sábado, 20 de janeiro de 2024

III DOMINGO DO TEMPO COMUM (Ano B) - Mc 1,14-20:

 


O evangelho proposto para o terceiro domingo do tempo comum é retirado de Mc 1,14-20. Um dia de missão na vida de Jesus. O capítulo primeiro da catequese de Marcos apresenta, após a prisão de João Batista, o início do ministério público do Mestre. A partir do v.14, o autor começa a narrar a Sua atividade missionária, ambientando-a num só dia. Ele situa a narrativa no espaço: a Galiléia. Terra de ninguém; vista com maus olhos pelos judeus do sul.

“Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (v.14-15). Por três vezes, só neste primeiro capítulo, o termo Evangelho é utilizado pelo evangelista, e, por isso, merece atenção. No Novo Testamento, a categoria Evangelho significa Deus mesmo atuando na história, através da vida e das ações de Jesus. Esta Boa Nova consiste numa forma nova de revelar a Deus de se falar sobre Ele. Por isso, Marcos define o tempo em quem a boa-noticia é inaugurada como definitivo e pleno, isto é, um Kairós (gr. καιρὸς). O conteúdo desta boa notícia (Evangelho), neste tempo oportuno (Kairós) consiste no seguinte: “o Reino de Deus está próximo”. Literalmente, “se aproximou”, “chegou”. Dito de outra forma: chegou o tempo oportuno e favorável da ação libertadora de Deus na história, através deste Jesus.

Nos detenhamos um pouco sobre o conceito Reino de Deus. Na teologia e exegese bíblica atuais, o conceito Reino de Deus não pode ser resumido tão somente a um espaço. O Reino de Deus – ou Reinado – consiste no Seu agir; o Seu Senhorio manifestado na história através de seu enviado. Por isso, o Reinado de Deus é uma pessoa, Jesus, que revela o agir e o querer do Pai na história. Mas é sempre importante ter em mente o seguinte: por mais que o Reino seja a atuação de Deus através da vida e da missão de Jesus, existe uma ética, um ser/estar e agir enquanto consequência da adesão a Cristo. Esta ética se vive no mundo. Ainda que não encontre aqui o seu fim e sua plenitude.

A este agir e ser, o evangelista define como Conversão: “convertei-vos”. O autor usa aqui o verbo metânoeho (gr. μετανοέω). Conversão na tradição bíblica não se refere a uma simples mudança de rota ou direção. Tampouco é a conversão da qual falava o Batista, aquela religiosa e institucional. Trata-se de uma mudança de mentalidade. É uma atitude que brota da interioridade humana, que passa a delimitar o agir da pessoa. É o convite a viver a vida segundo a mentalidade, as opções e as escolhas inerentes ao projeto de Deus que vai se desvelando a partir da vida e da missão de Jesus.

A primeira conversão que a pessoa que foi chamada ao discipulado deve abraçar é aquela acerca da imagem equivocada de Deus que alimenta em si. Converter-se da imagem de um Deus carrasco, vingativo, punitivo, para a assimilação da imagem do Deus e Pai de Jesus, que é revelado como amor, misericórdia, perdão, doador de vida. Ora, Deus exerce seu senhorio (Reinado), não através de leis exteriores aos homens, mas comunicando-lhes Sua mesma capacidade de amar, de colocar-se ao lado dos pequenos, dos excluídos; de se abaixar, para servir o outro. Este anúncio deve gerar uma radical transformação no discípulo. Por isso, para se aderir de verdade à esta Boa Nova, se faz necessária a conversão.

“E, passando à beira do mar da Galileia, Jesus viu Simão e André, seu irmão, que lançavam a rede ao mar, pois eram pescadores” (v.16). Depois de mostrar o anúncio proclamado por Jesus, o evangelista o situa noutro lugar importante: às margens do Mar da Galileia. Na teologia de Marcos, o Mar da Galileia remonta a outro: aquele que o povo, no Êxodo, atravessou para viver livre da escravidão. Para o autor, Jesus será aquele que inaugurará o novo Êxodo para a humanidade que aderiu ao projeto de Deus.

Nas margens, Jesus encontra os pescadores. Símbolos de uma realidade e sociedade que promove marginalização. Também eles se encontram nesta situação. É com estes que Ele quer contar, enquanto colaboradores. Primeiro, Simão e seu irmão André. Estavam lançando as redes. A estes, Jesus diz: “Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens” (v.17). Qual o significado do convite? “vir após mim” significa reorientar a vida para um sentido novo; implica renunciar aos próprios interesses, e estabelecer uma relação pessoal com o Cristo. Isto é seguimento, discipulado.

