domingo, 8 de março de 2020

HOMILIA PARA O II DOMINGO DA QUARESMA (Ano A) - Mt 17,1-9:




A liturgia deste Segundo Domingo da Quaresma nos convida a meditar a narrativa da transfiguração de Jesus, que está presente em Mateus, Marcos e Lucas. Mas cada evangelista deu a esse fato cores próprias, de acordo com os objetivos de cada evangelho. No horizonte da catequese mateana, esse episódio é precedido por três importantes momentos interligados: a confissão de Pedro (Mt 16,13-20); o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração das exigências para o discipulado (Mt 16,24-28). Se trata de uma sequência narrativa que cumpre, primeiramente a função de revelar a identidade e do destino de Jesus, cuja conclusão é exatamente o episódio da transfiguração.

Antes de tomarmos o texto, se faz necessária uma pílula litúrgica: a intenção deste relato, ao interno do tempo quaresmal, é a de fazer com que o fiel se coloque na predisposição de deixar-se transfigurar por Deus, através do seguimento a Jesus. Ainda insistindo na dinâmica litúrgico-mistagógica, podemos tomar o texto de hoje e coloca-lo em sintonia com o evangelho do primeiro domingo do tempo quaresmal, no qual meditamos as tentações de Jesus, que foi, num determinado momento da narrativa, levado pelo tentador para o alto de uma montanha, para ser tentado pela riqueza e pelo poder.

Neste sentido, a liturgia deste segundo domingo da quaresma pretende mostrar outra montanha que o fiel-leitor e discípulo deve subir com Jesus, a da transfiguração, e, com isso, rejeitar as tentações da vida fácil e pautada por todas aquelas ideologias de poder, dominação e riqueza, que amparam os sistemas de morte, contrários ao projeto de Deus anunciado por Jesus. Em síntese, a montanha da transfiguração, na qual sobe Jesus com seus difíceis companheiros, Pedro, Tiago e João, se torna oposição e contraste ao monte sobre o qual Jesus foi tentado. O discípulo do reino deve rejeitar esta e optar por transfigurar-se.

O texto evangélico inicia-se situando as personagens e o lugar. Mateus introduz-nos na cena, dizendo que Jesus subiu com Pedro, Tiago e João, para uma alta montanha. Atenção às personagens. Tiago, João e Pedro sempre aparecem em primeiro plano nas narrativas, em detrimento aos demais. Essa preferência não se trata de privilégio, mas de necessidade de aprender profundamente sobre a identidade de Jesus e sobre a sua missão. Estes três eram os que mais necessitavam do ensinamento de Jesus. Não se trata de nenhum mérito da parte deles, mas o contrário: eles nada tinham de meritório. É verdade que os três personificam o grupo dos Doze. E, na cultura e tradição judaicas atuam também na função de testemunhas qualificadas, ou seja, aquelas que dão veracidade ao fato ocorrido e narrado.

Agora, o aspecto geográfico. Mateus situa-os na montanha. A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar costumeiro de Sua manifestação (as teofanias). Não se trata de um mero lugar geográfico, mas, acima de tudo, teológico. Ora, toda a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo uma “subir a montanha”.

É preferível não identificar a montanha com o Tabor. Esta identificação surgiu com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se sustenta com a leitura da bíblia. É melhor manter a montanha anônima, tomando-a somente como a possibilidade e um encontro com Deus. O monte, com forte conotação teológica, é mencionado no evangelho com certa frequência (Mt 5,1; 8,1; 14,23; 15,29; 28,16). O monte é o lugar da revelação de Deus, aludindo ao Sinai (Ex 24,12-18). A expressão “seis dias depois” recorda Êxodo 24,13-16 (VITÓRIO, J, 2017, p.107).

Ali, Jesus fica transformado. A palavra grega para esta ação é “metamorphote (do verbo grego Metamorphein)”. O qual está na voz passiva (lit. “Foi transfigurado diante deles”). O que indica que a ação é realizada por Deus. Ou seja, o Pai revela quem Jesus é, a partir de dentro; a partir da humanidade do Filho. É como se revelasse a incrível beleza de sua humanidade, jamais reconhecida pelos adversários, decididos a tirar-lhe a vida (Mt 12,14). Portanto, os três discípulos estão em condições de fazer uma leitura distinta da morte injusta do Mestre (Mt 16,21) (VITÓRIO, J, 2017, p.108).

Nesta perspectiva, o texto cumpre sua função para o leitor-discípulo, a de mostrar como será o caminho de Jesus; como ele desenvolverá sua missão, e, qual será o desfecho. O seu messianismo não será vivido na perspectiva do poder, do domínio, da força, da submissão, do prestígio como ele alerta através no primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21). Tampouco a morte violenta e ignominiosa terá a última palavra na sua vida. Pois a cena narrada trata de antecipar tanto para o discípulo que o acompanha até o monte, como para o leitor do evangelho, a Sua condição ressuscitada: seu destino e, e a de todos e todas que se decidem a viver o projeto do Reino.

