante da ação litúrgica, com o objetivo específico de apresentar "os mistérios da fé e as normas da vida cristã, retirando-os do texto sagrado" (SC 52). Restaurou "a oração comum, também chamada dos fiéis" (SC 53), "uma pérola - como Annibale Bugnini dirá mais adiante - que estava perdida e que agora havia sido encontrada em todo o seu esplendor (A. BUGNINI, La riforma liturgica (1948-1975), Ed. Liturgiche, Roma 1972, 400 / traduzido pelas editoras Paulus, Paulinas e Loyola, 2018).

Por sua vez, o desejo de abrir os tesouros da Bíblia se traduziu na preocupação de tornar sua proclamação compreensível, com base em uma descoberta que é tão simples quanto corajosa. É o que diz n. 36: "O uso da língua latina, com exceção de direitos especiais, é
preservada nos ritos latinos. No entanto, dado que, tanto na missa como na administração dos sacramentos, e em outras partes da liturgia, o uso da língua vernácula pode, frequentemente, ser de grande utilidade para o povo, concedendo-lhe uma parte mais ampla, especialmente nas leituras e monições, em algumas orações e cânticos”. A questão da linguagem litúrgica volta no n. 54, que declara: “Nas missas celebradas com a participação do povo, uma justa parte pode ser concedida ao vernáculo, especialmente nas leituras e na oração dos fiéis... No entanto, é preciso ter cuidado para que os fiéis possam recitar e cantar juntos, também em língua Latina, as partes do ordinário da Missa que lhes pertencem”.

Além disso, a constituição recomendava "a mais perfeita participação na missa, na qual os fiéis ... recebam o corpo do senhor com o pão consagrado no mesmo sacrifício" e estabelecem que "sem prejuízo dos princípios dogmáticos estabelecidos pelo Concílio de Trento, a comunhão sob as duas espécies pode ser concedida a clérigos, religiosos e leigos" (SC 55). Mais ainda: nos devolveu a "concelebração, que apropriadamente manifesta a unidade do sacerdócio" (SC 57).

Na impossibilidade de ilustrar cada uma dessas muitas facetas, queremos nos debruçar sobre o que corretamente pode ser considerado a decisão básica da reforma litúrgica: a introdução da língua falada nas celebrações. Foi uma mudança histórica que, se foi recebida com entusiasmo por quem melhor entendeu seu significado e previu seus efeitos, não deixou de despertar apreensões, perturbar hábitos consolidados, despertar nostalgia profunda. Mas em que idioma devemos orar? Alguns já haviam perguntado isso em tempos distantes.

Os historiadores da liturgia nos informam que a questão da língua com a qual se deve voltar para Deus foi despertada pela primeira vez quando os irmãos Cirilo e Metódio foram forçados a se justificar diante dos prelados de Veneza. Isso aconteceu no ano de 867, durante sua viagem a Roma, com o objetivo de levar as relíquias de São Clemente ao Papa e obter dele o uso litúrgico da língua eslava. Assim, lemos no capítulo 16 da Biografia eslava de São Cirilo: “Enquanto ele estava em Veneza, bispos, presbíteros e monges se reuniram contra ele, como corvos contra um falcão, e levantaram a heresia das três línguas, dizendo: Ei, você: conte-nos, porque agora você compôs um alfabeto para os eslavos e os ensina, algo que ninguém antes inventou, nem os apóstolos, nem o papa de Roma, nem Gregório Magno, nem Jerônimo, nem Agostinho? Conhecemos apenas três idiomas nos quais é legítimo louvar a Deus: hebraico, grego e latim” (F. GRIVEC & F. TOMŠIĆ (ed.), Constantinus et Methodius Thessalonicenses. Fontes, Zagreb 1960, 205).

A imagem do falcão – o pássaro forte que não tem medo dos oponentes, o raptor seguro de suas presas – já antecipa que o vencedor será ele, Cirílo, frente a seus oponentes que não passam de corvos coaxantes. Seguindo a narrativa, ele responde, comparando a linguagem com a chuva que Deus faz cair igualmente sobre todos, o sol que brilha sobre todos igualmente (cf. Mt 5,45) e o ar que todos respiram. Desse modo, ele afirma que o uso litúrgico de sua própria língua é um direito para todos os povos que se defrontam com o Evangelho.

Podemos imaginar que alguns dos acusadores tenham sussurrado: "Não importa se entendemos o que é dito na liturgia: “basta ut intellegat Deus (basta que para Deus seja compreensível / basta que Deus entenda)". Aqueles que pensavam assim absolutizavam uma tradição, ou melhor, uma prática, como se essa fosse a única. Em termos concretos: absolutizaram o usus receptus (o costume recebido) de uma ou duas línguas, como se isso fosse verdadeiramente exclusivo. Os prelados de Veneza pensavam antes de tudo no latim, depois no grego. É duvidoso que eles também pensassem no siríaco, uma língua semítica semelhante ao hebraico.

