O evangelho proposto para o início deste
tempo quaresmal é sempre tomado do capítulo sexto do Evangelho segundo Mateus,
inserido no Sermão da Montanha, o discurso inaugural de Jesus no primeiro evangelho
(Mt 5,1 – 7).
Os destinatários desse discurso são os
discípulos, desde os de outrora até nós, no presente. No trecho em questão,
Jesus faz algumas considerações a respeito das três práticas fundamentais da
piedade judaica: a esmola (cf. vv. 2-4), a oração (cf. vv. 5-6) e o jejum (cf.
vv. 16-18). É interessante perceber que Jesus não pretende cancelar o valor de
tais práticas; ao contrário, seu objetivo é torná-las eficazes, ou seja,
agradáveis ao Pai (CORNELIO, F, Roteiros Homiléticos in. h ttps://www.vidapastoral.com.br/roteiros/quarta-feira-de-cinzas-26-de-fevereiro).
O capítulo seis começa com uma exortação
de Jesus aos discípulos, “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na
frente dos homens, só para serem vistos por eles (v.1)”. O mestre chama a
atenção dos discípulos para um tema muito importante dentro da fé israelita: a
justiça de Deus (Justiça do Reino). Jesus já havia chamado a atenção dos
discípulos e da multidão sobre a “justiça dos fariseus”, falando da necessidade
da Justiça do Reino, que o discípulo deve viver, superar aquela justiça dos
mestres da lei e dos fariseus (Mt 5,20).
A justiça na bíblia é a vontade soberana de
Deus. Dito de outra maneira: é o senhorio (vontade) de Deus, acontecendo na
história e na vida do discípulo do Reino, que através de sua vida tende a ser a
expressão histórica do agir divino.
Mateus, recuperando o ensinamento de
Jesus, quer ensinar que a prática do discípulo deve ser discreta, como o sal,
que não é visto, mas que se sabe presente. Observa-se uma espécie de princípio:
a religiosidade do discípulo do Reino não é exibicionista, e nem a religião
deve se sujeitar a isso. Uma certa ala do farisaísmo, no tempo de Jesus, era
muito exibicionista. Sua piedade era afetada, de modo a estarem sempre em
evidência e serem considerados perfeitos e santos. Jesus adverte os discípulos
contra esta maneira de se comportar, exortando-os a não fazerem as coisas para
serem vistos e louvados pelos demais (VITÓRIO, 1998, p. 19). Então ensinará o
modo certo de rezar.
No v.2-4 tem-se a orientação para a
esmola: “Quando deres esmola não façais como os hipócritas... em público para
serem vistos e elogiados”. As obras de caridade, a Lei e o culto eram
considerados os três pilares do mundo judaico. Daí a importância da esmola (Tb
4,7-11.16-17; 12,9). O discípulo, porém, é exortado a não fazer como os
hipócritas que dão esmola pelas ruas e nas sinagogas, onde se reúne muita
gente, de modo a chamar a atenção sobre si e granjear elogios. Esta já seria a
recompensa deles (VITÓRIO, 1998, p. 19).
“De modo que a mão esquerda não saiba o
que faz a direita”. Na antropologia bíblica, a mão responsável por fazer o bem
é a direita. A mão esquerda, faz o mal. A esmola, nesse sentido, torna-se discreta.
O que a caracteriza como sendo um gesto autêntico de piedade, porque pautou-se
unicamente pela gratuidade. A esmola dada ocultamente é testemunhada apenas
pelo Pai, que a recompensará de maneira adequada. A esmola coloca, então, o
discípulo em relação com o próximo.
Os v.5-6 tratam da oração: a oração deve
ser do mesmo modo. Na intimidade e no silêncio. O discípulo do Reino não deve
rezar de maneira teatral, como os hipócritas. Esses, nas sinagogas e nas
esquinas das praças, rezam para serem vistos por quem passa. A oração do
discípulo deve ser feita com simplicidade e discrição, no oculto do próprio
quarto (2 Rs 4,33), de modo a ser visto apenas pelo Pai. O próprio Jesus rezava
solitário (Mt 14,23; Mc 1,35; 6,46). Com isto, não está proibindo a oração em
comum (Mt 18,20), prática muito antiga das comunidades cristãs. Ele mesmo
participava das orações na sinagoga (Mc 1,21; Lc 4,16). Jesus, sim, questiona
uma atitude equivocada por parte de quem reza (VITÓRIO, 1998, p. 20). A oração
coloca o discípulo na relação com Deus.
Já os v.16-18, tratam do tema do Jejum. O
Jejum é uma prática de controle contra as desordens interiores. É a
possibilidade da integração relacional consigo mesmo. A maneira hipócrita de
jejuar consiste ficar com a cara pálida de modo a ser percebido e, por isso,
ser louvado pelos demais (VITÓRIO, 1998, p. 21). Se assim for, então este jejum
não servirá, porque visa mostrar o exterior (a cara pálida de coitadinho), e
não corrigir o interior.
É muito significativo que essas três
práticas sejam tratadas juntas. Para Jesus, esmola, oração e jejum estão no
mesmo nível e só têm sentido se estiverem unidas, pois são inseparáveis. A
oração deve prolongar-se na vida concreta, mediante a caridade em favor do
próximo, e o jejum deve transformar-se em oferta aos mais necessitados. Quando
as necessidades do próximo são ignoradas, a oração e o jejum se tornam
totalmente ineficazes e insignificantes (CORNELIO, F, Roteiros Homiléticos in.
h ttps://www.vidapastoral.com.br/roteiros/quarta-feira-de-cinzas-26-de-fevereiro).
Com estes ensinamentos de Jesus, Mateus
visa mostrar que o modo de ser homem e mulher, discípulo e discípula do Reino,
presente no Sermão da montanha consiste na compreensão do ser humano como ser
de relação: relação com o Pai; relação com sigo mesmo; com o irmão e com as
criaturas. Uma relação Paternal, filial e fraterna.
Ora, a salvação na Bíblia é a salvação do humano
e de suas relações. O Pecado rompe com o projeto da relação e da comunhão
integrada com Pai; com sigo mesmo e com sua alteridade, bem como com as
criaturas. Por isso, Jesus, ao ensinar a superação da justiça dos fariseus,
centrada neles próprios, trabalhará o ser humano como ser de comunhão para
restaurar a Comunhão primigênia, através destes ensinamentos de Mt 6,1-6.16-18.
Ali está a salvação do discípulo do Reino, reencontrar-se neste caminho de
comunhão e de relação.
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP.
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