sábado, 21 de março de 2020

HOMILIA PARA O IV DOMINGO DA QUARESMA – Jo 9,1-41 (ou Jo 9,1.6-9.13-17.34-38, relato breve):




A liturgia quaresmal nos propõe, mais uma vez, a leitura de uma narrativa Quarto Evangelho, retirado do capítulo nono. É um capitulo denso, repleto de significado para a catequese do evangelista João, destinado à sua comunidade, bem como ao leitor-discípulo de seu evangelho pertencente às gerações subsequentes. Temos diante dos olhos uma perícope longa e, para sua compreensão podemos tomar a perspectivas do contexto do texto e das personagens, meditando alguns versículos centrais ao texto para tirarmos a pragmática, ou seja, a mensagem útil à comunidade e aos leitores-discípulos de Jesus no Quarto Evangelho.

O capítulo nono encontra-se na primeira parte do Evangelho segundo João, no assim chamado livro dos sinais. O Quarto Evangelho estrutura-se sobre dois blocos, o dos sinais, Jo 1,18 – 12,51, que tratam de introduzir o discípulo de Jesus no conhecimento acerca de sua identidade, vida, missão e obra. Eles servem para que o discípulo faça a sua opção por Jesus. Uma vez que o Evangelho de João é também chamado de evangelho da decisão. Somente quando o discípulo adere ao projeto de Jesus, conhecendo-o, sabendo por onde passa sua vida e sua missão, é que ele pode dar o passo para a contemplação da hora da Glória, preparada também pelos sinais. O segundo pilar sobre o qual o evangelho joanino está edificado é, portanto, o livro da Glória, Jo 13 – 20, que trata de preparar o leitor-discípulo de Jesus para a contemplação de sua glória, de seu enaltecimento, através da Hora da Cruz.

Em Jo 9 temos a narrativa de mais um sinal realizado por Jesus. É o sexto dos sete sinais que Ele realiza no Quarto Evangelho. O primeiro, foi a mudança da água em vinho – Jo 2,1-12; depois, a cura do funcionário real – Jo 4,46-54; o terceiro, a cura do enfermo (paralítico) de Betesda – Jo 5,1-18; a multiplicação dos pães – Jo 6,1-15, constitui o quarto sinal, juntamente com a caminhada sobre o mar – Jo 6,16-21, que ilustra o quinto sinal; seguindo a ordem, o sexto sinal, a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41; e, o sétimo, a ressurreição de Lázaro (reanimação) – Jo 11,1-44. Mas há quem prefira ver o sinal do pão e da caminhada sobre a água como um só, e nesta perspectiva, a multiplicação dos pães seria o quarto sinal, o que faria com que o episódio narrado hoje fosse o quinto, deixando como o sexto sinal, a ressurreição do irmão de Marta e Maria, para fazer coincidir o sétimo sinal com a ressurreição de Jesus, mas há muita discussão sobre isso.

Uma última consideração, antes de entrarmos no texto bíblico se faz necessária. Esta, na verdade, é uma fusão de horizontes. O capítulo nono do evangelho de João trata de unir dois tempos: o tempo narrado, ou seja, o sinal realizado por Jesus, curando o cego; e o tempo da comunidade Joanina, a qual está passando por um momento de crise histórica e de fé. Através deste relato, também se visualiza a situação da comunidade cristã frente ao judaísmo da época. O ex-cego torna-se símbolo tanto para o discípulo como para a comunidade joanina, que por professar a fé no messias Jesus, sofre a perseguição e expulsão dos meios judaicos, principalmente da sinagoga. A discussão entre o ex-cego e as autoridades judaicas, e a exclusão daquele por estes ilustram o que aconteceu em 90 d.C com a assembleia de Jãmnia, realizada pelos reformadores do judaísmo.

A partir desta fusão de horizontes somos chamados a conhecer as três personagens importantes da narrativa. O cego (que sofrerá uma mudança no decorrer da narrativa), Jesus e as autoridades do povo, os fariseus.

O cego, como todo enfermo, era tido como amaldiçoado, segundo a tradição de Israel. As enfermidades eram vistas como castigo oriundo de algum pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. Por isso os discípulos de Jesus perguntam-no sobre quem teria pecado, se o cego ou algum parente seu, no v.2. Jesus responde prontamente que ninguém havia pecado. Ele rompe com a ideia de que a doença seria um castigo do pecado, muito menos que existam pecados hereditários! Ainda sobre o tema da cegueira, esta enfermidade era tida como a pior das maldiçoes, pois privava a pessoa de ter acesso à leitura da Palavra de Deus, contida na Lei. Além disso, todas as enfermidades na época de Jesus tornavam os seus portadores impossibilitados para a vida religiosa e social. Eram tidos como pecadores públicos e não podiam ser admitidos ao interior do templo, ficando nas portas da cidade e dos locais de culto, vivendo da mendicância, como este cego de hoje.

No entanto, o cego tem sua ambivalência simbólica. Ele, enquanto cego, simboliza os fariseus, isto é, as lideranças do povo judeu que estavam (ou faziam a opção de ficar) cegos diante de Jesus. A cegueira era mais dos chefes do povo. Eles relutam e recusam ver a Jesus como luz do mundo. Por isso, a alegoria do Pastor ideal contada por Jesus em Jo 10 é direcionada aos fariseus, que são criticados por não pastorear (acolher) como deveriam, uma vez que estavam expulsando de seus meios a gente simples e aqueles que seguiam a Jesus. Por isso, ele se autorrevela como pastor ideal, frente aos guias e pastores cegos que eram os fariseus, enquanto lideranças do povo. Mas também o cego se torna símbolo daquele que ainda não fez sua opção favorável por Jesus. Fica-se então compreendidas as duas personagens, o cego e os fariseus.

