sábado, 24 de julho de 2021

REFLEXÃO PARA O XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Jo 6,1-15:


 

Interrompemos a leitura do evangelho de Marcos que nos acompanha desde o início do ano litúrgico. Durante cinco domingos a liturgia nos conduzirá pela leitura e meditação do capítulo sexto do evangelho segundo João. A narrativa relata o quarto sinal realizado por Jesus, no evangelho joanino, a “multiplicação dos pães”, termo incorreto, como veremos a seguir. Antes, porém, se faz importante recordar a função do Sinal para a narrativa do Quarto Evangelho.

Os sinais são um indicativo que apontam para verdadeira identidade de Jesus; tem a função de despertar (ou iluminar) a fé das pessoas e, por fim, ser um meio pedagógico de levá-las a uma opção/decisão pró ou contra Jesus. Ainda sobre os sinais, importa lembrar que os três primeiros sinais narrados por João, a saber, as núpcias (messiânica) de Caná (Jo 2,1-11), a cura do filho do funcionário do rei (Jo 4,46-54), e a cura do enfermo de Bezata (Bethesda) possuem a função de despertar a fé do discípulo. O quarto sinal, além de mover a fé do discípulo-leitor, traz consigo a temática da decisão por Jesus, o que é narrado ao longo do capítulo sexto.

“Jesus foi para o outro lado do mar da Galiléia, também chamado de Tiberíades” (v.1). João situa o leitor-discípulo no espaço. Informa que a ação transcorre no outro lado da margem do mar da Galileia. Importante esta localização geográfica, porque ela mostra todo o imaginário judaico que funciona como pano de fundo da obra joanina. A expressão “outro lado da margem” sugere a travessia do mar vermelho, acenando para o contexto da libertação do povo hebreu da escravidão, no Egito. Uma recordação do Êxodo, evento fundante da história de Israel. O contexto do qual o evangelista se serve para a composição deste capítulo é o do livro do Êxodo: o tema do deserto, do mar, do monte, da páscoa, da tentação e, por fim, o tema do pão.

A narrativa continua, informando-nos que “Uma grande multidão o seguia, porque via os sinais que ele operava a favor dos doentes” (v.2). A terminologia que João usa “Ver os sinais” acena para uma dificuldade, a qual pode, também, tornar-se um risco: o discípulo permanecer apenas no nível material do sinal. Dito de outra maneira: procuram Jesus pelo o que realiza e não pelo que Ele é. É o indicativo de uma fé ainda superficial e inicial que deve ser ainda trabalhada.

O v.3 nos informa que Jesus, com seus discípulos, subiu o monte que circundava a margem do lago de Tiberíades, e ali sentou-se para ensinar. Pode ser que toda esta cena faça lembrar o ensinamento contido em Mt 5,1 – 7. Mas também acena para caráter sapiencial do ensino de Jesus, ou seja, antes de partilhar de um pão material, Jesus partilha seu ensinamento, o seu pão, a sua vida.

João situou-nos, acima, no espaço geográfico. Agora, no v.4, situa o leitor-discípulo no tempo, ao informar que “Estava próxima a pascoa dos judeus”. Conforme dito acima, o autor do Quarto Evangelho traz consigo todas as tradições judaicas como pano de fundo para sua obra, no intuito de ensinar à sua comunidade que estas tradições, a partir de Jesus, são superadas ou substituídas pela novidade que Ele próprio traz em si mesmo. O evangelista lembra, num parêntese, a proximidade da festa da Páscoa, comemoração do êxodo de Israel do Egito, quando Deus alimentou o povo no deserto. A festa é chamada, com um ar de ironia, “a Páscoa dos judeus” (v. 4). Aliás, Jesus não vai a Jerusalém para a festa. Talvez João queira apresentar uma “alternativa cristã” para rememorar as tradições da Páscoa e do Êxodo. Talvez possamos ver aqui o esquema teológico de João que consiste em substituir as instituições judaicas por Jesus (cf., p.ex.,2,6; 2,18-21).

