O evangelho proposto para a solenidade da Epifania do Senhor é
retirado da catequese mateana, Mt 2,1-12. O texto bíblico situa-se ao interno
das narrativas da infância de Jesus. O material literário que toca a infância
do Cristo não possui a finalidade de ser uma crônica exata dos acontecimentos e
dos fatos. A propósito, nenhum dos quatro evangelhos canônicos o são. Mas, narrativas das experiências das respectivas comunidades de fé em torno de Jesus
crucificado-ressuscitado, que tratam de confessar e proclamá-lo como Senhor e
Cristo à luz de todos os acontecimentos pascais, que iluminam toda a trajetória da Sua vida. Por isso, os evangelhos não são biografias
Dele, mas narrativas de uma experiência comunitária de fé. Portanto, são
teologias (cristologias, soteriologia) acerca de Jesus.
A narrativa proposta para a liturgia de hoje é uma teologia
narrativa elaborada por Mateus, a fim de transmitir uma mensagem para a sua
comunidade dos anos 80 d.C e para os discípulos de todos os tempos e lugares a
respeito de Jesus de Nazaré. O autor, através dos versículos de hoje, quer
responder para a comunidade quem é esse Jesus, pelo qual sofrem.
Mateus, ao escrever o seu Evangelho, serve-se de todo o patrimônio
religioso-histórico do povo de Israel. Assim, recordando os acontecimentos e as
personagens da tradição religiosa, as reinterpretará a partir de Jesus de
Nazaré, através da técnica do midrash – a reinterpretação dos textos legislativos
e narrativos da Torah. Para o evangelista, o Senhor assume e revive a história
e a tradição de seu povo com a seguinte finalidade: fazer crescer em sua
comunidade a convicção de Jesus de Nazaré é o Messias enviado por Deus.
O texto proposto para hoje enquadra-se naquele estilo dito acima e
nas intenções do evangelista. Para construir esta narrativa, Mateus se serve de um texto do Antigo
Testamento, a visita da rainha de Sabá ao sábio rei Salomão, o descendente de
Davi, em 1Rs 10 (// 2Cr 9). Ela se dirige à Judá para colocar a prova a
sabedoria do rei. A sabedoria de Deus, da qual Salomão compartilha atraia os estrangeiros. É uma forma de se dizer que esta mesma sabedoria não conhece
limites. Não tem fronteiras. Ela extrapola os muros de Judá e chega às nações. Exposto
este pano de fundo que sustenta a narrativa de hoje, pode-se mergulhar em seu
horizonte.
“Tendo
nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que
alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos
judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos
adorá-lo’”
(v. 1-2). Os dois primeiros versículos introduzem a narrativa no tempo e no
espaço. Mateus bebe da mesma tradição de Lucas e confirma o nascimento de
Jesus, em Belém, no período de Herodes Antípas (rei asmoneu, usurpador e
subserviente à Roma). Mas o que deve chamar a nossa atenção é a chegada de três
estrangeiros de profissão duvidosa, que já surpreendem os leitores do
evangelho, provocando certa inquietação. O evangelista usa o termo “mago” (gr.
μάγος). Estes, não eram bem vistos segundo a Lei de Israel. Deveriam ser
banidos do meio do povo, de acordo com a prescrição de Lv 19 e, também,
posteriormente no Talmud se lê que “aquele que aprende qualquer coisa
relacionado à magia deverá morrer”.
Os primeiros a receberem a boa notícia do nascimento de Jesus
Messias, no evangelho mateano – diferentemente de Lucas, que narra o anúncio do
anjo aos pastores – são os estrangeiros, que são pagãos e de profissão
duvidosa. O evangelista os identifica como forasteiros, estrangeiros, que, no
tempo da sociedade de Jesus, bem como na que se encontra inserida a comunidade
para qual escreve, não eram bem vistos. Eram pessoas a serem temidas.
Todavia, ao interno dos Evangelhos, são vistos sob perspectiva positiva,
pois são destinatários do projeto salvífico de Deus. Eles oferecem o testemunho
de uma boa noticia de salvação que se estende a todos. Há, aqui, a primeira lição importante a ser retida do texto. A salvação, que representa todo o
projeto de vida e benção que Deus oferece,
não é um privilégio exclusivo de Israel, mas inclusivo. É um convite destinado a todos,
sem distinção e restrição.
Contudo, diante da boa notícia, Herodes, o rei posto, se perturba.
“Ao saber disso, o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda a cidade de
Jerusalém” (v.3). Mateus acrescenta que também Jerusalém compartilha do mesmo
estado de ânimo. O rei e a cidade santa são símbolos do poder, da dominação, da
tirania. Se perturbam porque sentem-se ameaçados em sua zona de conforto. O evangelista, para colorir vivamente a cena
utiliza verbo “tarásso” (gr. ταράσσω), “ficou perturbado”. Utilizado muitas
vezes nas narrativas evangélicas para expressar a agitação das águas do mar. Ele quer dar a conhecer o
estado de ânimo das personagens: uma agitação interior incontrolável! Para, nesse
sentido, revelar como os líderes políticos e religiosos ficam quando percebem
sinais de mudança nas bases, com a possibilidade de perda de poder e
privilégios.
