Nós sabemos que uma festa não pode ser bem-sucedida, se não for preparada com esmero. Aproximadamente 200 anos d.C., os cristãos, desejosos de saborear em plenitude os frutos espirituais da Páscoa, introduziram o costume de celebrá-la, precedendo-a por três dias dedicados à oração, à meditação e ao jejum, como sinal de luto pela morte de Cristo.
Esta grande solenidade, porém,
não somente devia ser preparada, como também precisava encontrar uma forma de
prolongar a alegria e a riqueza espiritual. Foram instituídas então as “sete
semanas” pós páscoa, isto é, os cinquenta dias de Pentecostes que deviam ser
celebrados com grande alegria, porque, como dizia um famoso bispo daqueles
tempos, chamado Irineu, “constituem como que um único dia de festa, com a mesma
importância do domingo”. Durante ‘os dias de Pentecostes’ rezava-se de pé, era
proibido jejuar, e se administrava o batismo. Na prática, era como se ‘o dia da
Páscoa’ tivesse a duração de cinquenta dias.
Passaram-se mais 150 anos, e
por volta do ano 350 d.C. os cristãos, percebendo que os três dias de
preparação eram demasiadamente poucos, os aumentaram para quarenta... Surgia
assim a ‘Quadragésima’, que em português é a ‘Quaresma’, explica o biblista Fernando
Armelini.
Outro biblista, Alberto Maggi, sacerdote italiano, convida-nos a entendermos bem o sentido profundo da Quaresma não como mortificação, mas como tempo favorável para preparar a nossa vivificação. Com o rito da imposição das
Cinzas inicia-se o tempo da Quaresma. Para entendermos bem o significado deste
tempo litúrgico e especial para a nossa vida de fé, propomos uma nova leitura
deste tempo litúrgico após o Concílio.
Antes do Concílio, o rito de
imposição das cinzas vinha acompanhado da formula litúrgica retirada do Livro
do Gênesis: “Lembra-te que és pó, e ao pó retornarás” (Gn 3,19). Se, por um
lado o ambiente proposto pelo tempo quaresmal revestia-se em tons de tristeza,
e lúgubre, por outro, a liturgia que fazia uso da formula do terceiro capítulo
do livro do Gênesis, relembrava aquela maldição dita por Deus ao homem por
conta de seu pecado. A quaresma era vista, então, como um período de
mortificação, penitência e de sacrifício.
Hoje, a liturgia
pós-conciliar, na imposição das cinzas, apresenta uma expressão evangélica – e
não provinda do AT, que remetia àquela maldição de Gênesis – que convida a uma
plenitude de vida: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Isto é, “mude a
orientação da tua existência; coloque como valor absoluto o bem do irmão; e
aceite a Boa Notícia da vida nova e plena”.
Enquanto anteriormente a
Quaresma era permeada de tons lúgubre, agora o tempo quaresmal se torna um
convite a um itinerário e a uma plenitude de vida e de felicidade, porque o
evangelho, se acolhido no interior do coração humano faz florir na pessoa todo
o significado de uma vida feliz e plena.
Antes, com a formula da
maldição de Gn 3,19, o acento recaia sobre as práticas da penitência, da
mortificação e do sacrifício. Agora, enfatizam-se as palavras de vida que o
próprio Jesus nos dá. E, se perscrutarmos ainda mais à vida de Jesus, se dela
fizermos um exame, não encontraremos nenhuma palavra que convide a
mortificação; Ele nunca ensinou ou propôs qualquer tipo de sacrifício ou de
penitência.
Ao contrário, Jesus ensinará
seus discípulos e discípulas a pedagogia da misericórdia: “Ide e aprendei o que
significa, “Misericórdia quero. Não sacrifício” (Mt 9,13). Os sacrifícios
davam, naquele contexto, a ideia do luto; a ideia do homem pecaminoso, sempre
culpado e necessitado de purificação. Jesus, ao contrário, propõe Misericórdia,
acolhimento de seu amor e a sua comunicação aos outros. No vocabulário e na
vida de Jesus não vemos nenhuma defesa destas práticas.
Tomemos contato com um certo
Paulo de Tarso, que, conforme sua autobiografia, foi um fariseu ferrenho.
Depois de reorientado em sua vocação para Cristo, escreveu à comunidade dos
Colossenses, exortando o seguinte: “Ninguém vos condene por questões de bebida
ou comida, de festas ou lua nova de sábados. Ninguém, a pretexto de humildade
ou culto aos anjos vos impeça de alcançar a vitória. Esses preceitos parecem
ter algo de sabedoria porque aparentam religiosidade, humildade e severidade
para com o corpo, mas não possuem nenhum valor contra a autossuficiência da
carne” (Col 2,16-20). Ou seja, todos estes ensinamentos pseudos espirituais não
só impediam o homem de se aproximar do Senhor, como também afastavam Dele.
Segundo Paulo eles não possuem nenhum valor, senão a satisfação do próprio EU.
Os ensinamentos sobre
penitência, mortificação e sacrifícios são centrados na própria pessoa, fazendo
com que ela se centre sobre si mesmo. E não há nada mais perigoso que uma
pessoa centrada e curvada sobre si mesma que, buscando uma perfeição ideal –
tão ilusória e distante do Evangelho de Jesus – acaba por tornar-se egoísta e
gananciosa.
Jesus não convida a esta
perfeição espiritual, mas à entrega e o dom de si de modo imediato e concreto,
quanto mais imediato e concreto for a capacidade de amar e doar-se aos outros!
Assim, a Quarta-feira de
cinzas não nos remete à sexta-feira da paixão, mas à manhã do Domingo de
Páscoa, o Dia da Ressurreição. Nesse sentido, o tempo quaresmal não pode ser
outra coisa que um itinerário de vivificação. Eis o significado concreto da cinzas
que se espalham sobre a cabeça dos fieis. Uma oportunidade de vivificação.
No inverno rigoroso do
hemisfério norte as cinzas são armazenadas para, com o término da estação fria,
ser espalhada sobre o solo, nos campos, porque elas contém nutrientes que enriquecem
e nutrem a terra para que ela germine, floresça e frutifique. Assim, com a
imposição das cinzas sobre os fieis, se faz o convite a acolher o Evangelho
como aquela força de vida e realidade transformadora que permite ao homem fazer
florir todas as suas potencialidades e as suas possibilidades e capacidade de
amar.
O tempo quaresmal é o caminho
que permite ao homem descobrir todas as suas novas possibilidades e capacidade
jamais vistas e expressadas anteriormente de perdoar e amar; de partilha generosa;
da liberdade que emerge na pessoa de colocar-se ao serviço dos irmãos. O tempo
favorável, “o dia da salvação” dito por Paulo à comunidade de Corinto em 2Cor
5,6, portanto, é todo o tempo da ressurreição de Jesus em diante e deve ser
vivido todos os dias, como um “hoje” contínuo. Especificamente, a Igreja propõe
a Quaresma como expressão desse tempo, como oportunidade privilegiada para cada
pessoa viver a reconciliação, acolhendo o perdão de Deus e construindo relações
fraternas e solidárias com o próximo, segundo o amor com o qual Cristo mesmo
nos amou (CORNÉLIO, F, Roteiros Homiléticos in. https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/quarta-feira-de-cinzas).
Quando isso acontecer, então a
páscoa será diferente, porque tendo alcançado aquela qualidade de amar teremos
feito a experiência daquele que é chamado de O Vivente - O Ressuscitado.
Boa Quaresma.
Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.
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