Em suma: eles não tinham o senso de Tradição, aquele que desde o dia de Pentecostes havia inaugurado a pregação do Palavra de Deus – e, certamente também a liturgia – nas línguas dos povos. “A atitude dos dois irmãos de Tessalônica é representativa, na antiguidade cristã, de um estilo típico de muitas igrejas: a revelação é anunciada adequadamente e se torna totalmente compreensível quando Cristo fala a língua dos vários povos, e eles podem ler as Escrituras e cantar a liturgia na sua língua e com as expressões próprias, quase renovando as maravilhas de Pentecostes (JOÃO PAULO II, Orientale Lumen, n.7)”.

Em vez disso, para os santos irmãos Cirílo e Metódio, a questão da língua litúrgica não era de modo algum marginal: ela constituía um elemento indispensável da Tradição. No capítulo 18 da biografia eslava, lemos que Cirílo, moribundo ainda invocava: “...faça arruinar a heresia das três línguas!” (GRIVEC & TOMŠIĆ, Constantinus et Methodius, cit., 211).

Sete séculos depois, a questão da linguagem litúrgica voltou ao centro das atenções a partir dos reformadores, que exigiam que a Missa fosse necessariamente celebrada no vernáculo, para que todos pudessem entender. À pergunta “Missa nonnisi in lingua vulgari, quam omnes inteligant, celebrari debeat (A Eucaristia deve ser celebrada na língua comum que toda a assembleia compreenda?)”, o teólogo espanhol Francisco De Sanctis, perito no Concílio de Trento, em nome do bispo de Salamanca, respondeu: “... a missa não deve ser celebrada na língua vulgar, mas ou em latim, grego e hebraico, que são as três línguas escritas no letreiro da cruz, destinadas a difundir o Evangelho de Deus. De fato, na conversão da Gália e da Alemanha, há mil anos, a missa era sempre celebrada em latim, para “não jogar pérolas aos porcos” (cf. Mt 7,6), para não a revelar ao vulgar
a fim de não expô-la ao ridículo ... O Sumo Pontífice pode, no entanto, decidir o contrário, se considerar apropriado” (SOCIETAS GOERRESIANA, Concilium Tridentinum: Diariorum, Actorum, Epistularum, Tractatuum nova collectio, tomus 8, Actorum pars 5, Friburgi. 1919, 743-744).

Mesmo se não quisermos insistir nas razões que, segundo o teólogo De Sanctis, teriam induzido as Igrejas da Gália e da Alemanha a adotarem o uso exclusivo do latim para a missa, não podemos deixar de notar que, naquela época, a aristocracia do intelecto desprezava as massas, consideradas completamente incapazes de entender e, portanto, irremediavelmente condenadas à ignorância. Na boca do teólogo tridentino, a mesma citação do Evangelho, extrapolada do contexto original, certamente não soa apreciável para as necessidades e capacidades do “vulgar/comum”.

Comparada com a condenação dos prelados de Veneza, essa declaração representou um passo adiante. De fato, ao apelar para o argumento das três línguas, De Sanctis acrescentou que o papa poderia decidir de outra forma se considerasse apropriado. Por outro lado, é bom para o Papa de Roma – Adriano II - que Cirilo e Metódio tenham apelado, uma vez que com seus argumentos eles não poderiam violar seus oponentes irredutíveis.

A história atesta que Trento foi incapaz de aceitar a reivindicação dos reformadores e que o latim permaneceu a única língua litúrgica da Igreja Ocidental. Demorou quatro séculos, levou outro Concílio, porque o plano de falar com Deus na própria língua – um projeto finalmente despido de oposição controversa, e purificado de qualquer espírito de reivindicações ameaçadoras em vista da unidade da fé – foi concretizado. Foi exatamente isso que o Vaticano II fez com a constituição Sacrosanctum Concilium e com os documentos de trabalhos que a levaram à execução.

Hoje, estamos mais do que convencidos da necessidade que instou a Igreja de nosso tempo a retomar ao diálogo entre a assembleia e Deus, às profundas ressonâncias da linguagem de cada povo. Consequentemente, temos a impressão de que, a partir do histórico 7 de março de 1965 – data que inaugurou o uso do vernáculo na liturgia - aconteceu como que por mágica em todas as partes da celebração litúrgica. Tentando voltar às emoções intensas daqueles anos com nossa memória, parece impossível imaginar um curso diferente de eventos. Mas a memória irrefutável dos documentos nos convence de que, precisamente nesta área vital e delicada da vida da Igreja, o princípio da gradualidade foi escrupulosamente observado e dosado com destreza, como resulta dos três grandes documentos que marcaram o caminho da reforma litúrgica: a instrução Inter Oecumenici, de 29 de setembro de 1964, a Tres abhinc annos, de 4 de maio de 1967, e, por fim, a Eucharisticum Mysterium, de 25 de maio de 1967.


