O
texto proposto para a liturgia deste terceiro domingo da quaresma é o relato
joanino do encontro entre Jesus e a samaritana. O episódio divide-se em três
momentos: 1) Jesus e a samaritana junto do poço de Jacó (4,1-26); 2) Jesus e os
discípulos (4,27-38); 3) Jesus e os samaritanos, que passam a crer nele a
partir do testemunho da mulher, e pela escuta da palavra de Jesus (4,39-42).
Interessa-nos os primeiro e o segundo momento.
Uma
chave de leitura para se compreender o presente texto é o tema da novidade
trazida por Jesus. Novidade esta que é escatológica e que fora esboçada nos cap
2. Ali, João pretende mostrar, pelo gesto profético de Jesus purificando o
templo de Jerusalém, que os sacrifícios do templo ficam impossibilitados e
abolidos, mediante a novidade escatológica trazida por Jesus em sua carne. Já
no capítulo 3, desenrola-se um diálogo com um certo chefe dos fariseus de nome
Nicodemos. O chefe dos fariseus vê uma novidade na presença de Jesus. Com um solene
“amém, amém”, o Jesus joanino introduz um discurso sobre a experiência
com Deus, que se dá pelo novo nascimento, através da Agua e do Espírito, que,
para o leitor-discípulo, alude ao Batismo, por meio do qual se dá a entrada na
comunidade de Jesus. Este novo nascimento se dá no Espirito, visibilizado e
assinalado pela água.
O
quarto evangelista situa para nós onde e como se deu a cena. O quadro mostra
Jesus voltando para Galileia. Ele vai a uma cidade chamada Sicar, e lá conforme
Gn 33,19, Jacó havia comprado um terreno que deu a José, para que este
enterrasse os seus descendentes. Havia ali uma fonte, ou mina d’agua. Parece
que o quarto evangelista também se serviu do relato de Gn 24 (o poço de Nacar)
como pano de fundo para seu quarto capítulo. Preferimos traduzir poço por
Fonte, porque a fonte dá a ideia de água corrente, fator importante para se
compreender o simbolismo do evangelista.
João
nos informa que Jesus parou ali para descansar, ao meio-dia, a hora Sexta.
Àquela hora apareceu uma mulher samaritana para tirar água. Não era a melhor
hora, uma vez que as mulheres iam bem cedo, ao frescor da manhã. Jesus, então,
entabula um diálogo com ela, pedindo-lhe água. Ela responde a Jesus de modo a
ressaltar a diferença cultural e social entre Judeus e Samaritanos: “tu, que és
judeu, pede de beber a mim que sou uma mulher samaritana?” Interessante que o
evangelista dá peso à cena, ao mostrar o diálogo de Jesus com a mulher, na
ausência dos discípulos, uma vez que um judeu não conversava em público com uma
mulher. Ainda mais samaritana. Judeus e Samaritanos não se relacionavam, e por
isso ela responde que não pode compartilhar com ele seus pertences. Ora, aos
olhos de seus adversários, o fato de Jesus já ter iniciado uma conversa com um
samaritano já seria motivo de grave falta, tanto mais o uso de um utensílio
deles.
Jesus,
como no caso de Nicodemos, começa o diálogo com a samaritana mediante um paradoxo que reside no
reconhecimento do Dom de Deus naquele que pede água para beber, pois este é que
dá uma água que mata a sede. Ou seja, o paradoxo pretende ensinar uma novidade
para samaritana: ela tem que aprender algo totalmente novo. A samaritana e
Nicodêmos são figuras simbólicas dos candidatos à Fé cristã. Aquele que pede,
na verdade é aquele que mais pode dar, pois dá algo de totalmente novo e além
do que se pode esperar. Mas isso a samaritana, Nicodêmos e o discípulo-leitor
(candidato ao batismo e a fé) devem ir compreendendo, porque ela ainda não
entendeu, permanecendo na materialidade do símbolo da água.
