sexta-feira, 27 de março de 2020

LITURGIA - Artigo de CESARE GIRAUDO SJ - Reforma Liturgica:



 A REFORMA LITURGICA na Igreja Latina antes e depois do Vaticano II - CESARE GIRAUDO SJ.


(Tradução: Pe. João Paulo Góes Sillio, presbítero da Arquidiocese de Botucatu – SP; bacharel em teologia pela FAJE – BH)

Introdução.

Todos sabem que a reforma litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II realizou uma verdadeira renovação no modo de celebrar; mas poucos são, hoje, capazes de compreender a magnitude, ou porque, nascidos depois dos anos sessenta, não conhecem a realidade anterior, ou porque, polarizados no presente, não sabem fazer memória.

Tentaremos, por alguns momentos, relembrar esse passado, cronologicamente não muito distante, no entanto longínquo, se mensurado com a fita métrica da mudança de sensibilidade. Esta simples evocação permitirá, ao contrário, evidenciar os traços salientes da reforma litúrgica e os riscos da superficial compreensão corrente.

 1. Um olhar para a liturgia antes do Concílio.

Imaginemos adentrarmos, durante a celebração da missa, numa igreja (não importa se da cidade ou do campo), num domingo comum, coloquemo-nos na metade dos anos cinquenta, quarenta ou também trinta.  A fisionomia celebratíva destas décadas é sempre a mesma, nem diferindo substancialmente daquele inteiro milênio, do qual pertencem.

Notamos imediatamente que os fiéis se dispunham todos na nave, que uma barreira, munida de portões quase sempre fechados, separa-os do espaço reservado ao sacerdote. Além daquela barreira, denominada balaustra, no espaço que chamam de presbitério, durante a ação, os leigos não podem andar, sobretudo as mulheres. Exceto o clero em miniatura que são os coroinhas.


Os fiéis acabam rigorosamente divididos em grupos, por idade e por sexo. A cada um deles, respeitando uma prática comprovada, é oferecido um espaço específico. No primeiro banco se notam os pequenos: de um lado os meninos, de outro as meninas. Atrás deles estão os maiores: rapazes daqui e moças de lá. Mais atrás tomam lugar as mulheres, numerosas. Contudo, desde o tempo de São Paulo (cf. At 16,13), se sabe que eram as mulheres a dar corpo à assembleia litúrgica, talvez porque fossem instintivamente mais religiosas. Todos permanecem quase sempre ajoelhados; sentando-se somente para escutar a pregação. Também a comunhão é recebida de joelhos, distribuída da balaustra quer seja antes ou depois da missa - só excepcionalmente em solenidades era distribuída durante a missa.

“Mas e os homens, onde estão os homens?” perguntamos. Levantamos mais o olhar e os veremos no fundo da igreja, apoiados à porta ou encostados nas paredes. De fato, os homens estão habituados a perscrutarem o altar de longe. A cadeira do celebrante tampouco a veem, porque nunca se lhes dissera ser importante. E então, mesmo que exista de fato, o padre nunca se senta sobre ela. No entanto, os homens não são numerosos. Nós os vimos entrando, principalmente atrasados. Eles estão lá, no limiar da igreja, um pouco entediados, de pé, prontos para sair, prontos para obedecer ao padre assim que ele diz "Ite, missa est". "Ite" significa "andar/caminhar": este latim eles compreendem bem. Para dizer a verdade, há também outro pequeno grupo de homens na igreja, mas não conseguimos vê-los, porque tomaram seus lugares no coro, isto é, atrás da parede do altar monumental, de onde pouco escutam e nada veem.  

O que fazem os fiéis? Quando tem que cantar, cantam. Se a missa é cantada em gregoriano, todos cantam, com impulso, aquelas vocalizações que estão na memória. Às vezes, na ocorrência das solenidades, são forçados a ficar calados, a fim de que intervenha o coral, quem sabe, da paróquia vizinha, com grandiosas páginas e muitas vozes. Quando não se canta, as pessoas mais simples rezam o rosário. Àqueles mais progredidos nos caminhos do espírito se aconselham relacionar cada momento da missa com tantos outros momentos da paixão do Senhor. Para designar estes gêneros de missa meditada, alguns falam de "missa dramática", outros de "missa alegorística", outros ainda de "missa pintada", uma vez que nos livros de devoção, a explicação é facilitada por desenhos específicos que conectam os momentos individuais da missa a tantos momentos da paixão.