3. Quase cinquenta anos após o "Sacrosanctum Concilium": a situação da questão.

A reforma litúrgica é sem dúvida o primeiro e grande dom do Vaticano II, um dom do Espírito, não apenas para a Igreja romana, mas para as igrejas orientais e ocidentais, “(...) todas as igrejas cristãs são fundadas na única mensagem de Cristo e compartilham necessariamente uma herança comum. Portanto, não poucos princípios da Constituição Conciliar sobre a liturgia sagrada fornecem elementos universalmente válidos para as liturgias de todas as Igrejas, como também devem ser aplicados nas celebrações de Igrejas que não seguem o rito romano” (CONGREGAÇÃO PARA IGREJAS ORIENTAIS, instrução para a aplicação das prescrições litúrgicas do Código de Direito Canônico das Igrejas Orientais, n.4). Foi uma escolha providencial, cujo valor transparece das dicas rápidas que acabamos de fazer para alguns parágrafos da Sacrosanctum Concilium. Mas algo não funcionou, como denunciou – alguns anos atrás – pela voz autorizada de João Paulo II, que na encíclica Ecclesia de eucharistia, ao lado das “luzes” e das “grandes vantagens” trazidas pela reforma litúrgica, destacou a existência de “sombras” e até “abuso” (João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, 10).

Diante dessas falhas que nublaram e infelizmente continuam a nublar a liturgia, alguns escandalizados entram em crise e dizem: "Não há mais fé!". Outros acusam a reforma litúrgica e contrastam controversamente o Missal de Paulo VI com o Missal de Pio V. Outros pedem o retorno ao uso do latim como remédio seguro para as doenças da estação pós-conciliar. Outros gostariam de virar o altar contra a parede. Outros ainda veriam com prazer as balaustradas, mesmo em igrejas recém-construídas. Sonhos de nostalgia incurável, mas também espiões de um mal-estar litúrgico-pastoral, que não devem ser subestimados, mas sim interpretados.

Primeiro, mencionamos as vantagens que a reforma litúrgica trazia. Vamos agora nos debruçar sobre os inconvenientes que ocorreram, para nos estimular a refletir e alarmar a todos numa justa medida. Frequentemente, aqueles que sabem cantar de alguma maneira, cantam, talvez improvisando. Quem sabe tocar de alguma forma, toca, esquecendo que a música também tem suas necessidades de preparação. Novos instrumentos intervêm nas celebrações; uma verdadeira invasão. Enquanto isso, nossos preciosos órgãos dormem sob a poeira, de modo que quem quiser ver órgãos bem conservados e em uso, deve planejar uma viagem, por exemplo, aos países germânicos. As músicas em latim estão ostracizadas.

Frequentemente, em nossas igrejas, quem quer ler, lê como pode e, em seguida aos erros, a pontuação não é respeitada, a dicção é confusa. Ou se você perguntar ao aspirante a leitor "Você está acostumado a ler na igreja?", ele se ressente e imediatamente mostra seus títulos de estudo, como se o ministério do leitor não exigisse treinamento específico.

Costumeiramente, aqueles que têm que fazer a homilia, fazem-na à força e raramente fazem qualquer referência às leituras que acabamos de proclamar. Da mesma forma, aqueles que propõem as intenções das orações dos fiéis costumam estender a lista às experiências dos indivíduos ou das comunidades, evocando as situações mais díspares, independentemente da mensagem das leituras. Às vezes, por força da improvisação, chegamos a rezar a Deus Pai para obter o favor deste ou daquele santo.

Com frequência, aqueles que têm que proclamar a oração eucarística porque são presbíteros, tomam aleatoriamente, ou melhor, tomam o que todos escolhem, atraídos ainda mais por sua brevidade, do que por sua beleza. Não estamos falando daqueles padres que, às vezes e em alguns lugares, reivindicam o direito de usar orações eucarísticas loucas ou de compor, ali, o texto ou partes dele.

Frequentemente, aqueles que gostam de bater palmas, porque veem fazendo isso em comícios ou concertos, começam e soltam aplausos também na igreja e convidam outras pessoas a fazer o mesmo, com o consequente risco sério de não conseguir mais distinguir entre igreja e praça.

Em suma, passamos de uma estrutura rígida para uma estrutura livre. Mais precisamente: passamos de uma estrutura excessivamente rígida para uma estrutura excessivamente livre. Se antes havia fixidez, esclerose de formas, antinaturalidade, que tomavam a liturgia da época, na liturgia de hoje existe naturalidade e espontaneidade, sem dúvida sinceros, mas muitas vezes incompreendidos; mal-entendidos, que fazem – ou pelo menos arriscam – uma liturgia de borracha, escorregadia, que às vezes se expressa em uma libertação ostensiva de quaisquer regulamentos de rubrica.