Jesus se surpreende com a multidão. E faz uma pergunta auspiciosa aos discípulos, “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?” (v. 5). Na verdade, a pergunta soaria melhor “De onde vamos comprar pão...? Uma pergunta didática e teológica. Na teologia do Quarto Evangelho, a pergunta “de onde?” sempre evoca uma origem misteriosa, aquilo que vem do alto, de Deus (Jo 2,9; 3,8). Mas a resposta de Filipe também soa no nível do material. Ele não consegue, ainda, captar o ensinamento de Jesus. Está somente na superfície da Fé e dá uma resposta calculada, afirmando que nem duzentos dias de trabalho braçal seriam suficientes para dar conta de alimentar tanta gente. Uma moeda de prata (denário) equivalia a uma jornada de trabalho. De acordo com João, nem sequer bastaria. Assim, o evangelista aumenta discretamente o paradoxo.

Entra em cena o discípulo André, que apresenta um “menininho”, gente simples que ninguém dá atenção, voz ou vez. Este traz consigo cinco pães de cevada e dois peixinhos. Interessante o detalhe que João apresenta: cinco pães de cevada. Pão de cevada é o alimento da gente simples e pobre. Já os pães de trigo são os alimentos dos ricos. Aqui é importante prestar atenção na soma dos alimentos apresentados: cinco pães e dois peixes perfazem um total de sete. Sete, na teologia bíblica, corresponde à plenitude. O menininho, aquele que diante da sociedade e da comunidade pode ser considerado inferior, coloca plenamente a disposição de Deus e da mesma comunidade aquilo que ele tem de melhor. O menino também pode aludir ao profeta Eliseu, em 2Rs 4,42-44, que permitiu a uma tropa de cem homens famintos saciar-se com uns vinte pãezinhos de cevada, pães sagrados (“pães da proposição”). João quer ensinar para sua comunidade que Jesus é maior que Eliseu.

O menininho pode ser símbolo para o discípulo e para a comunidade cristã. Antes de tudo, para entrar na lógica do Reino é necessário fazer-se e reconhecer-se pequeno. Reino de Deus e grandeza são incompatíveis. Não importa a quantidade daquilo que se tem, mas a disposição de colocar a serviço do próximo.

Se por um lado, André lamentou que somente cinco pães e dois peixes não seriam suficientes. Por outro lado, Jesus age de modo diametralmente oposto: “tomou os pães e deu graças”, ou seja, agradeceu. O evangelista usa aqui o verbo grego eukaristêo (gr. ευχαριστεω), do qual provém a palavra Eucaristia, cujo significado é agradecimento/ação de graças. Ao invés de lamentar-se, Jesus agradeceu o pouco que tinha e, daí, veio a abundância. Neste gesto está a ressignificação do nosso olhar para o texto.

Jesus dá uma ordem aos discípulos, para que mandem sentar as pessoas (v.5). É importante o termo grego utilizado por João (homens; gr. ἀνθρώπους), o qual sofre variação durante a narrativa. Ao se sentarem na relva, ele muda o termo antrópous para ándres (gr. ἄνδρες), que significa o homem amadurecido, crescido e decidido. Ou seja, a eucaristia, para a qual o texto alude, é o alimento que encaminha a pessoa para a maturidade na relação com o Deus e Pai de Jesus e com o próprio Senhor. Mas, ao fim do relato, o autor do evangelho retoma o termo antrópous para revelar a dificuldade e a resistência das pessoas ao projeto de Jesus, quando elas manifestam o desejo de proclamá-lo rei. Não querem assumir a maturidade e a responsabilidade na vida. Preferem a submissão e obediência a uma figura humana, representada pela figura do rei. Acontece, que essa atitude reflete o pecado da idolatria. Para Jesus, isto é um pecado, porque ela consiste em substituir Deus por um ídolo, o qual tira a liberdade e a responsabilidade das pessoas. Deus, pelo contrário, é aquele que torna as pessoas livres, responsáveis e maduras.