O que fazem os pescadores? Ao pescarem, primeiramente pensam em suas próprias necessidades. Ao retirarem os peixes das águas, os matam para sanar a fome e ganhar o dia de trabalho. Ora, o ambiente vital do peixe é água. Ao ser tirado de lá, ele morre. Em contrapartida, a água não é o ambiente vital do homem. Elas, além da vida, podem também trazer a morte para o ser humano. Jesus inverte a lógica das coisas a partir deste convite. “Pescar homens” significa, então, retirar o ser humano das condições e das situações que representam a não-vida, uma vez que o mar é símbolo para as forças hostis e de morte. Imagem das forças opostas ao querer e ao projeto de Deus, conforme a tradição bíblica.

Ao colocar Jesus nas margens do mar da Galileia, o catequista bíblico pretende ensinar para a sua comunidade que com Jesus, o discípulo deverá refazer sempre sua caminhada, optando pelo projeto de vida plena, atravessando o mar como o povo fez no Êxodo. Mas será sempre nas margens que, aquele que aderiu ao projeto de Jesus e do Pai, deverá andar para se permitir encontrar pelo Senhor, a fim de encontrar os que foram marginalizados. A exemplo do mestre.

Retirar as pessoas das situações de morte, nas quais estiverem enredadas, e transporta-las para a vida. Será a missão de Jesus, e, por conseguinte, a do discípulo. É a capacidade de desenvolver a missão de gerar vida nos outros, não mais pensando nos próprios interesses, mas visando o bem do outro. “E eles, deixando imediatamente as redes, seguiram a Jesus” (v.18). O adverbio “imediatamente” é forte. Ele pretende indicar que a decisão de mudar de vida e se pôr em seguimento não é postergada, não é deixada para depois, mas assumida com prontidão. Os dois irmãos deixam as redes, ou seja, aquilo que lhes poderia significar algum empecilho para abraçar o tempo pleno que se inaugurava diante deles.

Os versículos finais (19-20) introduzem mais duas personagens: os filhos de Zebedeu, Tiago e João. O narrador nos informa que eles estão consertando as redes em companhia de seu pai. Jesus passa por eles, faz-lhes o convite e, imediatamente, deixando tudo, e põem-se a segui-lo. É interessante: o evangelista não dá a conhecer o que o Cristo teria dito aos dois. Ele só nos informa qual foi a atitude deles, deixar o pai e os empregados na barca. O pai tinha um papel muito importante na sociedade palestinense daquele tempo. Ele representava as instituições e tradições; simbolizava a segurança do clã, a zona de conforto e de convívio da família. Os irmãos Tiago e João servem de imagem para o discípulo que está aderindo ao projeto de Jesus: quem quiser ouvir o chamado que o Senhor faz precisa aprender a deixar para trás as tradições do passado; o modo antigo de pensar; as condutas equivocadas. O Evangelho, ao entrar na vida das pessoas, coloca tudo no seu lugar. Nunca acima, ou no lugar dele, mas sempre posto em relação à Boa Notícia.

Como o texto bíblico é uma página de catequese, e, portanto, não tem a intenção de transmitir uma crônica dos acontecimentos, outro elemento que merece a nossa atenção é a imagem dos empregados, também deixados na barca, com o pai. Eles mostram a condição que os dois irmãos possuíam, a de senhores. Ao deixarem o pai, juntamente com seus empregados na barca, Marcos pretende ensinar que eles deixaram para trás a pretensão e a lógica de serem servidos, de modo a aprenderem a dinâmica do serviço com o Senhor. Quem quiser aderir ao projeto de Jesus deverá assimilar, aprender e crescer na consciência do serviço; a lógica do servir, e não ser mais servido. A atitude de colocar a vida sempre mais em relação às necessidades dos outros. Assim será a vida de Jesus, e, portanto, deverá ser a lógica da vida de seu seguidor.

Há uma última peculiaridade que o texto evangélico de hoje apresenta, gerando provocação. O fato de que as atividades destes quatros primeiros são diferentes. O evangelista fala que Simão e André eram pescadores. Já, Tiago e João seriam consertadores de redes. O que esta peculiaridade pretende ensinar? A uns o Senhor chama para pescar; a outros, para consertar (tecer) as redes. Ou seja, há uma multiplicidade de dons a serem realizados, mas um só é o chamado. Ele é universal, ou seja, para todos: ao seguimento, ao discipulado a Jesus, a capacidade de descentrar-se de si para colocar-se em relação aos outros, cooperando na promoção do dinamismo libertador e gerador de vida, que Reinado de Deus propõe.

O anúncio do Reino é uma proclamação de vida para todos. Como nossas comunidades vêm se comportando diante do chamado de pescar homens e consertar redes? Como e onde sermos pescadores de gente nesta história nesta sociedade? Como tenho respondido ao convite para o Discipulado ao Senhor, imediatamente ou ainda não tenho dado resposta? Quais são as redes que ainda podem nos prender, nos enredar, e, portanto, impedir-nos de acolher o tempo presente que é pleno e carregado de Salvação? Deus, em Jesus, chamou-nos a todos.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


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