Nesse caso, a falha não está na reforma, mas em sua aplicação, ou seja, em nossa incapacidade de entendê-la e valorizá-la. Evidentemente, a reforma foi feita no nível dos “textos” litúrgicos, mas ainda não penetrou suficientemente em nossas “cabeças”. Essa espontaneidade incompreendida, que é efetivamente identificada com improvisação, facilidade, folga, permissividade, é o novo Baal, o grande ídolo, diante do qual incontáveis agentes de pastorais, padres e leigos se curvam. É o culto prestado a esse novo ídolo que hoje desencadeia a reação – certamente injustificada, mas em parte compreensível – dos adversários da reforma litúrgica, que às vezes chegam a rejeitar a mesma expressão "reforma litúrgica" ou a invocar hoje “uma reforma da reforma”.

Imaginemos como os Padres da Igreja reagiriam – começando pelos apóstolos –, tão permeados pelo espírito da liturgia, se entrassem em uma de nossas igrejas enquanto celebramos, ou hoje, quase cinquenta anos depois do que a constituição conciliar queria e iniciou em relação à reforma litúrgica. O que eles diriam?

Vamos começar com São Paulo. Se ele entrar na igreja enquanto o leitor estiver lendo – e na verdade ninguém se importa, já que todo mundo está de olho no recado de domingo – podemos ter certeza de que ele iria imediatamente ao leitor e assumiria seu papel ministerial. Com a franqueza que conhecemos, ele censuraria os fiéis mais ou menos com estas palavras: "Por que você não escuta o leitor? Eu não disse em Rm 10,17 que “a fé vem da escuta” (fides ex auditu)? Uma vez que ele é o sinal sacramental da escuta litúrgica, junto com o livro em que ele lê e a palavra que anuncia?

Se Jerônimo, tão impregnado pelo sentido das Escrituras, vê um leitor completamente despreparado ou infantilizado no ambão, podemos ter certeza de que ele o interromperia, assim como Filipe fez com o eunuco da rainha, para perguntar: “Mas você entende o que você está lendo?” (At 8.30). Ao que o pobre leitor não pôde deixar de responder: “E como posso entender se o sacerdote – se meu pároco – não me disse que havia algo para entender?”.

Se Ambrósio ou Agostino entrassem em uma igreja enquanto a homilia estivesse sendo feita, eles notavelmente ficariam sobrecarregados por um desejo irreprimível de dizer ao homileta: “Por que essa linguagem etérea e devocional”, ou, por outro lado, “o que você sabe sobre análise sociológica? Por que você não explica as escrituras?

Além disso, Ambrósio, Agostino, Jerônimo, João Crisóstomo e, sem distinção, todos os outros Padres, observando a frequência excessiva das missas celebradas e multicelebradas, não poderiam deixar de dizer aos sacerdotes e aos fiéis de hoje: “Muitas missas, missas enfileiradas, uma depois da outra, como a Ave-Maria do rosário”. Em resumo: não deixariam de dar razão àquele bispo liturgista que, com uma expressão que ficou famosa, disse: “Menos missas, mais missa!”.

Além disso, podemos ter certeza de que, antes do movimento perturbado de fotógrafos, cinegrafistas, floristas e cenógrafos durante a liturgia, os Padres da Igreja, movidos pelo zelo pela casa de Deus, segurariam um feixe de cordas – assim como Jesus fez no templo –, e gritaria  para eles: “Este mercado, pelo amor de Deus, não o façam aqui!”.

Hoje, o perigo para a liturgia vem de dois lados opostos, igualmente insidioso: por um lado, facilidade, permissividade, “um sentido incompreendido de criatividade e adaptação”, que gera os abusos a que João Paulo II aludiu na encíclica Ecclesia de Eucaristia (n.52), e sobre os quais Bento XVI pronunciou com determinação, por outro lado, um retorno nostálgico, que às vezes ecoa o formalismo, às tradições com um "t" minúsculo. A tensão que abalou a reforma litúrgica nos últimos anos está precisamente entre uma liturgia de borracha, que alguns gostariam, e uma liturgia de ferro, que outros gostariam. Um errado, o outro errado: pois tudo em excesso.

No plano somático, somos o que somos, porque temos uma espinha dorsal, ou seja, uma estrutura que nos apoia e nos torna ativos. Nossa espinha dorsal não é de ferro nem de borracha. É de carne, é humana; possui uma consistência rígida quando necessária, mas, ao mesmo tempo, sabe como se adaptar admiravelmente às nossas necessidades de vida e de ação. Esse deve ser o caso da liturgia: sua espinha dorsal deve ser feita de carne, deve ser humana; deve saber compor harmoniosamente a fidelidade à Tradição e a adaptação às situações atuais de uma Igreja em constante evolução.

Não há como negar que os abusos estão lá. Eles não derivam da reforma litúrgica, mas da fraca recepção que muitos tiveram, e de sua consequente impermeabilidade prática, embora inconsciente, ao espírito da liturgia. Esses abusos não são corrigidos com repreensões. Eles se corrigem com a formação, a qual os Padres conciliares nunca se cansaram de recomendar: aprimoramento dos professores de liturgia, formação litúrgica dos jovens nos seminários e nas faculdades, formação contínua para todos, padres e leigos, o que ajuda a penetrar mais profundamente no espírito da Igreja em oração.