Quando
se fala da Água que brota para a vida eterna, na verdade está se referindo a
Água que no crente produz a existência do eon
(era ou século) vindouro de Deus, que põe fim à arbitrariedade do que reina
neste tempo. Um convite para que a samaritana receba como dom esta água viva
que faz brotar o era vindoura já presente em Jesus. É claro que o leitor
joanino (que pode ser o iniciado ou catecúmeno na fé) pode associar esse dom ao
batismo.
O
v.12 traz, aqui, o recurso da Ironia Joanina: ‘Por acaso, és maior que nosso
pai Jacó, que nos deu o poço e que dele bebeu, como também seus filhos e seus
animais?’ Estas palavras da samaritana, na verdade, pretendem afirmar que Ele é
sim maior que Jacó.
Mas
a samaritana não conseguiu romper com o nível material, pedindo uma água comum,
para que não tenha mais sede, nem precise vir tira-la da fonte. Então Jesus
experimenta uma didática mais radical para derrubar as resistências daquela
mulher. Pede que ela lhe chame o marido. Imediatamente a mulher responde que
não tem marido. Jesus confirma e declara que ela, de fato, possuíra cinco
maridos e, que naquele momento possuia um sexto (emprestado), que não era dela.
Neste ponto é que a mulher reconhece em Jesus algo de inexplicável. Ele
consegue romper-lhe a resistência.
Compreendamos
e não confundamos a identidade dos cinco maridos: eles são, no nível do texto,
um símbolo para os povos que foram implantados pelos assírios ali na Samaria (2Rs
17), por ocasião da deportação em 722 a.C, quando da queda do Reino de Israel –
persas, babilônios, elamitas. Estes povos trouxeram consigo suas religiões e
seus deuses, os quais passaram a ser cultuados também pelos israelitas que ali
permaneceram. Temos cinco deuses que não são próprios dali e um sexto deus que
é tomado de empréstimo. A mensagem central desta simbologia é a seguinte:
abandonar os esquemas antigos e de morte que ela vive para abraçar a novidade
de Deus agindo em Jesus. E o primeiro passo, nesse sentido, seria o
reconhecimento em Jesus, de um revelador que traz um conhecimento novo, o qual
supera o conhecimento dela.
Interrogado
por ela sobre o lugar autêntico para adoração de Deus, se seria o monte Garizim
ou Jerusalém, no Templo, Jesus chama-a para uma reflexão no v.22. Ele insinua que os samaritanos adoravam aquilo
que não conheciam, porque abandonaram e negaram a pregação profética, fazendo
até mesmo uma versão própria da Lei (da Torah). Já os judeus do sul conheciam Aquele
que adoravam porque permaneceram fieis à pregação dos profetas, bem como à Lei.
Para João, o critério para se tornar discípulo de Jesus e viver a novidade
escatológica de Deus agindo através dele, e, com isso acolher o dom de Deus em
Jesus como Seu revelador pleno, consiste na atenção à Profecia e à Lei. Elas
revelam e testemunham quem Jesus é!
Nesse
sentido, o v. 23 é realmente explosivo: “Vêm a Hora, e é Agora”. É agora que se passa para o Novo Eon – a vida do âmbito de Deus – que irrompe
no Eon atual. Aqui aparece pela
primeira o tema joanino da Escatologia presente. A Eternidade de Deus já se
torna presente através da atuação, vida e obra de Jesus. O tempo presente da
adoração do Pai não é no Garizim, nem em Jerusalém, mas em ESPIRITO e em
VERDADE.
O
que significa isso? Primeiramente, desmistifiquemos aquela intepretação errônea
de que a expressão “em Espírito e em Verdade” insinue uma adoração intimista ou
individualista. A expressão joanina muito menos acenaria para uma concepção
carismática da religião, com suas manifestações extraordinárias ou
sobrenaturais tipicamente neopentecostais. O texto joanino não permite entender
“adoração em Espírito e em Verdade” como fenômenos (psíquicos) que de
carismáticos não tem nada, ou daquilo que se costumou identificar como os “repousos
espirituais” ou “fenômenos das línguas”. Nada disso.