O sacerdote, diante do altar, dando as costas aos fiéis, "diz" a missa, em latim, no mais com um tom de voz submisso, que não atinge nem mesmo os ouvidos do coroinha da vez, ajoelhado a pouca distância. Os gestos do celebrante são calculados, medidos. Quando diz "Dominus vobiscum", abre os braços e rapidamente os fecha; quando abençoa, as vezes parece que corta o espaço, com a mão num angulo cortante.

A missa é regida com uma normativa precisa, que cada sacerdote conhece com perfeição.  Todos celebram do mesmo modo. Não existe espaço para invencionices, para a fantasia ou improviso. Os padres nem sonham em poder fazer uma mudança, mesmo que mínima, no que é estabelecido. Todos foram treinados nos mesmos manuais de rubrica, ou seja, aqueles que continham o regulamento da celebração. Ninguém estudou liturgia, porque liturgia não é [naquela época, anterior ao Vaticano II] uma ciência.

Aos futuros sacerdotes se repete que a liturgia é uma arte prática, a se aprender bem por qualquer um que a saiba, para depois fazer, exatamente, como ele faz. De fato, os clérigos do último ano (formativo), nos quinze dias que precedem a ordenação sacerdotal, seguem a um pequeno aprendizado, que alguns chamam de curso de liturgia, no qual aprendem a "dizer" a missa. O sacerdote que estamos observando está totalmente habituado a fazer o que fazem eles: lê as leituras, obviamente em latim; prega em latim; canta com voz firme, porque conhece bem a melodia; então, traça tantos sinais da cruz.

Não é necessário divulgar mais detalhes. Aqueles que evocamos bastam para se fazer uma ideia bastante precisa de como os sacerdotes "diziam" a missa e de como os fiéis "escutavam-na". Trata-se de expressões assaz comuns, ainda atestadas na linguagem falada. Enquanto ao sacerdote era confiado, conforme o caso, às locuções "dizer a missa" ou "cantar a missa", a dos fiéis era descrita por uma colorida rosa de expressões, tais como "escutar a missa", "ouvir a missa", "estar na missa", “assistir a missa", "tomar missa", "tomar um pedaço da missa". No entanto, é necessário reconhecer que o sacerdote dizia a missa com grande devoção e os cristãos escutavam-na com sincera piedade. A fé dos nossos antepassados é nutrida assim desde mil anos. Embora ao recordar essa prática deles possa nos fazer esboçar um sorriso, isso não diminui a admiração e a veneração que devemos ter por aqueles que nos transmitiram a fé.

Feito estes esclarecimentos necessários, podemos destacar as sérias limitações desse modo de celebrar. O primeiro consistia no hiper-protagonismo do celebrante e na consequente passividade imposta aos fiéis. Dada a ordem ritual e a recepção indiscutível que a credenciava, a lacuna entre os papéis não era de forma alguma preenchida. A separação do presbitério da nave confirmou-a como evidência física. O segundo limite era representado pelo uso exclusivo da língua latina, bem conhecida pelos padres e, em graus variados, até mesmo pelas pessoas instruídas, mas implacavelmente repleta de mistério para a maioria das pessoas. O terceiro limite estava ligado à aplicação escrupulosa e quase mecânica das rubricas; parecia a batuta tranquilizadora sobre a qual repousava a falta de formação litúrgica do clero. Essa adesão incondicional à legislação vinculativa e meticulosa fez da práxis celebrativa uma liturgia de ferro.

As coisas não podiam continuar assim. Aqueles liturgistas e pastores esclarecidos que deram origem ao movimento litúrgico do século XX estavam convencidos disso. Ao encontrar, no caminho, pedras reais, representadas por uma adesão acrítica à prática, por um apego visceral ao que sempre havia sido feito, pelo medo do novo, graças a um paciente compromisso de pesquisa e reflexão, eles foram capazes de preparar o terreno para a praxis, na qual cresceu e floresceu a reforma litúrgica, de que hoje desfrutamos. Limitamo-nos a citar alguns grandes nomes: na França, Prosper Guéranger († 1875); na Bélgica, Lambert Beauduin († 1960); na Alemanha, Odo Casel († 1948) e Romano Guardini († 1968); na Áustria, Pius Parsch († 1954) e Josef Andreas Jungmann († 1975); na Itália, Ildefonso Schuster († 1954), agora beato, Emanuele Caronti († 1966), Mario Righetti († 1975), Giacomo Lercaro († 1976), e muitos outros.

