O
texto que a liturgia deste quarto domingo da páscoa nos propõe encontra-se em
Jo 10,27-30. O capítulo décimo do evangelho de João apresenta a temática do
Pastoreio (com destaque para a alegoria do Pastor Exemplar, ou “Belo Pastor”,
dos vv.11-18). Este tema era muito presente na vida de Israel. A imagem do pastor/pastoreio
e do rebanho nutria a fé do povo de Deus. É importante, primeiramente, saber que
o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado ao povo. Já a imagem do pastor
era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer da história foi sendo atribuída
às lideranças do povo, os reis e sacerdotes, a alcunha de pastores (guias).
Mas, a história mostrou que esta função não foi desempenhada “segundo o coração de
Deus (cf. Ez 34)” pelas mesmas lideranças.
Tendo
compreendido um pouco do contexto do pastoreio/pastor, rebanho/ovelhas se faz
necessário adentrar no contexto próximo (lugar literário onde o texto está
situado) para entender o discurso de Jesus. Por isso, devemos voltar o olhar
para o capítulo nono, o sinal realizado por Jesus na cura do cego de nascença. O Sinal em Jo 9 consiste na revelação de Jesus
como sendo o enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz para o mundo. O cego de
nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual Jesus revela a Glória
de Deus, e metáfora para as lideranças do povo, as quais estavam cegas, optando
conscientemente em não querer ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de
Nazaré, e cegadas, igualmente pelo poder, pelos privilégios e pela mentalidade
mundana. Tal é corroborado pela postura destas lideranças judaicas. As
lideranças do povo, que deveriam cuidar, acolher, promover-lhes a vida e a
dignidade, acabavam expulsando do meio deles a gente simples do povo, aqueles
que representavam-lhes alguma ameaça, ou, porque, simplesmente viviam fora de
seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro do ex-cego (Jo 9,35-37).
Nesta
alegoria do Bom Pastor, o evangelista opera um contraste entre as lideranças do
povo, que agiam na contramão do projeto de Deus, e Jesus, que age segundo o
coração (de pastor) de Deus, mostrando-se um pastor exemplar, que realiza aquilo
que as lideranças do povo deveriam fazer, e não faziam.
O
contexto imediato do texto – onde a cena encontra-se situada – é o da festa da Dedicação.
É verdade que há uma mudança de cenário e de festa religiosa. O evangelista
situa Jesus nos arredores do templo, num clima de inverno, por ocasião da festa
da dedicação do templo. Embora não fosse tão frequentada como as três maiores
festas judaicas (páscoa, pentecostes e tendas), a festa da dedicação também
atraía um número considerável de peregrinos a Jerusalém. Essa festa foi
estabelecida por Judas Macabeu no ano 165 a.C., para celebrar a vitória dos
macabeus sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, já
que esse tinha sido profanado pelos gregos (cf. 1 Mc 4,36-59); desde então,
essa festa entrou no calendário judaico. Acontecia em Jerusalém e durava uma
semana; o texto profético utilizado na liturgia dessa festa era o capítulo 34
de Ezequiel, texto em que o profeta faz uma enfática denúncia aos maus pastores
de Israel. Esses apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo)
rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, de acordo com o profeta, Deus tomou a
iniciativa de destituir os maus pastores e cuidar ele mesmo do rebanho (cf. Ez
34,11) (cf. CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
Antes
de tomarmos os versículos em questão é importante recapitular, pelo menos, três
ditos de Jesus. O primeiro é o contido no v.7: “Amém, amém, eu vos digo: eu sou
a porta das ovelhas”. Jesus, após contar a parábola do redil das ovelhas, declara
ser ele mesmo a porta pela qual devem passar as ovelhas. Jesus quer dizer que
para pertencer ao rebanho (ser discípulo) e possuir a vida eterna, isto é, do
dom de Deus oferecido em Jesus é necessário primeiro passar (aderir) por Jesus.
Outro dito encontra-se no v.11, onde Jesus declara, “Eu sou o Bom (gr. Kalós / Belo
ou ideal) pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. Ora, só quem passa
pela porta que é Jesus pode ser do seu rebanho e viver do dom da vida que Ele
dá. E poderá assimilar também o ser pastor com-Jesus. Mas só se, primeiro,
passou por Jesus. Por fim, o terceiro dito é o que nos inserirá no horizonte do
texto: “Vós, porém, não me acreditais, porque não sois das minhas ovelhas” (Jo
10, 26). Jesus diz estas palavras aos lideres do judaísmo (fariseus e sacerdotes)
dada a recusa de aceitar a novidade escatológica da presença de Deus em Jesus, e
ser Ele o enviado de Deus. Contextualizado o texto de hoje, então podemos toma-lo
em sua inteireza.