(CESARE GIRAUDO, pertence à Companhia de Jesus, foi ordenado presbítero em 1971. É mestre e doutor em Teologia sistemática, sendo este pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma com a defesa de sua tese sob o titulo “La struttura letteraria della preghiera eucarística. Saggio sulla genesi letteraria di uma forma”. Leciona no P.I.O (Pontifício Instituto Oriental, em Roma), na Faculdade de Teologia da Itália Meridional (Nápoles) e é membro ordinário da Pontifícia Academia de Teologia. Tem obras publicadas no Brasil, pela Loyola: “Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a Eucaristia”; “Admiração Eucarística”; “Redescobrindo a Eucaristia”; “Confessar os pecados e confessar o Senhor”. Autor de diversos artigos na área da teologia sistemática, no campo da sacramentária e da Teologia da liturgia)

segunda-feira, 23 de março de 2020

ARTIGO DE ALBERTO MAGGI - DEUS E A EPIDEMIA.



DEUS E A EPIDEMIA – Pe. Alberto Maggi

(tradução: Pe. João Paulo Sillio, Arquidiocese de Botucatu – SP).

“Alguns santos são imbatíveis em sua proteção, por exemplo é difícil até desonrar a primazia absoluta de São Roque, protetor de epidemias, ao lado da santa dos casos impossíveis, santa Rita  de Cassia. E a lista é longa, e não existe doença que não tenha o seu santo protetor, recorda o biblista Alberto Maggi, “confiar-se à intercessão destes santos foi, para os crentes, no século passado, o único remédio (ou quase) para serem protegidos contra as doenças, infecções, epidemias. Chegando à situação muito difícil dessas semanas, "não há necessidade de pedir a Deus que não envie ou contenha seus flagelos, porque não é ele o autor de tudo isso, mas se deve colaborar ativamente com o Criador, para a realização do Seu projeto de humanidade sabiamente descrito no Livro do Gênesis. Eles estavam quase esquecidos. Os santos, que já haviam desempenhado um papel tão importante que obscureciam até o poder daquele Deus a quem "nada é impossível" (Lc 1, 3), ainda permaneciam calados e imóveis em seus nichos, confinados ao passado. O Deus Eterno era considerado muito distante, os santos estavam mais próximos. Havia medo de Deus e confiança nos santos”, nos relata o biblista Alberto Maggi neste artigo publicado em seu site “Il Libraio”.



Deus e a Peste:

Do Senhor se esperava os castigos, dos santos, a proteção. Foram estas as efigies e estatuas dos santos protetores, cada um com sua especialidade, e cada um com seu próprio pilar (ou torre), geralmente em competição entre um país e outro. Alguns santos são considerados imbatíveis em sua proteção, por exemplo, é difícil até desonrar a primazia absoluta de São Roque, protetor de epidemias, ao lado da santa dos casos impossíveis, santa Rita de Cassia.



Entre estes, de modo abusivo, foi inserido também o mártir São Sebastião. Nada tinha a ver com a praga, mas os ferimentos causados pelas flechas disparadas em seu corpo, eram vistos como inchaços causados pela peste bubônica. A lista é longa, não existia doença que não tivesse o seu santo protetor. Confiar-se à intercessão destes santos foi, para os crentes do século passado, o único remédio para ser protegido das doenças, infecções, epidemias. Então, com as descobertas científicas, fizeram grandes progressos (pense na invenção do microscópio no século XVII), melhores condições de higiene, lares mais saudáveis, criação de hospitais, descoberta de vacinas, de modo que gradualmente esses santos, enquanto permaneciam em afeto e devoção popular, voltaram a descansar em seus nichos, guardiões silenciosos de um passado onde religiosidade, superstições, crenças pagãs se misturavam. Um tempo distante, onde faziam mais uso de sua intercessão, juntamente com as várias “madonas”, ao invés de se dirigir, como Jesus havia ensinado, diretamente ao Pai ("Portanto, rezai assim: Pai nosso ...", Mt 6.9), um Deus que "sabe do que se precisa antes mesmo de perguntar" (Mt 6,7).

