quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

QUARESMA, TEMPO (favorável) de VIVIFICAÇÃO E NÃO MORTIFICAÇÃO:








Nós sabemos que uma festa não pode ser bem-sucedida, se não for preparada com esmero. Aproximadamente 200 anos d.C., os cristãos, desejosos de saborear em plenitude os frutos espirituais da Páscoa, introduziram o costume de celebrá-la, precedendo-a por três dias dedicados à oração, à meditação e ao jejum, como sinal de luto pela morte de Cristo.

Esta grande solenidade, porém, não somente devia ser preparada, como também precisava encontrar uma forma de prolongar a alegria e a riqueza espiritual. Foram instituídas então as “sete semanas” pós páscoa, isto é, os cinquenta dias de Pentecostes que deviam ser celebrados com grande alegria, porque, como dizia um famoso bispo daqueles tempos, chamado Irineu, “constituem como que um único dia de festa, com a mesma importância do domingo”. Durante ‘os dias de Pentecostes’ rezava-se de pé, era proibido jejuar, e se administrava o batismo. Na prática, era como se ‘o dia da Páscoa’ tivesse a duração de cinquenta dias.

Passaram-se mais 150 anos, e por volta do ano 350 d.C. os cristãos, percebendo que os três dias de preparação eram demasiadamente poucos, os aumentaram para quarenta... Surgia assim a ‘Quadragésima’, que em português é a ‘Quaresma’, explica o biblista Fernando Armelini.

Outro biblista, Alberto Maggi, sacerdote italiano, convida-nos a entendermos bem o sentido profundo da Quaresma não como mortificação, mas como tempo favorável para preparar a nossa vivificação. Com o rito da imposição das Cinzas inicia-se o tempo da Quaresma. Para entendermos bem o significado deste tempo litúrgico e especial para a nossa vida de fé, propomos uma nova leitura deste tempo litúrgico após o Concílio.

Antes do Concílio, o rito de imposição das cinzas vinha acompanhado da formula litúrgica retirada do Livro do Gênesis: “Lembra-te que és pó, e ao pó retornarás” (Gn 3,19). Se, por um lado o ambiente proposto pelo tempo quaresmal revestia-se em tons de tristeza, e lúgubre, por outro, a liturgia que fazia uso da formula do terceiro capítulo do livro do Gênesis, relembrava aquela maldição dita por Deus ao homem por conta de seu pecado. A quaresma era vista, então, como um período de mortificação, penitência e de sacrifício.

Hoje, a liturgia pós-conciliar, na imposição das cinzas, apresenta uma expressão evangélica – e não provinda do AT, que remetia àquela maldição de Gênesis – que convida a uma plenitude de vida: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. Isto é, “mude a orientação da tua existência; coloque como valor absoluto o bem do irmão; e aceite a Boa Notícia da vida nova e plena”.

Enquanto anteriormente a Quaresma era permeada de tons lúgubre, agora o tempo quaresmal se torna um convite a um itinerário e a uma plenitude de vida e de felicidade, porque o evangelho, se acolhido no interior do coração humano faz florir na pessoa todo o significado de uma vida feliz e plena.

Antes, com a formula da maldição de Gn 3,19, o acento recaia sobre as práticas da penitência, da mortificação e do sacrifício. Agora, enfatizam-se as palavras de vida que o próprio Jesus nos dá. E, se perscrutarmos ainda mais à vida de Jesus, se dela fizermos um exame, não encontraremos nenhuma palavra que convide a mortificação; Ele nunca ensinou ou propôs qualquer tipo de sacrifício ou de penitência.

Ao contrário, Jesus ensinará seus discípulos e discípulas a pedagogia da misericórdia: “Ide e aprendei o que significa, “Misericórdia quero. Não sacrifício” (Mt 9,13). Os sacrifícios davam, naquele contexto, a ideia do luto; a ideia do homem pecaminoso, sempre culpado e necessitado de purificação. Jesus, ao contrário, propõe Misericórdia, acolhimento de seu amor e a sua comunicação aos outros. No vocabulário e na vida de Jesus não vemos nenhuma defesa destas práticas.

Tomemos contato com um certo Paulo de Tarso, que, conforme sua autobiografia, foi um fariseu ferrenho. Depois de reorientado em sua vocação para Cristo, escreveu à comunidade dos Colossenses, exortando o seguinte: “Ninguém vos condene por questões de bebida ou comida, de festas ou lua nova de sábados. Ninguém, a pretexto de humildade ou culto aos anjos vos impeça de alcançar a vitória. Esses preceitos parecem ter algo de sabedoria porque aparentam religiosidade, humildade e severidade para com o corpo, mas não possuem nenhum valor contra a autossuficiência da carne” (Col 2,16-20). Ou seja, todos estes ensinamentos pseudos espirituais não só impediam o homem de se aproximar do Senhor, como também afastavam Dele. Segundo Paulo eles não possuem nenhum valor, senão a satisfação do próprio EU.

Os ensinamentos sobre penitência, mortificação e sacrifícios são centrados na própria pessoa, fazendo com que ela se centre sobre si mesmo. E não há nada mais perigoso que uma pessoa centrada e curvada sobre si mesma que, buscando uma perfeição ideal – tão ilusória e distante do Evangelho de Jesus – acaba por tornar-se egoísta e gananciosa.

Jesus não convida a esta perfeição espiritual, mas à entrega e o dom de si de modo imediato e concreto, quanto mais imediato e concreto for a capacidade de amar e doar-se aos outros!

Assim, a Quarta-feira de cinzas não nos remete à sexta-feira da paixão, mas à manhã do Domingo de Páscoa, o Dia da Ressurreição. Nesse sentido, o tempo quaresmal não pode ser outra coisa que um itinerário de vivificação. Eis o significado concreto da cinzas que se espalham sobre a cabeça dos fieis. Uma oportunidade de vivificação.

No inverno rigoroso do hemisfério norte as cinzas são armazenadas para, com o término da estação fria, ser espalhada sobre o solo, nos campos, porque elas contém nutrientes que enriquecem e nutrem a terra para que ela germine, floresça e frutifique. Assim, com a imposição das cinzas sobre os fieis, se faz o convite a acolher o Evangelho como aquela força de vida e realidade transformadora que permite ao homem fazer florir todas as suas potencialidades e as suas possibilidades e capacidade de amar.

O tempo quaresmal é o caminho que permite ao homem descobrir todas as suas novas possibilidades e capacidade jamais vistas e expressadas anteriormente de perdoar e amar; de partilha generosa; da liberdade que emerge na pessoa de colocar-se ao serviço dos irmãos. O tempo favorável, “o dia da salvação” dito por Paulo à comunidade de Corinto em 2Cor 5,6, portanto, é todo o tempo da ressurreição de Jesus em diante e deve ser vivido todos os dias, como um “hoje” contínuo. Especificamente, a Igreja propõe a Quaresma como expressão desse tempo, como oportunidade privilegiada para cada pessoa viver a reconciliação, acolhendo o perdão de Deus e construindo relações fraternas e solidárias com o próximo, segundo o amor com o qual Cristo mesmo nos amou (CORNÉLIO, F, Roteiros Homiléticos in. https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/quarta-feira-de-cinzas).

Quando isso acontecer, então a páscoa será diferente, porque tendo alcançado aquela qualidade de amar teremos feito a experiência daquele que é chamado de O Vivente - O Ressuscitado.

Boa Quaresma.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário