A
liturgia deste Segundo Domingo da Quaresma nos convida a meditar a narrativa da
transfiguração de Jesus, que está presente em Mateus, Marcos e Lucas. Mas cada
evangelista deu a esse fato cores próprias, de acordo com os objetivos de cada
evangelho. No horizonte da catequese mateana, esse episódio é precedido por
três importantes momentos interligados: a confissão de Pedro (Mt 16,13-20); o
primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração das exigências para o
discipulado (Mt 16,24-28). Se trata de uma sequência narrativa que cumpre,
primeiramente a função de revelar a identidade e do destino de Jesus, cuja
conclusão é exatamente o episódio da transfiguração.
Antes
de tomarmos o texto, se faz necessária uma pílula litúrgica: a intenção deste
relato, ao interno do tempo quaresmal, é a de fazer com que o fiel se coloque
na predisposição de deixar-se transfigurar por Deus, através do seguimento a
Jesus. Ainda insistindo na dinâmica litúrgico-mistagógica, podemos tomar o
texto de hoje e coloca-lo em sintonia com o evangelho do primeiro domingo do
tempo quaresmal, no qual meditamos as tentações de Jesus, que foi, num determinado
momento da narrativa, levado pelo tentador para o alto de uma montanha, para ser
tentado pela riqueza e pelo poder.
Neste
sentido, a liturgia deste segundo domingo da quaresma pretende mostrar outra
montanha que o fiel-leitor e discípulo deve subir com Jesus, a da transfiguração,
e, com isso, rejeitar as tentações da vida fácil e pautada por todas aquelas
ideologias de poder, dominação e riqueza, que amparam os sistemas de morte,
contrários ao projeto de Deus anunciado por Jesus. Em síntese, a montanha da
transfiguração, na qual sobe Jesus com seus difíceis companheiros, Pedro, Tiago
e João, se torna oposição e contraste ao monte sobre o qual Jesus foi tentado.
O discípulo do reino deve rejeitar esta e optar por transfigurar-se.
O
texto evangélico inicia-se situando as personagens e o lugar. Mateus introduz-nos
na cena, dizendo que Jesus subiu com Pedro, Tiago e João, para uma alta
montanha. Atenção às personagens. Tiago, João e Pedro sempre aparecem em
primeiro plano nas narrativas, em detrimento aos demais. Essa preferência não
se trata de privilégio, mas de necessidade de aprender profundamente sobre a
identidade de Jesus e sobre a sua missão. Estes três eram os que mais
necessitavam do ensinamento de Jesus. Não se trata de nenhum mérito da parte
deles, mas o contrário: eles nada tinham de meritório. É verdade que os três personificam
o grupo dos Doze. E, na cultura e tradição judaicas atuam também na função de
testemunhas qualificadas, ou seja, aquelas que dão veracidade ao fato ocorrido
e narrado.
Agora,
o aspecto geográfico. Mateus situa-os na montanha. A montanha, para a teologia
bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar
costumeiro de Sua manifestação (as teofanias). Não se trata de um mero lugar
geográfico, mas, acima de tudo, teológico. Ora, toda a possibilidade e ocasião
de encontro com Deus acaba sendo uma “subir a montanha”.
É
preferível não identificar a montanha com o Tabor. Esta identificação surgiu
com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se
sustenta com a leitura da bíblia. É melhor manter a montanha anônima, tomando-a
somente como a possibilidade e um encontro com Deus. O monte, com forte
conotação teológica, é mencionado no evangelho com certa frequência (Mt 5,1;
8,1; 14,23; 15,29; 28,16). O monte é o lugar da revelação de Deus, aludindo ao
Sinai (Ex 24,12-18). A expressão “seis dias depois” recorda Êxodo 24,13-16
(VITÓRIO, J, 2017, p.107).
Ali,
Jesus fica transformado. A palavra grega para esta ação é “metamorphote
(do verbo grego Metamorphein)”. O qual está na voz passiva (lit. “Foi
transfigurado diante deles”). O que indica que a ação é realizada por Deus. Ou
seja, o Pai revela quem Jesus é, a partir de dentro; a partir da humanidade do
Filho. É como se revelasse a incrível beleza de sua humanidade, jamais
reconhecida pelos adversários, decididos a tirar-lhe a vida (Mt 12,14).
Portanto, os três discípulos estão em condições de fazer uma leitura distinta
da morte injusta do Mestre (Mt 16,21) (VITÓRIO, J, 2017, p.108).
Nesta
perspectiva, o texto cumpre sua função para o leitor-discípulo, a de mostrar
como será o caminho de Jesus; como ele desenvolverá sua missão, e, qual será o
desfecho. O seu messianismo não será vivido na perspectiva do poder, do domínio,
da força, da submissão, do prestígio como ele alerta através no primeiro anúncio
da paixão (Mt 16,21). Tampouco a morte violenta e ignominiosa terá a última
palavra na sua vida. Pois a cena narrada trata de antecipar tanto para o discípulo
que o acompanha até o monte, como para o leitor do evangelho, a Sua condição ressuscitada:
seu destino e, e a de todos e todas que se decidem a viver o projeto do Reino.