Enquanto que, para se suplicar à Deus era necessário situar-se num lugar sagrado, sinagoga ou templo, para suplicar ao Pai não é necessário, pode-se permanecer no próprio lugar, “quando orardes, entra no teu quarto” (Mt 6,6). O destino destes santos foi idêntico àquele de uma das celebrações mais importante do passado, num mundo predominantemente agrícola, onde em abril se realizavam as procissões das rogações, pedindo a Deus que chovesse nos campos. Dizem, de maneira um pouco irreverente, que eram as irrigações que colocavam fim às procissões. De fato, com o aperfeiçoamento do serviço meteorológico, não havia necessidade de rezar para pedir chuva, bastava observar o clima; se houvesse uma grande área de alta pressão, poder-se-ia orar com toda a fé possível, que nem uma única gota de água caía. Era um mundo em que tudo o que acontecia, se acreditava vir de Deus, tanto de bom quanto ruim. Afinal, a Bíblia ensinava: "Bem e mal, vida e morte, tudo vem do Senhor" (Sir 11,14), e era comum crer que "não há um infortúnio na cidade que não seja causado pelo Senhor?" (Am 3,6)

Por esse motivo, não havia dúvida de que a praga era um castigo, uma maldição enviada por Deus contra pessoas pecadoras. Em Deuteronômio 28 encontram-se cerca de cinquenta maldições lançadas contra os transgressores do querer de Deus, e entre estas lemos que "o Senhor fará com que a peste te contagie, até exterminar-te da terra em que entrares para possui-la" (Dt 28,21). A praga era usada como uma ameaça sempre pendente sobre o povo, se ele não obedecesse ("Eu enviarei a praga entre vocês", Lv 26,25), e quando acontecia, era doloroso: "o Senhor enviou a praga a Israel, a partir daí até a hora marcada, de Dan a Bersabeia, setenta mil pessoas morreram entre o povo ”. Então, felizmente, "o Senhor se arrependeu desse mal e disse ao anjo devastador do povo: Basta! Retire sua mão! " (2 Sm 24,15-16). Se Deus era o autor da praga, o único remédio seria mostrar arrependimento pelos pecados, jejuar, polvilhar a cabeça com cinzas e vestir um pano de saco (Lc 10:13), oferecer-lhe sacrifícios na esperança de que fossem agradáveis a Ele.

Jesus, “imagem do Deus invisível” (Col 1,15), apresentou uma face completamente diferente do Senhor. É um Pai que é amor, e, oferece, continuamente o seu amor aos homens, independentemente de seu comportamento.  No Pai, não existe castigo, mas unicamente perdão. O seu amor é totalmente gratuito, a ponto de ser “bondoso com o ingrato e o malvado” (Lc 6,35). A comunidade cristã parecia ter entendido isso, e compreendido que, em caso de calamidade, não há necessidade de tirar o pó das estátuas para levar em procissão (com progresso agora, esses santos estão até carregados em aviões que sobrevoam o território promovendo como que uma desinfestação espiritual). Não, não há necessidade de implorar a Deus para não enviar ou conter seus flagelos, porque ele não é o autor, mas é necessário colaborar ativamente com o Criador, para a realização de seu projeto sobre a humanidade, sabiamente descrito no Livro do Gênesis ( Gn 1 – 2), onde o autor não descreve um paraíso irremediavelmente perdido, alguém para se arrepender, mas profetiza um paraíso a ser construído, percebendo a plena harmonia das criaturas com a criação e seu Criador.

Esse apelo sempre foi premente e urgente, como Paulo escreve na Carta aos Romanos, porque "a ardente expectativa da criação se estende de fato à revelação dos filhos de Deus", uma criação que "geme e sofre as dores do parto até hoje” (Rm 8,19,22). Não há necessidade de pedir a Deus que contenha a epidemia, mas precisamos arregaçar as mangas e liberar novas energias de amor e generosidade, sem precedentes, capazes de conter o mal, na certeza de sermos "mais que vencedores" (Rm 8. 37), porque "a luz brilha nas trevas e as trevas não a venceram" (Jo 1,5), e nunca vencerão.

Sobre o autor: Alberto Maggi, presbítero italiano, Frade da Ordem dos Servos de Maria, estudou nas Faculdades Teológicas Marianum e Gregoriana de Roma e na École Biblique et Archéologique Française em Jerusalém. Fundador do Centro de Estudos Bíblicos G. Vannucci, em Montefano (Macerata), cuida da divulgação das Sagradas Escrituras. Maggi publicou vários livros, incluindo: Chi non non muore si rivede - Minha jornada de fé e alegria entre dor e vida, Coisas para padres; Nossa Senhora dos Hereges; Como ler o Evangelho (e não perder a fé); A loucura de Deus; A última bem-aventurança - Morte como plenitude de vida; Estes dias.

Disponível in:

sábado, 21 de março de 2020

HOMILIA PARA O IV DOMINGO DA QUARESMA – Jo 9,1-41 (ou Jo 9,1.6-9.13-17.34-38, relato breve):




A liturgia quaresmal nos propõe, mais uma vez, a leitura de uma narrativa Quarto Evangelho, retirado do capítulo nono. É um capitulo denso, repleto de significado para a catequese do evangelista João, destinado à sua comunidade, bem como ao leitor-discípulo de seu evangelho pertencente às gerações subsequentes. Temos diante dos olhos uma perícope longa e, para sua compreensão podemos tomar a perspectivas do contexto do texto e das personagens, meditando alguns versículos centrais ao texto para tirarmos a pragmática, ou seja, a mensagem útil à comunidade e aos leitores-discípulos de Jesus no Quarto Evangelho.

