O segundo domingo do tempo comum, apresenta novamente a leitura do Evangelho segundo João. No domingo anterior, a Igreja celebrava a Epifania, encerrando o tempo do Natal, e, em seguida a festa do Batismo do Senhor, que nos introduzira na dinâmica do tempo comum. As personagens do Batista e de Jesus retornam, mas sob a perspectiva do Quarto Evangelho, a partir de Jo 1,35-42, bloco narrativo importante, pois apresenta a semana inaugural de Jesus no evangelho joanino, a qual prepara a realização do primeiro sinal. Este ministério público – visibilizado pela semana inaugural - inicia-se imediatamente após batismo.
O autor do Quarto Evangelho tem uma finalidade específica para essa periodização. Ele delimita os dias com o termo, “na manhã (no dia) seguinte”, esquematizando a semana inaugural da missão de Jesus a partir da mesma estrutura narrativa do Livro do Gênesis. Lá, o autor sagrado narra, dia após dia, o evento da criação. Servindo-se deste mesmo esquema, João quer ensinar para a sua comunidade que a semana inaugural da missão de Jesus é a inauguração de uma nova criação. Um novo tempo. Um dia novo!
“João estava de novo com dois de seus discípulos” (v.35). O evangelista apresenta de novo a figura do Batista, mas, agora acompanhado. Nos versículos anteriores, o havia apresentado sozinho. É interessante ressignificar esta cena, pois, na maioria das vezes se pensa que o profeta do Jordão tenha declarado publicamente, pela primeira vez, a identidade de Jesus. Não. O texto da primeira declaração ambienta o Batista sozinho, como que se quisesse mostra-lo chegando à conclusão de que seu discípulo, Jesus, viria a ser o realizador da vontade de Deus (“cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”). Por ser conhecedor das Escrituras consegue tomar consciência de que Deus começará a atuar de forma nova naquele Jesus.
Nova, por que? Porque o ungido de Deus não aparecerá mais como o Leão de Judá, o descendente de Davi, guerreiro, poderoso, vinculado à violência e ao domínio. Mas atuará como cordeiro. É um contraste tremendo que também o Batista precisa assimilar: um cordeiro, em contraposição ao Leão. Este é violento, grandioso, predador. Ao passo que o primeiro é manso. Mais adiante nos deteremos no significado deste termo para o evangelho joanino. Até aqui, basta saber que esta é nova concepção acerca do Messias de Deus que o Batista adquire e adere. Isso nos permite entrar no desenvolvimento da cena.
“Vendo Jesus passar, disse: Eis o Cordeiro de Deus!” (v.36). O evangelista mostra João Batista com dois de seus discípulos. E, trabalhando novamente com o verbo “ver”, faz, então a proclamação da identidade de Jesus a eles. O verbo sofre uma alteração para explicitar o seu significado. Blepein (gr. βλέπω/ver) aparece aqui como Emblépsas (gr. ἐμβλέψας), que possui o sentido de olhar fixamente, na direção de alguma coisa, a fim de conseguir captar lhe a identidade. Ou seja, é a capacidade de orientar o olhar na direção correta. Nesse sentido, o Batista “vê” em Jesus a sua autêntica identidade de Messias. Ele consegue assimilar a direção correta que a vida daquele homem tomará.
Agora, se pode avançar na compreensão do termo “Cordeiro de Deus! (ἀμνὸς τοῦ θεοῦ)” (v.36). Esta afirmação revela duas dimensões da identidade de Jesus: cordeiro de Deus e Filho de Deus, porque batiza com o Espírito de Deus (vv. 32-34). Pode ser que, como bom judeu, o evangelista tenha se apropriado do cordeiro pascal de Ex 12, o qual Moisés ordenou (cf. Ex 12) a cada hebreu e seus familiares, matassem e o comessem. O sangue serviria de sinal salvador nas portas do hebreus, para que o anjo exterminador pulasse aquela casa e fossem salvos. A carne do cordeiro, daria força na jornada que os hebreus teriam de realizar. O autor do evangelho identifica a Jesus como o cordeiro, cujo sangue é redentor e salvador, e cuja carne alimenta e dá força para no caminho. A segunda imagem é a do Servo Sofredor de Is 53,4-12. O servo-profeta seria como um cordeiro manso levado ao matadouro, que reconciliaria e curaria as feridas do povo de Israel com seu sangue e sua morte. Nesse sentido, alguém que reconcilia as pessoas com Deus pode ser comparado ao cordeiro. Este é o significado que o evangelista dá à proclamação do Batista.
Assim, todo o discípulo que desejar aderir ao projeto de Jesus deve estar disposto a acolhê-lo como cordeiro de Deus. Assimilar o sentido de sua vida e obra (comer sua carne), e o da sua existência (beber o seu sangue). Significa compreender que o caminho deste Jesus, como cordeiro (manso, livre, despossuído, servo) não se coaduna com as ideologias do poder, do prestígio, das evidências, da autorreferência, do ter e do ser, da grandiosidade, da prepotência e da autossuficiência, isto é, com a imagem do leão de Judá.
“Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus” (v.37). Dois discípulos se colocam em movimento. Um será logo identificado. André é seu nome. Mas o outro não recebe nome. João faz de propósito. Quando o leitor se depara com uma personagem bíblica que não possui nome, o leitor deve se identificar com ela; fazer dela um espelho para si. É o discípulo que iniciou agora a sua caminhada na fé. Este, portanto, é a imagem exemplar para todo aquele que se propõe a seguir a Jesus. Ele se tornará o discípulo amado, aquele que reconhecerá Jesus em sua real identidade e que viverá a mesma vida do Senhor.
Na
ordem da narrativa, Jesus percebe que está sendo seguido: "Voltando-se para eles e vendo que o estavam seguindo,
Jesus perguntou: "O que estais procurando?" Agora, o verbo importante
que deve chamar a atenção do leitor-ouvinte é o aplicado à Jesus pelo
evangelista em relação aos discípulos, Theaomai (gr. θεάομαι/θεασάμενος). Ele expressa o olhar para o interior,
um olhar contemplativo. Muito mais profundo que o Emblépsas (gr. ἐμβλέψας). O Senhor não olha a direção que eles tomam, mas mira o interior
deles, para ver qual seria a verdadeira intenção destes dois. Por isso, a pergunta:
“O que estais procurando?” (v.38).
Jesus não pergunta “quem vocês estão procurando”, mas “o que”? Ou seja, quais expectativas ou intenções os move? É intencional a pergunta transmitida pelo evangelista. Ele deseja provocar e confrontar sua comunidade de discípulos: “o que estais a procurar neste Jesus?” “Quais anseios e vontades procuram Nele?” “Quais vantagens, benesses, regalias, posições procurais em Jesus?” As provocações que emergem desta pergunta feita pelo Jesus de João são sérias e profundas, e, por isso, devem sempre colocar o discípulo num exame de consciência.
“Rabi (que quer dizer: Mestre), onde moras? Jesus respondeu: "Vinde ver". Foram pois ver onde ele morava e, nesse dia, permaneceram com ele. Era por volta das quatro da tarde” (v.38-39). O tema da habitação é recorrente no Quarto Evangelho. Para o autor e sua comunidade, Jesus é a morada de Deus. Jesus habita, onde está o amor de Deus. Essa é a morada, o endereço de Deus em Cristo. O Senhor está convidando o discípulo a permanecer (habitar) com Ele e Nele, pois assim habitarão (morarão) no amor do Pai. Naquele tempo, o discípulo não só recebia as lições do mestre, mas também convivia com ele, de modo a estabelecer uma profunda relação e comunhão de ideias e de vida com o mestre. O Evangelista anota o horário. “Era por volta das quatro da tarde”. Já se aproximava o pôr-do-sol. Era o fim da jornada. Todavia, ao entardecer, conforme o costume de se contar as horas e de dividir os dias na tradição do povo de Jesus, se inaugurava um novo dia. Está, portanto, para iniciar um novo dia para o discípulo que se decide por permanecer com Jesus: um novo tempo, um novo caminho e uma vida nova.
Outro discípulo é inserido na narrativa, Simão, irmão de André, o qual, ao iniciar o novo dia, vai em busca de seu irmão. Mas a reação dele, diante da novidade do anúncio é intrigante. Não esboça reação alguma ao receber a notícia do encontro do messias. Nem uma palavra sequer verbaliza. Parece que ele se assemelha a um peso morto. Fato é que precisa ser conduzido por André. O que acena para as resistências que o discípulo ainda possui.
“Jesus olhou bem para ele e disse: ‘Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas’ (que quer dizer: Pedra)” (v.42). Pela segunda vez aparece o verbo “ver”, que, como dissemos acima, indica a capacidade de ver na direção correta, a real identidade de uma pessoa. Agora, ação é realizada por Jesus em relação à Simão. O Senhor faz uma radiografia de Simão: “Tu és Simão, filho de João”. Simão, do hebraico Shimom, significa “Deus ouviu”, pode aludir ao desejo do seu pai de ter um filho homem. Como Deus ouviu sua oração, então o pescador de Betsaida tenha recebido do pai este nome. Não se esqueça que os nomes na tradição bíblica indicam a identidade e a missão a desempenhar. Mas Jesus acrescenta à personagem o segundo nome: “tu serás chamado Cefas”, que é traduzido pelo evangelista por “pedra”. Simão recebe a vocação de ser pedra de construção (lit. tijolo). Ou seja, João, ao utilizar novamente este verbo para Jesus em relação à Simão, deseja ensinar a comunidade de discípulos a olhar para direção correta para a qual deve tender a vida: a experiência com Jesus, que tem a força de transformar a vida, e de orientar para a missão a ser vivida. Apontar a Jesus, o Cordeiro de Deus, e cooperar, enquanto tijolo-pedra de construção, na edificação do Reino.
Com qual das personagens nos identificamos? Sabemos apontar a Jesus como o Cordeiro de Deus? O que estamos procurando em Jesus? Temos permanecido com ele, ou ido embora, sem comprometimento? Em que hora da vida estamos, diante do chamado que o Senhor nos dirige? Sabemos olhar para nosso nome e perceber nele a missão-direção correta que Jesus nos dá?
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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