No
v. 27, Jesus declara: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e
elas me seguem”. Ele indica aqui a condição para ser “ovelha” (discípulo) de
Jesus: ouvi-lo e segui-lo. Ao dizer as condições necessárias para ser discípulo
e, portanto, participar do redil, Jesus denuncia que os lideres do povo não
fazem parte de seu rebanho, porque não aceitam nem querem escutá-lo, tampouco
segui-lo. Escutar e seguir são dois verbos-chaves para a compreensão da mensagem
de Jesus. O verbo “escutar”, no ambiente bíblico, não significa simplesmente a
capacidade ou faculdade biológico-física da percepção de um som ou ruído, mas é
acima de tudo dar adesão completa àquele que fala, é deixar-se transformar e,
consequentemente, conduzir-se pelas suas palavras.
Acontece
que a atitude da escuta orienta para outra ação fundamental do discípulo, o
seguimento. O seguimento proposto por Jesus, como consequência da escuta,
significa seguir as mesmos caminhos dele, com liberdade e disposição. Os
interlocutores de Jesus não viviam a dinâmica do “escutar-seguir”; apegados aos
ritos e preceitos, tinham sido instruídos a obedecer e cumprir normas, apenas. Ao
invés de cumpridores de ordens, fazer parte das ovelhas de Jesus é ser
descobridores de estradas, buscadores de novos horizontes. O Deus pregado no
templo era um soberano que, através de seus representantes ditos pastores, a
casta sacerdotal, ditava normas do alto; apresentando-se como pastor, Jesus
revela que Deus age de maneira completamente diferente: caminha a frente, não
dá ordens, apenas aponta a direção; quem escuta a sua voz e o segue, torna-se
íntimo dele (cf. CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
No
v.28, Jesus garante que as suas ovelhas recebem o supremo dom que Ele pode doar,
a “vida eterna”, a garantia de que elas jamais se perderão ninguém poderá
tirá-las de suas mãos. O que seria esta vida eterna da qual fala Jesus? A vida
da era eterna é a vida que pertence ao âmbito de Deus. Não é continuação desta
mesma vida. Mas um dom superior em qualidade e em dinamicidade que está em Deus
mesmo. Todavia, ela não é um prêmio dado àquelas pessoas boas no futuro.
A
opção por Jesus e ao seu Evangelho simbolizada pela escuta da sua voz e o seu
seguimento, eterniza a vida. Não é uma vida para o pós-morte, mas é uma vida
tão plena, tão cheia de sentido e autêntica, a ponto de nem a morte poder destrui-la.
É a vida presente que se torna eterna à medida em que a pessoa se deixa
conduzir pela voz de Jesus. Ora, o próprio Jesus, mais adiante, afirmará que a
vida eterna consiste no conhecimento dele e do Pai (cf. Jo 17,2-3). Portanto,
quem ouve a sua voz lhe conhece e, por sua vez, conhece também o Pai, já que
Ele e o Pai são um (v. 30). Logo, vida eterna é a vida de todo homem e toda
mulher que escuta a voz de Jesus e abraça o seu seguimento. Tem-se, em Jesus, e,
a partir dele, a oportunidade de se viver uma vida em tons de eternidade, e,
portanto, ressuscitada, desde já!
“Meu
Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las
da mão do Pai. Eu e o Pai somos um” (29-30). Nestes dois versículos Jesus declara
que o que vale em relação ao Pai vale também em relação a Jesus: os dois
constituem uma realidade só (o evangelista usa o termo no gênero neutro). Esta
frase exprime solidariedade radical, mas não significa nem identidade de pessoa
nem igualdade de ordem entre Jesus e o Pai (cf. 14,28) (cf. KONINGS, 2005, p.
212).
Por
isso, Ninguém consegue arrancar as ovelhas da mão de Jesus (cf. v 28b) porque
tudo o que está em sua mão está também na mão do Pai. A mão, na linguagem
bíblica, é uma metáfora do poder protetor de Deus, da sua força e dos seus
cuidados paternais e maternos (cf. Os 11,3; Dt 33,3; Is 43,13; 49,2; Sl 31,6;
95,4; Sb 3,1; Dn 5,23) (cf. CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
Ora, o Belo Pastor do Quarto Evangelho não carrega ninguém ao colo. Pelo contrário,
ele sai ao encontro das ovelhas, convive com elas, existindo um conhecimento mútuo
entre eles; conduz e aponta caminhos! Da outra parte, os que aderem a Jesus,
assumindo a condição de ovelhas devem apresentar a característica da escuta e
manifesta-la através do seguimento a Jesus.
Por
isso, o evangelho de hoje nos questiona: 1) Somos verdadeiras ovelhas de Jesus?
2) Temos ouvido (aderido) à voz (evangelho e vida) de Jesus e, portanto,
seguido a exemplaridade da vida do Pastor Ideal?
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu-SP
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