O capítulo nono encontra-se na primeira parte do Evangelho segundo João, no assim chamado livro dos sinais. O Quarto Evangelho estrutura-se sobre dois blocos, o dos sinais, Jo 1,18 – 12,51, que tratam de introduzir o discípulo de Jesus no conhecimento acerca de sua identidade, vida, missão e obra. Eles servem para que o discípulo faça a sua opção por Jesus. Uma vez que o Evangelho de João é também chamado de evangelho da decisão. Somente quando o discípulo adere ao projeto de Jesus, conhecendo-o, sabendo por onde passa sua vida e sua missão, é que ele pode dar o passo para a contemplação da hora da Glória, preparada também pelos sinais. O segundo pilar sobre o qual o evangelho joanino está edificado é, portanto, o livro da Glória, Jo 13 – 20, que trata de preparar o leitor-discípulo de Jesus para a contemplação de sua glória, de seu enaltecimento, através da Hora da Cruz.

Em Jo 9 temos a narrativa de mais um sinal realizado por Jesus. É o sexto dos sete sinais que Ele realiza no Quarto Evangelho. O primeiro, foi a mudança da água em vinho – Jo 2,1-12; depois, a cura do funcionário real – Jo 4,46-54; o terceiro, a cura do enfermo (paralítico) de Betesda – Jo 5,1-18; a multiplicação dos pães – Jo 6,1-15, constitui o quarto sinal, juntamente com a caminhada sobre o mar – Jo 6,16-21, que ilustra o quinto sinal; seguindo a ordem, o sexto sinal, a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41; e, o sétimo, a ressurreição de Lázaro (reanimação) – Jo 11,1-44. Mas há quem prefira ver o sinal do pão e da caminhada sobre a água como um só, e nesta perspectiva, a multiplicação dos pães seria o quarto sinal, o que faria com que o episódio narrado hoje fosse o quinto, deixando como o sexto sinal, a ressurreição do irmão de Marta e Maria, para fazer coincidir o sétimo sinal com a ressurreição de Jesus, mas há muita discussão sobre isso.

Uma última consideração, antes de entrarmos no texto bíblico se faz necessária. Esta, na verdade, é uma fusão de horizontes. O capítulo nono do evangelho de João trata de unir dois tempos: o tempo narrado, ou seja, o sinal realizado por Jesus, curando o cego; e o tempo da comunidade Joanina, a qual está passando por um momento de crise histórica e de fé. Através deste relato, também se visualiza a situação da comunidade cristã frente ao judaísmo da época. O ex-cego torna-se símbolo tanto para o discípulo como para a comunidade joanina, que por professar a fé no messias Jesus, sofre a perseguição e expulsão dos meios judaicos, principalmente da sinagoga. A discussão entre o ex-cego e as autoridades judaicas, e a exclusão daquele por estes ilustram o que aconteceu em 90 d.C com a assembleia de Jãmnia, realizada pelos reformadores do judaísmo.

A partir desta fusão de horizontes somos chamados a conhecer as três personagens importantes da narrativa. O cego (que sofrerá uma mudança no decorrer da narrativa), Jesus e as autoridades do povo, os fariseus.

O cego, como todo enfermo, era tido como amaldiçoado, segundo a tradição de Israel. As enfermidades eram vistas como castigo oriundo de algum pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. Por isso os discípulos de Jesus perguntam-no sobre quem teria pecado, se o cego ou algum parente seu, no v.2. Jesus responde prontamente que ninguém havia pecado. Ele rompe com a ideia de que a doença seria um castigo do pecado, muito menos que existam pecados hereditários! Ainda sobre o tema da cegueira, esta enfermidade era tida como a pior das maldiçoes, pois privava a pessoa de ter acesso à leitura da Palavra de Deus, contida na Lei. Além disso, todas as enfermidades na época de Jesus tornavam os seus portadores impossibilitados para a vida religiosa e social. Eram tidos como pecadores públicos e não podiam ser admitidos ao interior do templo, ficando nas portas da cidade e dos locais de culto, vivendo da mendicância, como este cego de hoje.

No entanto, o cego tem sua ambivalência simbólica. Ele, enquanto cego, simboliza os fariseus, isto é, as lideranças do povo judeu que estavam (ou faziam a opção de ficar) cegos diante de Jesus. A cegueira era mais dos chefes do povo. Eles relutam e recusam ver a Jesus como luz do mundo. Por isso, a alegoria do Pastor ideal contada por Jesus em Jo 10 é direcionada aos fariseus, que são criticados por não pastorear (acolher) como deveriam, uma vez que estavam expulsando de seus meios a gente simples e aqueles que seguiam a Jesus. Por isso, ele se autorrevela como pastor ideal, frente aos guias e pastores cegos que eram os fariseus, enquanto lideranças do povo. Mas também o cego se torna símbolo daquele que ainda não fez sua opção favorável por Jesus. Fica-se então compreendidas as duas personagens, o cego e os fariseus.

