Maria: o pequeno evangelho!
Jean Richard Lopes
e Edward Guimarães (PUC Minas)[1]
RESUMO: Maria como símbolo que recolhe inúmeros
sentimentos dos fiéis. Símbolo que tem sua origem no Novo Testamento, mas
sempre referido à cristologia e à eclesiologia. Importância de descobrir a
força do símbolo, liberando-o também dos aspectos que infantilizam o fiel,
descobrindo sua força evangélica. A imagem de Aparecida que se situa na esteira
da simbólica de Maria e do povo que a ela é devoto.
PALAVRAS-CHAVE: Maria, símbolo, Nossa Senhora Aparecida.
Quando se fala de Maria, corre-se sempre o risco de cair em exageros. De um lado, é possível que ela seja exaltada demais e, assim, se desconfigure a sua real importância e significado na história da Salvação. Do outro lado, desmerecê-la pode esvaziar o sentido dessa figura tão sentida em nossa tradição católica; algo que também se tornaria um empecilho para colher todas as suas nuances e semânticas evangélicas.
Soma-se o problema de que, ao menos em âmbito católico, a maternidade de Maria é fortemente colocada em primeiro plano. Algo que, obviamente, extrapola a reflexão teológica da fé e toca cordas muito íntimas e sensíveis do devoto e da devota. De fato, apesar dos muitos títulos, na pastoral, o aspecto mais evidenciado é o da maternidade de Maria estendida a todos que se dirigem a ela com fé. Tal concepção, sabemos, encontra seu fundamento no evangelho (Jo 19,25-27) e, exatamente por isso, exige uma maior atenção à polissemia do texto e da sua força pragmática, que não excluem o elemento afetivo, mas o enquadram na dupla dimensão cristológica e eclesiológica.
Maria, mãe de Jesus Cristo e nossa, como símbolo, desperta emoções, sentimentos e mecanismos profundos, típicos da psique humana, cuja força nem sempre é entendida com clareza. Alguns dos sentimentos são da área da proteção, da segurança que, evitando um julgamento precipitado e arrogante, responde a necessidades do âmbito mais infantil. Isso não quer dizer, imediatamente, infantilização, embora o perigo exista. Mas não falta também uma atitude de quem busca, junto a ela, motivo de esperança para não se deixar afogar nas vicissitudes negativas da vida.
Outro fator a considerar, na devoção mariana, está ligado a uma limitação da liberdade diante dela, ou seja, a ideia de que o não cumprimento de algumas devoções marianas, como a reza do terço, é uma transgressão grave. Culpa e desconforto acabam por desvirtuar o sentido da devoção, ofuscando o significado das mesmas; em vez de incentivar a prática na perspectiva da história da salvação – na qual Maria é escolhida e protagonista –, direcionando o devoto para Jesus Cristo. Uma devoção mais livre e bem orientada leva a descobrir em Maria um modelo que pode ser seguido, no hoje, diante da mensagem/convocação comunicada pelo anjo (Lc 1,38) ou na transformação do sentido de gratidão, pelas graças recebidas, num ato de fé e louvor de quem canta a ação do Deus Salvador (Lc 1,47-55).
Na Sagrada Escritura e na história da Igreja, Maria está sempre ligada à compreensão que a Igreja tem de si mesma. Nesse sentido é uma excelente representação da comunidade de fé. Mas não faltaram também ocasiões nas quais ela foi usada como defesa ideológica da instituição, como contraposição e autoafirmação diante de situações reconhecidas como perigosas. A polivalência desta figura, portanto, tem consequências na compreensão do feminino, da relação com a sociedade e na formação dos cristãos.