Por
isso, o detalhe temporal que Mateus sublinha, “seis dias depois”, torna-se
importante: Jesus mostra, mediante a transfiguração, a plena realização daquilo
que Deus planejou para o ser humano. Esse dado merece consideração, porque o
evangelista está pensando na semana da criação (Gn 1). No sexto dia Deus criou
o ser humano.
No
v.3, o evangelista informa a presença de outras duas personagens, Moisés e
Elias. Ambos simbolizam a Palavra de Deus. O primeiro, faz alusão à Lei; o
segundo, à profecia. Na intenção de Mateus, Lei e Profecia representam a totalidade
da Palavra de Deus. Ao lado de Jesus, eles indicam-no como a plenitude da Lei e
dos Profetas, ou seja, Jesus é a realização plena das Escrituras, e as leva à
seu pleno cumprimento através de sua vida.
Pedro
interrompe a cena dizendo que a aquela experiência era boa (v.4). Muito se vê
na atitude dele algo de negativo. Mas, na verdade, Pedro fica empolgado com a
experiência maravilhosa e propõe a Jesus fazer aí três tendas, de modo a
poderem eternizar a convivência com ele, Moisés e Elias. O número três é
importante nessa cena. Na simbologia numérica judaica, corresponde ao número do
ser humano. Sendo assim, a mensagem da cena da transfiguração diz respeito à
humanidade de Jesus revelada à humanidade dos discípulos, que se deixam
encantar por ele e querem contemplá-lo sem fim, para serem transfigurados por
ele (VITÓRIO, J, 2017, p.108).
Todavia,
se faz necessário também colher três elementos que devem ser recusados pelo
discípulo-leitor do evangelho. O primeiro é o comodismo; permanecer na montanha
é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se
indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que
assolam o mundo, que configura uma nova tentação sugerida a Jesus. Mais uma
vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira
vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo.
O
segundo elemento reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição e não
reconhecimento de Jesus como o centro da vida: “uma para ti, uma para Moisés, e
outra para Elias”, ocupando Moisés o centro da frase dita pelo discípulo, uma
vez que era costume colocar a pessoa de maior destaque e importância no centro
da frase, ou seja, nomeando-o em segundo lugar; infelizmente, Jesus ainda não
ocupava o centro na vida de Pedro, e sim Moisés. O discípulo ainda insiste com
a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas colocando Moisés e a Lei no centro
da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu Evangelho como centro.
O
terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus
como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento, sobretudo no contexto do
êxodo, a tenda é a o lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de
Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus
como o revelador de Deus por excelência (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot).
Outro
símbolo importante é a “nuvem brilhante” que envolve a todos (Ex 24,15; Ml
24,30; 26,64). Ela aponta para a presença de Deus, designada no judaísmo como
Shekiná (a tenda da Reunião). Da nuvem, ouviu-se a voz do Pai: “Este é o meu
Filho amado. Só nele eu encontro alegria. Fiquem atentos ao que ele diz” (Mt
3,17; ís 42,1). O Pai o credencia como o único que tem autoridade para falar e
ser ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias
e o Pai lhe corrige. Moisés e Elias já disseram o que tinham de dizer; à
comunidade cristã, só interessa o Evangelho.
A
nuvem os envolve. Interessante este detalhe, que significa que os discípulos foram
acolhidos por Deus, que fala de Jesus como seu Filho querido. O bem-querer do
Pai pelo Filho, portanto, alarga-se a ponto de abarcar, acolher e abraçar os
discípulos e toda a humanidade (VITÓRIO, J, 2017, p.108).
Jesus,
porém, aproxima-se deles e os toca dizendo: “Levantem-se. Não é preciso ter
medo”. Ter medo corresponde a não ter fé (Mt 14,30-31). Fé e medo são sempre
atitudes opostas. A primeira, sempre deve estar presente na vida do discípulo;
a segunda, deverá ser sempre evitada. Quem tem fé coloca-se diante de Deus com
confiança filial, a exemplo de Jesus.
O
toque de Jesus, que é a sua própria palavra, levanta e transforma a comunidade
dos discípulos: “Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a
não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e Elias desapareceram para que as
atenções dos discípulos se voltem somente para Jesus, o centro da vida e da
comunidade que já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais
nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e,
portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre
olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo
com seu evangelho. Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a
comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a
realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o
maior deles: a cruz (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot).
Só
pode assimilar e viver uma vida transfigurada, aquele discípulo que se propõe a
subir a montanha com Jesus e ouvir sua voz, ou seja, referenciar sua vida à
vida mesma de Jesus, a qual supera a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias),
levando-as à sua plena realização. Assim, o discípulo e a discípula do Reino
viverão uma vida verdadeiramente transfigurada, que outra coisa não é senão
viver a vida do Filho de Deus. Viver a vida segundo o Filho de Deus consiste
recusar a montanha da tentação do poder, da vida fácil e das mundanidades.
Peçamos
a Graça de transfigurar como o Senhor, e a força de recusar toda a desfiguração
que as forças e os projetos do Anti-reino oferecem.
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu – SP.
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