Insatisfeitos com as tradições (com “t” minúsculo) às quais se apegaram, descobriram que elas correspondiam apenas à práxis enraizada no segundo milênio, mas divergiam consideravelmente da Tradição (com "T" maiúsculo) que, moldada no ensinamento dos padres da igreja, havia governado as celebrações no primeiro milênio.

Naquela época, as coisas não eram assim. Então os fiéis participaram ativamente da missa. Então - por assim dizer - eles "celebraram" a missa com seu sacerdote: ele na força do sacerdócio ordenado, eles na força do sacerdócio batismal comum. Por exemplo, São João Crisóstomo dizia: "O padre não celebra a Eucaristia sozinho (oudé eucharistéi monôs), mas todo o povo celebra com ele. Por isso, não se lança tudo sobre o sacerdote” (João Crisóstomo, Homilia XVIII da 2 Cor, em Patrologia Grega 61, 527).

Os fiéis compreendiam tudo: o que se lia nas leituras, o que o padre dizia nas orações; especialmente na oração eucarística: era a oração de todos e a oração por todos. Na época de Agostinho, o Amém das pessoas que se seguia à doxologia final foi reconhecido como valor de uma assinatura que, por si só, confirma e sela o documento escrito anteriormente (Cf. AGOSTINO, Sermo “Hoc quod videtis”, in Patro.Latina 46, 835-836). Na época de Jerônimo, o Amém ribombou nas igrejas de Roma como trovão do céu. Os fiéis aprovavam com entusiasmo, porque captavam bem o que o presidente da assembleia havia dito a Deus Pai, em nome deles (Cf. Jerônimo, In epistolam ad Galatas 2,3, in Patro.Latina 26, 355).

Foram precisamente os estudos desses grandes liturgistas, que gradualmente sensibilizaram a Igreja, a ponto de trazê-la, primeiro, de modo degustativo, para a reforma da vigília pascal em 1951 e de toda a Semana Santa em 1955, depois para a grande reforma litúrgica da Igreja, no Concílio Vaticano II.

2. A constituição Sacrossanctum Concilium e a reforma litúrgica.

Não é possível resumir em poucas linhas, aquilo que representa a constituição Sacrossanctum Concilium para a igreja, hoje. Ela, sem dúvida, descortinou horizontes velados. Ele lembrou-nos, por exemplo, que "a liturgia é o ponto culminante para o qual a ação da Igreja tende e, ao mesmo tempo, a fonte da qual emana toda a sua força" (SC 10). Ele enfatizou, em várias ocasiões, a necessidade de todos os fiéis serem formados "para a participação plena, consciente e ativa nas celebrações litúrgicas, exigida pela própria natureza da liturgia" (SC 14; cf 11.19.21.27.30.41.48.49.50.79.113.114.121).

Para iniciar esse processo de renovação, a constituição reconheceu o estatuto de disciplina acadêmica para a Liturgia, estabelecendo que "nos seminários e nas casas religiosas, para os estudantes, a liturgia sagrada deve ser contada entre as matérias mais importantes e necessárias e, nas faculdades teológicas, entre as principais disciplinas" (SC 16). Preocupava-se sobretudo com a formação especial dos "que se destinam ao ensino da sagrada liturgia" (CS 15), que por sua vez deverão transmitir ao clero "uma formação espiritual de caráter litúrgico" (SC 17) e terão de ajudar os sacerdotes que já trabalham na vinha do Senhor "a penetrar cada vez mais no sentido do que fazem nas ações sagradas" (SC 18).  

A constituição então declarou claramente que "a santa Mãe Igreja deseja fazer uma reforma geral precisa da liturgia", reconsiderando "a ordem dos textos e dos ritos, de maneira que as realidades sagradas, por eles significados,  sejam expressadas mais claramente, e o povo cristão, na medida do possível, possa compreende-los mais facilmente e participar deles com uma celebração plena, ativa e comunitária" (SC 21).