Acontece que esta salvação não reside em Jerusalém, centro do
poder religioso e político do povo. Consultando as elites religiosas
(v.4-5), experts nas Escrituras, obtém-se a informação sobre o lugar do
nascimento do novo rei: “E tu, Belém,
terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá,
porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo”
(v.6). Mateus se serve da profecia antiga de Miqueias. Em Belém. Fora de
Jerusalém, portanto. Ali não encontram o novo rei e sua luz. Só encontram a
falsidade, a tirania, o poder e as trevas.
Interessante. Mateus omite que a luz que havia guiado os
visitantes pagãos continuava brilhando sobre a cidade santa. Ali ela não se faz
ver. Ao contrário, somente quando eles se afastam de Jerusalém e da influência
de Herodes é que podem novamente contemplá-la. Os magos partem, pois, para
Belém. Em Jerusalém, naquele ambiente de trevas, corrupção, poder, falsidade e
tirania, eles não puderam fazer uma experiência autêntica de Deus.
“Quando
entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele,
e o adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro,
incenso e mirra” (v.11). O evangelista utiliza o verbo “adorar” (gr. προσκυνέω /
proskinêo). Verbo utilizado somente para a atitude do homem em relação à Deus.
Ele quer ensinar para a sua comunidade que os magos reconheceram no menino a
presença de Deus que os atraiu para lá. Assim, o catequista bíblico, aos servir-se
da técnica da reinterpretação dos textos antigos, na perspectiva de uma
continuidade histórica, opera uma superação. Na visita dos sábios do Oriente,
são eles (mestres das ciências, estudiosos dos astros e dos fenômenos), que se
deixam interpelar e se render pela sabedoria de Deus, presente e revelada
naquele pequeno recém-nascido. Este é o segundo ensinamento que narrativa nos
oferece.
Uma interpretação acerca dos presentes oferecidos. Os visitantes
apresentam ouro, incenso e mirra. Muitas vezes se romantizou demais a cena,
aludindo aos sofrimentos inerentes a vida de Jesus, à sua divindade e “realeza”.
Em suma, os presentes não querem aludir ao destino de Jesus. Eles simbolizam a
vocação que Israel não consegui responder, mas que o Cristo recapitula em si e
leva à realização, inclusive transmitindo-a para o novo Israel, a comunidade dos discípulos e das discípulas de Jesus. Vejamos: o ouro está ligado à realeza de Deus, e, na tradição de
Israel, o povo é chamado a se tornar um “povo de reis”. O incenso, é a oferta
que os sacerdotes ofereciam no templo; as Escrituras afirmam que Israel recebe
de YHWH o chamado para ser um “povo sacerdotal”. A mirra é um perfume utilizado
nas núpcias do casal; segundo a tradição profética, Israel é a esposa desposada
por Deus, o marido. De acordo com o evangelista, este projeto de “povo de reis,
sacerdotal, e esponsal” não pertence tão somente à Israel, mas, nos magos, que
trazem estas ofertas, encontra-se aberto a todas as nações. É uma proposta
dirigida a toda a humanidade através da manifestação que Deus realiza em Jesus.
“Avisados
em sonho para nãos voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra
seguindo outro caminho” (v. 12). Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um
encontro autêntico com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de
relacionar-se com Deus e com o próximo. A experiência autêntica com Deus,
portanto, provoca no ser humano a necessidade de percorrer novos caminhos, o
que pode ser compreendido como uma nova maneira de viver, com novas atitudes
parecidas com as de Jesus. Relações humanas sinceras, reconciliadas; relações de
justiça com a criação; relações equilibradas com as coisas; estruturas de vida
e de liberdade. Em simples palavras: viver como vive o Filho de Deus, sendo
Nele e através de Dele, filhos do Pai, e, portanto, e irmãos.
O evangelho da solenidade da Epifania aponta para três
ensinamentos importantes: 1) A salvação não é um privilégio exclusivo de
poucos, mas inclusivo para todos. 2) Saber reconhecer a sabedoria de Deus presente
no pequeno de Belém. Reconhecer-se pequeno, mesmo com tudo o que se sabe e com
tudo aquilo que se é, diante de Outro, maior que si. Ainda, aprender sobre Deus
– realizar uma experiência com Ele – também com os que são de fora; com os que
pensam e vivem de modo diverso. O outro que pensa e vive diferente de mim, não
é um inimigo a ser vencido, um oponente a ser derrotado, um adversário ou
“herege” a ser combatido. O outro é um irmão. E, comigo, chamado igualmente a
participar deste projeto de vida plena revelado integralmente a todos.
Indistintamente. 3) Assumir outro caminho, diferente do de Herodes, a conversão. Mudança daquela mentalidade equivocada do poder, do domínio, do privilégio, arrogância, autossuficiência, morte, para o sentido que a vida de Jesus aponta: amor, serviço, fraternidade, solidariedade e vida plena.
A manifestação de Deus revela quem Ele é a partir de Jesus, mas desvela, ao mesmo tempo, quem é o homem e a mulher, a pessoa humana diante do Deus de Jesus. Por isso, quem somos diante do texto? Herodes ou os magos? Onde estamos: envolvidos das trevas ou seguindo a luz?
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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