Mas como dissemos que o cego é uma personagem mutante, num ponto importante da narrativa, após a cura, ele vai assumindo a face do discípulo que está dando os passos na fé em Jesus. Ele acaba sendo uma figura do candidato à fé, que, ao interno da comunidade cristã vai dando os passos em direção do batismo, mas também é uma alusão ao fiel-discípulo que naquele período de crise e de risco de abandonar a fé por causa das perseguições e da exclusão dos meios judaicos (onde a sinagoga representava ainda a segurança social da pessoa, frente a um mundo romanamente globalizado). Este fiel-discípulo e leitor do Quarto Evangelho é convidado pela catequese do evangelista a recordar quem é a sua segurança: Jesus, a Luz do mundo. A Luz do mundo não pode ser mais um sistema excludente e promotor de marginalização e de morte, como eram a sociedade e a religião do tempo de Jesus, bem como a realidade histórica do tempo da comunidade cristã do evangelista João.

Somos convidados por fim, a nos determos em Jesus. O evangelista nos diz que ele estava passando, ou seja, em movimento. Mas, na verdade, ele estava em fuga, pois as lideranças dos judeus queriam apedrejá-lo devido ao seu ensinamento (cf. Jo 8). Mas ali, diante daquele cego, onde a vida era escassa, ele se detém e coloca-se a sanar suas necessidades. Jesus vê a necessidade do outro e age com solidariedade e compaixão. Os vv.2 e 3 que são omitidos no relato breve, devem ser bem compreendidos. A cegueira não é vontade de Deus e nem punição a possíveis pecados cometidos. Também não é a condição para que a glória de Deus se manifeste, como poderia ser interpretada sua afirmação no v. 3. Mas esta afirmação de Jesus deve ser entendida assim: onde a vida é escassa, quer dizer, onde a criação não encontrou sua plenitude, há, então, espaço para que a glória de Deus se manifeste sanando a deficiência.

O gesto de Jesus é carregado de simbologia e significado. Nos descreve o evangelista: “Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego, e disse-lhe: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé (que quer dizer: enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (vv. 6-7).

O gesto de cuspir no chão e fazer lama com a saliva é carregado de um forte simbolismo: o barro alude à criação, é a matéria prima do ser humano, conforme a mentalidade bíblica. De acordo com essa mesma mentalidade, a saliva é gerada pelo hálito, e esse é o sopro, o espírito. Com isso, o evangelista quer dizer que Jesus repete o gesto criador de Deus (cf. Gn 2,7), ou seja, aperfeiçoa a criação do Pai. O homem que até então vegetava, passou a viver de verdade a partir do encontro com Jesus que lhe deu vida. A ordem para o homem lavar-se na piscina de Siloé significa a participação e a responsabilidade humana na criação e na salvação. Deus não quer o ser humano passivo, mas participante ativo de sua obra. Como “luz do mundo” (v. 5), Jesus aponta o caminho e quem o segue encontra a luz, como o cego “voltou enxergando” da piscina ao cumprir a sua ordem. Quem segue a palavra de Jesus encontra luz e sentido para a vida. Ao ir à piscina, conforme a ordem de Jesus, o cego demonstrou adesão ao Evangelho; por isso, passou a enxergar (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).

Através deste sinal, o catequista e autor do Quarto Evangelho quer recuperar para sua comunidade em crise, a identidade de Jesus. E esse episódio foi a melhor oportunidade que João encontrou para retratar essa realidade, uma vez que “dar vista aos cegos” era um dos principais sinais messiânicos anunciados pelos profetas (cf. Is 29,18; 42,7). Jesus é o messias, ou seja, o Cristo e Luz do mundo.

Conforme fora dito anteriormente, aquele ex-cego, por ter aderido a Jesus e sua Palavra, acabou sendo marginalizado pela religião daquele tempo, a qual vivia uma falsa religiosidade. Mas Jesus supera mais uma vez. Ele se manifesta novamente, ao saber que o homem tinha sido expulso da sinagoga e vem ao seu encontro (v. 35). Embora a versão litúrgica afirme que Jesus “encontrou” o homem, a tradução correta seria “foi encontrá-lo” (v. 35), o que significa que Jesus foi procurá-lo. Como sempre, Jesus resgata o que a religião e a falsa e superficial religiosidade descartou. Os sistemas dominantes separam e Jesus junta; a religião do templo oprime e obscurantiza; ao passo que Jesus liberta e ilumina.

Diante deste texto belíssimo, que ainda fica muito por comentar, dada sua profundidade e rica simbologia, quem somos no horizonte desta narrativa: somos o cego, que ao longo do percurso da fé vai deixando sua cegueira porque se propõe a viver segundo a Palavra de Jesus? Ou somos ainda os fariseus que se recusam a acolher a novidade do Dom de Deus em Jesus, luz do mundo e no mundo? E nossas comunidades? Se elas também não promovem a vida e a liberdade do ser humano, estão distantes da proposta de Jesus.


Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

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