Mas como dissemos que o cego é uma personagem mutante, num ponto importante da narrativa, após a cura, ele vai assumindo a face do discípulo que está dando os passos na fé em Jesus. Ele acaba sendo uma figura do candidato à fé, que, ao interno da comunidade cristã vai dando os passos em direção do batismo, mas também é uma alusão ao fiel-discípulo que naquele período de crise e de risco de abandonar a fé por causa das perseguições e da exclusão dos meios judaicos (onde a sinagoga representava ainda a segurança social da pessoa, frente a um mundo romanamente globalizado). Este fiel-discípulo e leitor do Quarto Evangelho é convidado pela catequese do evangelista a recordar quem é a sua segurança: Jesus, a Luz do mundo. A Luz do mundo não pode ser mais um sistema excludente e promotor de marginalização e de morte, como eram a sociedade e a religião do tempo de Jesus, bem como a realidade histórica do tempo da comunidade cristã do evangelista João.

Somos convidados por fim, a nos determos em Jesus. O evangelista nos diz que ele estava passando, ou seja, em movimento. Mas, na verdade, ele estava em fuga, pois as lideranças dos judeus queriam apedrejá-lo devido ao seu ensinamento (cf. Jo 8). Mas ali, diante daquele cego, onde a vida era escassa, ele se detém e coloca-se a sanar suas necessidades. Jesus vê a necessidade do outro e age com solidariedade e compaixão. Os vv.2 e 3 que são omitidos no relato breve, devem ser bem compreendidos. A cegueira não é vontade de Deus e nem punição a possíveis pecados cometidos. Também não é a condição para que a glória de Deus se manifeste, como poderia ser interpretada sua afirmação no v. 3. Mas esta afirmação de Jesus deve ser entendida assim: onde a vida é escassa, quer dizer, onde a criação não encontrou sua plenitude, há, então, espaço para que a glória de Deus se manifeste sanando a deficiência.

O gesto de Jesus é carregado de simbologia e significado. Nos descreve o evangelista: “Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego, e disse-lhe: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé (que quer dizer: enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (vv. 6-7).

O gesto de cuspir no chão e fazer lama com a saliva é carregado de um forte simbolismo: o barro alude à criação, é a matéria prima do ser humano, conforme a mentalidade bíblica. De acordo com essa mesma mentalidade, a saliva é gerada pelo hálito, e esse é o sopro, o espírito. Com isso, o evangelista quer dizer que Jesus repete o gesto criador de Deus (cf. Gn 2,7), ou seja, aperfeiçoa a criação do Pai. O homem que até então vegetava, passou a viver de verdade a partir do encontro com Jesus que lhe deu vida. A ordem para o homem lavar-se na piscina de Siloé significa a participação e a responsabilidade humana na criação e na salvação. Deus não quer o ser humano passivo, mas participante ativo de sua obra. Como “luz do mundo” (v. 5), Jesus aponta o caminho e quem o segue encontra a luz, como o cego “voltou enxergando” da piscina ao cumprir a sua ordem. Quem segue a palavra de Jesus encontra luz e sentido para a vida. Ao ir à piscina, conforme a ordem de Jesus, o cego demonstrou adesão ao Evangelho; por isso, passou a enxergar (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).

Através deste sinal, o catequista e autor do Quarto Evangelho quer recuperar para sua comunidade em crise, a identidade de Jesus. E esse episódio foi a melhor oportunidade que João encontrou para retratar essa realidade, uma vez que “dar vista aos cegos” era um dos principais sinais messiânicos anunciados pelos profetas (cf. Is 29,18; 42,7). Jesus é o messias, ou seja, o Cristo e Luz do mundo.

Conforme fora dito anteriormente, aquele ex-cego, por ter aderido a Jesus e sua Palavra, acabou sendo marginalizado pela religião daquele tempo, a qual vivia uma falsa religiosidade. Mas Jesus supera mais uma vez. Ele se manifesta novamente, ao saber que o homem tinha sido expulso da sinagoga e vem ao seu encontro (v. 35). Embora a versão litúrgica afirme que Jesus “encontrou” o homem, a tradução correta seria “foi encontrá-lo” (v. 35), o que significa que Jesus foi procurá-lo. Como sempre, Jesus resgata o que a religião e a falsa e superficial religiosidade descartou. Os sistemas dominantes separam e Jesus junta; a religião do templo oprime e obscurantiza; ao passo que Jesus liberta e ilumina.

Diante deste texto belíssimo, que ainda fica muito por comentar, dada sua profundidade e rica simbologia, quem somos no horizonte desta narrativa: somos o cego, que ao longo do percurso da fé vai deixando sua cegueira porque se propõe a viver segundo a Palavra de Jesus? Ou somos ainda os fariseus que se recusam a acolher a novidade do Dom de Deus em Jesus, luz do mundo e no mundo? E nossas comunidades? Se elas também não promovem a vida e a liberdade do ser humano, estão distantes da proposta de Jesus.


Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.