Inculcou-nos que "a celebração comunitária, caracterizada pela presença e participação ativa dos fiéis", deve ser preferida "à celebração individual e quase privada, sobretudo a missa" (SC 27). Ela propôs o ministério não mais como sendo o protagonismo exasperado de um só, mas como uma estrutura articulada de funções, lembrando ao ministro que ele terá que se limitar "a realizar tudo e apenas o que, de acordo com a natureza do rito e das normas litúrgicas, estiver dentro de sua competência" (SC 28). Ela descartou que, na celebração, se dê preferência aos indivíduos e suas condições sociais [em detrimento a outros] (cf. SC 32).

Desejou-se expressamente nas celebrações sagradas, "uma leitura mais abundante, mais variada e mais bem escolhida das Escrituras Sagradas" (SC 35). Ela recomendou fortemente a homilia, como parte integrante da ação litúrgica, com o objetivo específico de apresentar "os mistérios da fé e as normas da vida cristã, retirando-os do texto sagrado" (SC 52). Restaurou "a oração comum, também chamada dos fiéis" (SC 53), "uma pérola - como Annibale Bugnini dirá mais adiante - que estava perdida e que agora havia sido encontrada em todo o seu esplendor (A. BUGNINI, La riforma liturgica (1948-1975), Ed. Liturgiche, Roma 1972, 400 / traduzido pelas editoras Paulus, Paulinas e Loyola, 2018).

Por sua vez, o desejo de abrir os tesouros da Bíblia se traduziu na preocupação de tornar sua proclamação compreensível, com base em uma descoberta que é tão simples quanto corajosa. É o que diz n. 36: "O uso da língua latina, com exceção de direitos especiais, é
preservada nos ritos latinos. No entanto, dado que, tanto na missa como na administração dos sacramentos, e em outras partes da liturgia, o uso da língua vernácula pode, frequentemente, ser de grande utilidade para o povo, concedendo-lhe uma parte mais ampla, especialmente nas leituras e monições, em algumas orações e cânticos”. A questão da linguagem litúrgica volta no n. 54, que declara: “Nas missas celebradas com a participação do povo, uma justa parte pode ser concedida ao vernáculo, especialmente nas leituras e na oração dos fiéis... No entanto, é preciso ter cuidado para que os fiéis possam recitar e cantar juntos, também em língua Latina, as partes do ordinário da Missa que lhes pertencem”.

Além disso, a constituição recomendava "a mais perfeita participação na missa, na qual os fiéis ... recebam o corpo do senhor com o pão consagrado no mesmo sacrifício" e estabelecem que "sem prejuízo dos princípios dogmáticos estabelecidos pelo Concílio de Trento, a comunhão sob as duas espécies pode ser concedida a clérigos, religiosos e leigos" (SC 55). Mais ainda: nos devolveu a "concelebração, que apropriadamente manifesta a unidade do sacerdócio" (SC 57).

Na impossibilidade de ilustrar cada uma dessas muitas facetas, queremos nos debruçar sobre o que corretamente pode ser considerado a decisão básica da reforma litúrgica: a introdução da língua falada nas celebrações. Foi uma mudança histórica que, se foi recebida com entusiasmo por quem melhor entendeu seu significado e previu seus efeitos, não deixou de despertar apreensões, perturbar hábitos consolidados, despertar nostalgia profunda. Mas em que idioma devemos orar? Alguns já haviam perguntado isso em tempos distantes.

Os historiadores da liturgia nos informam que a questão da língua com a qual se deve voltar para Deus foi despertada pela primeira vez quando os irmãos Cirilo e Metódio foram forçados a se justificar diante dos prelados de Veneza. Isso aconteceu no ano de 867, durante sua viagem a Roma, com o objetivo de levar as relíquias de São Clemente ao Papa e obter dele o uso litúrgico da língua eslava. Assim, lemos no capítulo 16 da Biografia eslava de São Cirilo: “Enquanto ele estava em Veneza, bispos, presbíteros e monges se reuniram contra ele, como corvos contra um falcão, e levantaram a heresia das três línguas, dizendo: Ei, você: conte-nos, porque agora você compôs um alfabeto para os eslavos e os ensina, algo que ninguém antes inventou, nem os apóstolos, nem o papa de Roma, nem Gregório Magno, nem Jerônimo, nem Agostinho? Conhecemos apenas três idiomas nos quais é legítimo louvar a Deus: hebraico, grego e latim” (F. GRIVEC & F. TOMŠIĆ (ed.), Constantinus et Methodius Thessalonicenses. Fontes, Zagreb 1960, 205).