Atitude paradigmática nos é relatada a seguir. Jesus mesmo é que sem põe a distribuir os pães. Ele dá o exemplo. Nesse sentido, o seu gesto não é um ato mágico. Mas uma atitude concreta. Por isso, é importante nomear este episódio como condivisão dos Pães. Ele recebe os cinco pães e os dois peixes e, simplesmente os distribui aos discípulos e às pessoas. Jesus não é um mago que profere palavras mágicas sobre os pães e os peixes, e, como consequência disto começa a brotar das cestas pães e peixes. Pelo contrário, é o gesto/atitude exemplar de Jesus que motivam os discípulos e a multidão à partilhar o que trazem consigo. Quando a comunidade partilha o que tem, o sinal do novo tempo acontece; ninguém passa privação e ainda não falta nada, pelo contrário, superabunda! É isso que se celebra na Eucaristia cristã (v. 23 e 51-58).

“Jesus disse aos discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!” Recolheram os pedações e encheram doze cestos com as sobras dos cinco pães, deixadas pelos que haviam comido” (v. 12-13). O número doze alude aqui às doze tribos de Israel, que constituem o antigo povo de Deus, mas também acena para o grupo dos Doze, a reconfiguração do Novo Israel. A quantidade recolhida, doze cestos, significa que, quando a partilha é praticada, tem alimento para todos. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma prática constante na comunidade. As soluções para seus problemas devem vir de dentro.

Nisto consiste a pragmática – a utilidade – do texto para a comunidade, revelar e mostrar que ela é a responsável por eliminar os sistemas de morte que pairam na história, representados pela fome, no texto de hoje. A fome foi e sempre será instrumento de dominação; utilizada pelas estruturas de poder para gerar dependência e controle nas pessoas. Mas ela é saciada quando até mesmo o pouco que se tem é colocado em comum, quando cada um considera aquilo que tem como dom de Deus e, por isso, põe-se a partilhar! O gesto de Jesus ensina que pessoas de corações agradecidos sabem colocar-se a disposição dos outros com o que possuem. Corações agradecidos sabem partilhar.

Ainda na ordem da narrativa, a multidão se equivoca duplamente: pensa que Jesus seria um profeta, pelos gestos e palavras realizados por ele; consideram-no apto para reinar sobre eles soberanamente. Neste sentido, que o evangelista usa novamente o termo homens (gr. ἀνθρώπους / antrópous), o homem imaturo e dominado. Que rejeita a condição de liberdade e responsabilidade que Deus, em Jesus, oferece. Que não consegue, ainda, dar o passo da fé genuína, permanecendo na superfície. Ficam na materialidade do sinal, apenas. Não se deixam iluminar por este, e, ainda não estão aptos para tomar a decisão pró Jesus.

Querem fazê-lo rei, salvador da pátria, para que ele resolva todos os problemas (v.15). Jesus não quer isso. Nesse sentido, retira-se para a montanha, sozinho, perto de Deus, a fim de discernir melhor sua missão e não permitir que ela seja mal compreendida. Somente quando o discípulo compreender que este gesto de Jesus é símbolo de sua vida condividida (entregue, dada ou partilhada), então compreenderá a intensidade do sinal da “condivisão dos pães”, e poderá realizar sua opção pró ou contra Jesus.

Algumas provocações. 1) No seguimento a Jesus, em que etapa nos encontramos, na materialidade superficial da Fé, provocada pelo simples “querer ver sinais”, ou nos encontramos entre os que já fizeram sua opção por Jesus? 2) Tenho a consciência de que os pães ou peixes que tenho contribuem para o crescimento da vida da comunidade, e se tornam os meios de resolução de seus problemas? 3) Quais pães, hoje, precisam ser colocados em comum, quer ao interno da comunidade cristã, quer na vida em sociedade?


Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

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