Em Espírito e em
Verdade: adorar a
Deus em Espírito e em Verdade significa para o discípulo assumir e viver a vida
de Jesus em sua própria história; deixar que a Sua vida perpasse-lhe a vida e a
história, e, por meio delas, ressoe e aconteça a vida e a história mesma de
Jesus (suas opções, sua prática, seu modo de vida), que é a vida mesma de Deus.
Adorar a Deus em Espírito e em Verdade é pautar a própria vida pelo Espirito de
Jesus, que faz a vida e história do mestre e Senhor acontecerem novamente.
Prestar culto agradável a Deus com a própria vida encarnada na história e
iluminada pela fé. É uma conduta de vida extremamente encarnada na existência e
na prática humana, orientada pela Verdade que é Deus e animada pelo Seu
Espírito.
O
v.24 dirá que “Deus é Espírito” João pensa no Espírito ativo que outra coisa
não é que a força divina que impele a vida e ação de Jesus (e do discípulo) na
história. Jesus veio para dar testemunho dessa Verdade (Jo 18). Nesse sentido, Jesus
não testemunha um Deus inacessível, intangível, distante, mas um Deus presente
naquilo que Ele testemunha a respeito de sua intimidade e comunhão de vida com
o Pai. Assim, a verdadeira adoração em Espírito em Verdade é a acolhida daquilo
que Jesus testemunha, e que a sua comunidade transmite.
Nessa
lógica, a mulher diz no v.25: “Sei que o messias-Ungido vem. Quando ele vier,
ele nos esclarecerá todas essas coisas”. Ela imagina o ungido de Deus como o
novo Moisés, que explicará todas as coisas. Quando ele vier esclarecerá todas
as coisas. Ele será a plenitude da Lei e da profecia. Nesse sentido, a
(reveladora) declaração de Jesus assume um peso importante: “Sou eu quem está
falando contigo”. Jesus se coloca como aquele que promete cumprir o desejo de
conhecimento do Dom de Deus que a mulher samaritana tem. Este, não é como um
professor que apenas explica coisas belas, mas um revelador-anunciador que traz
em si a novidade escatológica: Jesus é o anunciador e revelador de Deus, e o
dom de sua vida e Espírito constituem a água viva, que transforma a vida do discípulo
numa fonte que jorra água viva.
A
lição pragmática que o texto pretende dar ao leitor-discípulo é a seguinte.
Aquele que faz a experiência da novidade que Jesus traz, o Dom de Deus, que na
verdade é Deus mesmo, não pode ficar indiferente. Deverá deixar fluir de si a
água da vida divina, para que os outros possam fazer a mesma experiência; não é
atoa que o texto original prefere a palavra fonte à poço: fonte aponta para
água corrente; em movimento constante! O discípulo que faz a experiência com
Jesus e seu Dom (seu Espírito em nós), não pode se tornar um estanque que
represa a água da vida, mas deve mover-se na direção do outro.
Assim,
o capítulo 4 do evangelho com o célebre diálogo com a Samaritana, pretende nos
ensinar que “Agora” se passa para esse Novo Eon. A Eternidade já presente. O tempo presente da adoração do Pai,
que não se dá no Garizim, nem em
Jerusalém. Se dá em ESPIRITO e em VERDADE. Ou seja, na prática concreta daquilo
que a Verdade que é Deus, e seu Espirito em nós, que é sua força, nos mandar
fazer
E,
nesse sentido, a mulher samaritana aprendeu a lição: vai, então, anunciar essa
novidade para os seus. Ela deixou ali o seu cântaro. Deixou ali aquilo que fora
a razão de sua ida para o poço. Da condição de discípula, ela passa para a
condição de missionária e vai anunciar aos seus. E nós, a partir de nossa
experiência pessoal e comunitária com Jesus, somos poço (que retém a água, a
ponto de deixa-la parada) ou somos fonte que está sempre em movimento?
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese de
Botucatu – SP.
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