A imagem do falcão – o pássaro forte que não tem medo dos oponentes, o raptor seguro de suas presas – já antecipa que o vencedor será ele, Cirílo, frente a seus oponentes que não passam de corvos coaxantes. Seguindo a narrativa, ele responde, comparando a linguagem com a chuva que Deus faz cair igualmente sobre todos, o sol que brilha sobre todos igualmente (cf. Mt 5,45) e o ar que todos respiram. Desse modo, ele afirma que o uso litúrgico de sua própria língua é um direito para todos os povos que se defrontam com o Evangelho.

Podemos imaginar que alguns dos acusadores tenham sussurrado: "Não importa se entendemos o que é dito na liturgia: “basta ut intellegat Deus (basta que para Deus seja compreensível / basta que Deus entenda)". Aqueles que pensavam assim absolutizavam uma tradição, ou melhor, uma prática, como se essa fosse a única. Em termos concretos: absolutizaram o usus receptus (o costume recebido) de uma ou duas línguas, como se isso fosse verdadeiramente exclusivo. Os prelados de Veneza pensavam antes de tudo no latim, depois no grego. É duvidoso que eles também pensassem no siríaco, uma língua semítica semelhante ao hebraico.

Em suma: eles não tinham o senso de Tradição, aquele que desde o dia de Pentecostes havia inaugurado a pregação do Palavra de Deus – e, certamente também a liturgia – nas línguas dos povos. “A atitude dos dois irmãos de Tessalônica é representativa, na antiguidade cristã, de um estilo típico de muitas igrejas: a revelação é anunciada adequadamente e se torna totalmente compreensível quando Cristo fala a língua dos vários povos, e eles podem ler as Escrituras e cantar a liturgia na sua língua e com as expressões próprias, quase renovando as maravilhas de Pentecostes (JOÃO PAULO II, Orientale Lumen, n.7)”.

Em vez disso, para os santos irmãos Cirílo e Metódio, a questão da língua litúrgica não era de modo algum marginal: ela constituía um elemento indispensável da Tradição. No capítulo 18 da biografia eslava, lemos que Cirílo, moribundo ainda invocava: “...faça arruinar a heresia das três línguas!” (GRIVEC & TOMŠIĆ, Constantinus et Methodius, cit., 211).

Sete séculos depois, a questão da linguagem litúrgica voltou ao centro das atenções a partir dos reformadores, que exigiam que a Missa fosse necessariamente celebrada no vernáculo, para que todos pudessem entender. À pergunta “Missa nonnisi in lingua vulgari, quam omnes inteligant, celebrari debeat (A Eucaristia deve ser celebrada na língua comum que toda a assembleia compreenda?)”, o teólogo espanhol Francisco De Sanctis, perito no Concílio de Trento, em nome do bispo de Salamanca, respondeu: “... a missa não deve ser celebrada na língua vulgar, mas ou em latim, grego e hebraico, que são as três línguas escritas no letreiro da cruz, destinadas a difundir o Evangelho de Deus. De fato, na conversão da Gália e da Alemanha, há mil anos, a missa era sempre celebrada em latim, para “não jogar pérolas aos porcos” (cf. Mt 7,6), para não a revelar ao vulgar
a fim de não expô-la ao ridículo ... O Sumo Pontífice pode, no entanto, decidir o contrário, se considerar apropriado” (SOCIETAS GOERRESIANA, Concilium Tridentinum: Diariorum, Actorum, Epistularum, Tractatuum nova collectio, tomus 8, Actorum pars 5, Friburgi. 1919, 743-744).

Mesmo se não quisermos insistir nas razões que, segundo o teólogo De Sanctis, teriam induzido as Igrejas da Gália e da Alemanha a adotarem o uso exclusivo do latim para a missa, não podemos deixar de notar que, naquela época, a aristocracia do intelecto desprezava as massas, consideradas completamente incapazes de entender e, portanto, irremediavelmente condenadas à ignorância. Na boca do teólogo tridentino, a mesma citação do Evangelho, extrapolada do contexto original, certamente não soa apreciável para as necessidades e capacidades do “vulgar/comum”.