Por isso, o detalhe temporal que Mateus sublinha, “seis dias depois”, torna-se importante: Jesus mostra, mediante a transfiguração, a plena realização daquilo que Deus planejou para o ser humano. Esse dado merece consideração, porque o evangelista está pensando na semana da criação (Gn 1). No sexto dia Deus criou o ser humano.

No v.3, o evangelista informa a presença de outras duas personagens, Moisés e Elias. Ambos simbolizam a Palavra de Deus. O primeiro, faz alusão à Lei; o segundo, à profecia. Na intenção de Mateus, Lei e Profecia representam a totalidade da Palavra de Deus. Ao lado de Jesus, eles indicam-no como a plenitude da Lei e dos Profetas, ou seja, Jesus é a realização plena das Escrituras, e as leva à seu pleno cumprimento através de sua vida.

Pedro interrompe a cena dizendo que a aquela experiência era boa (v.4). Muito se vê na atitude dele algo de negativo. Mas, na verdade, Pedro fica empolgado com a experiência maravilhosa e propõe a Jesus fazer aí três tendas, de modo a poderem eternizar a convivência com ele, Moisés e Elias. O número três é importante nessa cena. Na simbologia numérica judaica, corresponde ao número do ser humano. Sendo assim, a mensagem da cena da transfiguração diz respeito à humanidade de Jesus revelada à humanidade dos discípulos, que se deixam encantar por ele e querem contemplá-lo sem fim, para serem transfigurados por ele (VITÓRIO, J, 2017, p.108).

Todavia, se faz necessário também colher três elementos que devem ser recusados pelo discípulo-leitor do evangelho. O primeiro é o comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo, que configura uma nova tentação sugerida a Jesus. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo.

O segundo elemento reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição e não reconhecimento de Jesus como o centro da vida: “uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias”, ocupando Moisés o centro da frase dita pelo discípulo, uma vez que era costume colocar a pessoa de maior destaque e importância no centro da frase, ou seja, nomeando-o em segundo lugar; infelizmente, Jesus ainda não ocupava o centro na vida de Pedro, e sim Moisés. O discípulo ainda insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas colocando Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu Evangelho como centro.

O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é o não reconhecimento de Jesus como a verdadeira tenda. Ora, no Antigo Testamento, sobretudo no contexto do êxodo, a tenda é a o lugar do encontro com Deus, o que agora é a pessoa de Jesus. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o revelador de Deus por excelência (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot).

Outro símbolo importante é a “nuvem brilhante” que envolve a todos (Ex 24,15; Ml 24,30; 26,64). Ela aponta para a presença de Deus, designada no judaísmo como Shekiná (a tenda da Reunião). Da nuvem, ouviu-se a voz do Pai: “Este é o meu Filho amado. Só nele eu encontro alegria. Fiquem atentos ao que ele diz” (Mt 3,17; ís 42,1). O Pai o credencia como o único que tem autoridade para falar e ser ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias e o Pai lhe corrige. Moisés e Elias já disseram o que tinham de dizer; à comunidade cristã, só interessa o Evangelho.

A nuvem os envolve. Interessante este detalhe, que significa que os discípulos foram acolhidos por Deus, que fala de Jesus como seu Filho querido. O bem-querer do Pai pelo Filho, portanto, alarga-se a ponto de abarcar, acolher e abraçar os discípulos e toda a humanidade (VITÓRIO, J, 2017, p.108).

Jesus, porém, aproxima-se deles e os toca dizendo: “Levantem-se. Não é preciso ter medo”. Ter medo corresponde a não ter fé (Mt 14,30-31). Fé e medo são sempre atitudes opostas. A primeira, sempre deve estar presente na vida do discípulo; a segunda, deverá ser sempre evitada. Quem tem fé coloca-se diante de Deus com confiança filial, a exemplo de Jesus.  

O toque de Jesus, que é a sua própria palavra, levanta e transforma a comunidade dos discípulos: “Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e Elias desapareceram para que as atenções dos discípulos se voltem somente para Jesus, o centro da vida e da comunidade que já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu evangelho. Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot).

Só pode assimilar e viver uma vida transfigurada, aquele discípulo que se propõe a subir a montanha com Jesus e ouvir sua voz, ou seja, referenciar sua vida à vida mesma de Jesus, a qual supera a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias), levando-as à sua plena realização. Assim, o discípulo e a discípula do Reino viverão uma vida verdadeiramente transfigurada, que outra coisa não é senão viver a vida do Filho de Deus. Viver a vida segundo o Filho de Deus consiste recusar a montanha da tentação do poder, da vida fácil e das mundanidades.

Peçamos a Graça de transfigurar como o Senhor, e a força de recusar toda a desfiguração que as forças e os projetos do Anti-reino oferecem.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

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