Comparada com a condenação dos prelados de Veneza, essa declaração representou um passo adiante. De fato, ao apelar para o argumento das três línguas, De Sanctis acrescentou que o papa poderia decidir de outra forma se considerasse apropriado. Por outro lado, é bom para o Papa de Roma – Adriano II - que Cirilo e Metódio tenham apelado, uma vez que com seus argumentos eles não poderiam violar seus oponentes irredutíveis.

A história atesta que Trento foi incapaz de aceitar a reivindicação dos reformadores e que o latim permaneceu a única língua litúrgica da Igreja Ocidental. Demorou quatro séculos, levou outro Concílio, porque o plano de falar com Deus na própria língua – um projeto finalmente despido de oposição controversa, e purificado de qualquer espírito de reivindicações ameaçadoras em vista da unidade da fé – foi concretizado. Foi exatamente isso que o Vaticano II fez com a constituição Sacrosanctum Concilium e com os documentos de trabalhos que a levaram à execução.

Hoje, estamos mais do que convencidos da necessidade que instou a Igreja de nosso tempo a retomar ao diálogo entre a assembleia e Deus, às profundas ressonâncias da linguagem de cada povo. Consequentemente, temos a impressão de que, a partir do histórico 7 de março de 1965 – data que inaugurou o uso do vernáculo na liturgia - aconteceu como que por mágica em todas as partes da celebração litúrgica. Tentando voltar às emoções intensas daqueles anos com nossa memória, parece impossível imaginar um curso diferente de eventos. Mas a memória irrefutável dos documentos nos convence de que, precisamente nesta área vital e delicada da vida da Igreja, o princípio da gradualidade foi escrupulosamente observado e dosado com destreza, como resulta dos três grandes documentos que marcaram o caminho da reforma litúrgica: a instrução Inter Oecumenici, de 29 de setembro de 1964, a Tres abhinc annos, de 4 de maio de 1967, e, por fim, a Eucharisticum Mysterium, de 25 de maio de 1967.


3. Quase cinquenta anos após o "Sacrosanctum Concilium": a situação da questão.

A reforma litúrgica é sem dúvida o primeiro e grande dom do Vaticano II, um dom do Espírito, não apenas para a Igreja romana, mas para as igrejas orientais e ocidentais, “(...) todas as igrejas cristãs são fundadas na única mensagem de Cristo e compartilham necessariamente uma herança comum. Portanto, não poucos princípios da Constituição Conciliar sobre a liturgia sagrada fornecem elementos universalmente válidos para as liturgias de todas as Igrejas, como também devem ser aplicados nas celebrações de Igrejas que não seguem o rito romano” (CONGREGAÇÃO PARA IGREJAS ORIENTAIS, instrução para a aplicação das prescrições litúrgicas do Código de Direito Canônico das Igrejas Orientais, n.4). Foi uma escolha providencial, cujo valor transparece das dicas rápidas que acabamos de fazer para alguns parágrafos da Sacrosanctum Concilium. Mas algo não funcionou, como denunciou – alguns anos atrás – pela voz autorizada de João Paulo II, que na encíclica Ecclesia de eucharistia, ao lado das “luzes” e das “grandes vantagens” trazidas pela reforma litúrgica, destacou a existência de “sombras” e até “abuso” (João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, 10).

Diante dessas falhas que nublaram e infelizmente continuam a nublar a liturgia, alguns escandalizados entram em crise e dizem: "Não há mais fé!". Outros acusam a reforma litúrgica e contrastam controversamente o Missal de Paulo VI com o Missal de Pio V. Outros pedem o retorno ao uso do latim como remédio seguro para as doenças da estação pós-conciliar. Outros gostariam de virar o altar contra a parede. Outros ainda veriam com prazer as balaustradas, mesmo em igrejas recém-construídas. Sonhos de nostalgia incurável, mas também espiões de um mal-estar litúrgico-pastoral, que não devem ser subestimados, mas sim interpretados.

Primeiro, mencionamos as vantagens que a reforma litúrgica trazia. Vamos agora nos debruçar sobre os inconvenientes que ocorreram, para nos estimular a refletir e alarmar a todos numa justa medida. Frequentemente, aqueles que sabem cantar de alguma maneira, cantam, talvez improvisando. Quem sabe tocar de alguma forma, toca, esquecendo que a música também tem suas necessidades de preparação. Novos instrumentos intervêm nas celebrações; uma verdadeira invasão. Enquanto isso, nossos preciosos órgãos dormem sob a poeira, de modo que quem quiser ver órgãos bem conservados e em uso, deve planejar uma viagem, por exemplo, aos países germânicos. As músicas em latim estão ostracizadas.

Frequentemente, em nossas igrejas, quem quer ler, lê como pode e, em seguida aos erros, a pontuação não é respeitada, a dicção é confusa. Ou se você perguntar ao aspirante a leitor "Você está acostumado a ler na igreja?", ele se ressente e imediatamente mostra seus títulos de estudo, como se o ministério do leitor não exigisse treinamento específico.

Costumeiramente, aqueles que têm que fazer a homilia, fazem-na à força e raramente fazem qualquer referência às leituras que acabamos de proclamar. Da mesma forma, aqueles que propõem as intenções das orações dos fiéis costumam estender a lista às experiências dos indivíduos ou das comunidades, evocando as situações mais díspares, independentemente da mensagem das leituras. Às vezes, por força da improvisação, chegamos a rezar a Deus Pai para obter o favor deste ou daquele santo.

Com frequência, aqueles que têm que proclamar a oração eucarística porque são presbíteros, tomam aleatoriamente, ou melhor, tomam o que todos escolhem, atraídos ainda mais por sua brevidade, do que por sua beleza. Não estamos falando daqueles padres que, às vezes e em alguns lugares, reivindicam o direito de usar orações eucarísticas loucas ou de compor, ali, o texto ou partes dele.

Frequentemente, aqueles que gostam de bater palmas, porque veem fazendo isso em comícios ou concertos, começam e soltam aplausos também na igreja e convidam outras pessoas a fazer o mesmo, com o consequente risco sério de não conseguir mais distinguir entre igreja e praça.

Em suma, passamos de uma estrutura rígida para uma estrutura livre. Mais precisamente: passamos de uma estrutura excessivamente rígida para uma estrutura excessivamente livre. Se antes havia fixidez, esclerose de formas, antinaturalidade, que tomavam a liturgia da época, na liturgia de hoje existe naturalidade e espontaneidade, sem dúvida sinceros, mas muitas vezes incompreendidos; mal-entendidos, que fazem – ou pelo menos arriscam – uma liturgia de borracha, escorregadia, que às vezes se expressa em uma libertação ostensiva de quaisquer regulamentos de rubrica.

Nesse caso, a falha não está na reforma, mas em sua aplicação, ou seja, em nossa incapacidade de entendê-la e valorizá-la. Evidentemente, a reforma foi feita no nível dos “textos” litúrgicos, mas ainda não penetrou suficientemente em nossas “cabeças”. Essa espontaneidade incompreendida, que é efetivamente identificada com improvisação, facilidade, folga, permissividade, é o novo Baal, o grande ídolo, diante do qual incontáveis agentes de pastorais, padres e leigos se curvam. É o culto prestado a esse novo ídolo que hoje desencadeia a reação – certamente injustificada, mas em parte compreensível – dos adversários da reforma litúrgica, que às vezes chegam a rejeitar a mesma expressão "reforma litúrgica" ou a invocar hoje “uma reforma da reforma”.

Imaginemos como os Padres da Igreja reagiriam – começando pelos apóstolos –, tão permeados pelo espírito da liturgia, se entrassem em uma de nossas igrejas enquanto celebramos, ou hoje, quase cinquenta anos depois do que a constituição conciliar queria e iniciou em relação à reforma litúrgica. O que eles diriam?

Vamos começar com São Paulo. Se ele entrar na igreja enquanto o leitor estiver lendo – e na verdade ninguém se importa, já que todo mundo está de olho no recado de domingo – podemos ter certeza de que ele iria imediatamente ao leitor e assumiria seu papel ministerial. Com a franqueza que conhecemos, ele censuraria os fiéis mais ou menos com estas palavras: "Por que você não escuta o leitor? Eu não disse em Rm 10,17 que “a fé vem da escuta” (fides ex auditu)? Uma vez que ele é o sinal sacramental da escuta litúrgica, junto com o livro em que ele lê e a palavra que anuncia?

Se Jerônimo, tão impregnado pelo sentido das Escrituras, vê um leitor completamente despreparado ou infantilizado no ambão, podemos ter certeza de que ele o interromperia, assim como Filipe fez com o eunuco da rainha, para perguntar: “Mas você entende o que você está lendo?” (At 8.30). Ao que o pobre leitor não pôde deixar de responder: “E como posso entender se o sacerdote – se meu pároco – não me disse que havia algo para entender?”.

Se Ambrósio ou Agostino entrassem em uma igreja enquanto a homilia estivesse sendo feita, eles notavelmente ficariam sobrecarregados por um desejo irreprimível de dizer ao homileta: “Por que essa linguagem etérea e devocional”, ou, por outro lado, “o que você sabe sobre análise sociológica? Por que você não explica as escrituras?

Além disso, Ambrósio, Agostino, Jerônimo, João Crisóstomo e, sem distinção, todos os outros Padres, observando a frequência excessiva das missas celebradas e multicelebradas, não poderiam deixar de dizer aos sacerdotes e aos fiéis de hoje: “Muitas missas, missas enfileiradas, uma depois da outra, como a Ave-Maria do rosário”. Em resumo: não deixariam de dar razão àquele bispo liturgista que, com uma expressão que ficou famosa, disse: “Menos missas, mais missa!”.

Além disso, podemos ter certeza de que, antes do movimento perturbado de fotógrafos, cinegrafistas, floristas e cenógrafos durante a liturgia, os Padres da Igreja, movidos pelo zelo pela casa de Deus, segurariam um feixe de cordas – assim como Jesus fez no templo –, e gritaria  para eles: “Este mercado, pelo amor de Deus, não o façam aqui!”.

Hoje, o perigo para a liturgia vem de dois lados opostos, igualmente insidioso: por um lado, facilidade, permissividade, “um sentido incompreendido de criatividade e adaptação”, que gera os abusos a que João Paulo II aludiu na encíclica Ecclesia de Eucaristia (n.52), e sobre os quais Bento XVI pronunciou com determinação, por outro lado, um retorno nostálgico, que às vezes ecoa o formalismo, às tradições com um "t" minúsculo. A tensão que abalou a reforma litúrgica nos últimos anos está precisamente entre uma liturgia de borracha, que alguns gostariam, e uma liturgia de ferro, que outros gostariam. Um errado, o outro errado: pois tudo em excesso.

No plano somático, somos o que somos, porque temos uma espinha dorsal, ou seja, uma estrutura que nos apoia e nos torna ativos. Nossa espinha dorsal não é de ferro nem de borracha. É de carne, é humana; possui uma consistência rígida quando necessária, mas, ao mesmo tempo, sabe como se adaptar admiravelmente às nossas necessidades de vida e de ação. Esse deve ser o caso da liturgia: sua espinha dorsal deve ser feita de carne, deve ser humana; deve saber compor harmoniosamente a fidelidade à Tradição e a adaptação às situações atuais de uma Igreja em constante evolução.

Não há como negar que os abusos estão lá. Eles não derivam da reforma litúrgica, mas da fraca recepção que muitos tiveram, e de sua consequente impermeabilidade prática, embora inconsciente, ao espírito da liturgia. Esses abusos não são corrigidos com repreensões. Eles se corrigem com a formação, a qual os Padres conciliares nunca se cansaram de recomendar: aprimoramento dos professores de liturgia, formação litúrgica dos jovens nos seminários e nas faculdades, formação contínua para todos, padres e leigos, o que ajuda a penetrar mais profundamente no espírito da Igreja em oração.


(CESARE GIRAUDO, pertence à Companhia de Jesus, foi ordenado presbítero em 1971. É mestre e doutor em Teologia sistemática, sendo este pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma com a defesa de sua tese sob o titulo “La struttura letteraria della preghiera eucarística. Saggio sulla genesi letteraria di uma forma”. Leciona no P.I.O (Pontifício Instituto Oriental, em Roma), na Faculdade de Teologia da Itália Meridional (Nápoles) e é membro ordinário da Pontifícia Academia de Teologia. Tem obras publicadas no Brasil, pela Loyola: “Num só corpo. Tratado mistagógico sobre a Eucaristia”; “Admiração Eucarística”; “Redescobrindo a Eucaristia”; “Confessar os pecados e confessar o Senhor”. Autor de diversos artigos na área da teologia sistemática, no campo da sacramentária e da Teologia da liturgia)

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