A preeminência de Maria é destacada muito cedo, no cristianismo. A maior prova disso é o próprio texto do Novo Testamento, com suas muitas citações: Mt 1,1-17.18-25; 2,1-23; Mc 3,31-35; 6,1-6; Lc 1,26-38.39-45.46-55; 2,1-20.21-40.41-52; 8,19-21; 11,27-28; Jo 2,1-12; 19-25-27; At 1,14; Gl 4,4-5; Ap 12,1-6. Devido à particularidade do modo como ela está em direta relação com Jesus Cristo, o Salvador, não poderia ser diferente. Todavia, a sobriedade com a qual Maria é inserida ou apresentada nas narrativas ou discursos neotestamentários é algo que deveria ser considerado melhor, com a força de nos ajudar colher a constante novidade e a força salvadora, libertadora, do evangelho.
Longe de ser algo simplório ou miserável no conteúdo, a citada sobriedade é, do ponto de vista literário e da reflexão teológica da comunidade primitiva, dotada de uma grande força hermenêutica e significativa. Ela entrelaça dois aspectos muito importantes. O primeiro é a figura histórica – que não pode ser esquecida ou desconsiderada, com o risco de desmerecer a intenção do evangelho de impregnar a vida do homem, no tempo e no espaço –, uma jovem mulher real, pertencente a um povo, com fé e esperança judaicas, aberta e disponível ao projeto de Deus, que se torna mãe e contrai matrimônio. O segundo aspecto é como a Igreja, a comunidade de fé, se percebia diante dela e com ela na história da salvação, ao assumir a condição de discípula e testemunha do Evangelho.
Nem sempre é fácil distinguir os dois aspectos, mas, desde muito cedo, os cristãos olharam para Maria e viram nela o espelho apto para traduzir o reflexo da própria experiência de fé. Mais ainda, relendo a maternidade de Maria na linha do discipulado, a Igreja primitiva se identifica com ela e se descobre também visitada, fecundada por Deus e chamada a dar à Luz ao Emanuel, no mundo, onde quer que se encontre. Não acaso em muitas catedrais medievais, em plena sintonia com a teologia elaborada no período patrístico, na frente do ambão, vemos representada a cena da anunciação. Como Maria, a comunidade celebrativa é fecundada na escuta da Palavra e com essa mesma Palavra comprometida livremente.
Todo evento ou personagem significativo pode ser abordado de vários modos. Emprestando da metodologia aplicada à exegese bíblica, destacamos duas linhas fundamentais: diacronia e sincronia. A primeira, no campo dos estudos bíblicos, busca descobrir e entender todo o processo histórico reproduzido no texto ou o processo de elaboração e redação das narrativas, poesias e outras formas literárias que compõem a Sagrada Escritura. Essa linha tem, entre outras coisas, o mérito de afastar atitudes fundamentalistas, quando não triunfalistas, e localizar a narração ou discurso de fé num processo histórico real. A sincronia, sem negar a diacronia, focaliza mais o texto e seu dinamismo capaz de comunicar uma mensagem. Afinal o texto sagrado não se limita a informar, mas, sobretudo comunica algo, princípio básico da teoria da linguagem mais contemporânea e fundamento da nossa compreensão de revelação.
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que Maria é um “pequeno evangelho”. Pequeno não por desmerecimento, mas por respeito proporcional à sua figura na história da salvação. Não é preciso, como muitos parecem pensar, que ela seja “grande”, exageradamente exaltada, para comunicar algo de Deus. Aliás, a narrativa evangélica ressalta a grandeza reconhecida na pequenez dela (Lc 1,48a).
O adjetivo pequeno garante que ela continue a comunicar algo de Deus, nosso Salvador, que faz grandes coisas (Lc 1,49ss). Na devoção mariana é possível encontrar também a voz de Deus e fazer experiência da potência salvadora dele. Mas como todo “texto” – permitam-nos analogicamente referir-se a Maria como texto – é preciso que ele seja decifrado, para então colhermos a mensagem comunicada. É preciso ler Maria inclusive na sua fenomenologia mais recente, como das aparições e manifestações, como é o caso de Aparecida, para então descobrir a beleza dessa mulher-mãe, fecundada da potência de Deus.
Ao nos concentrarmos mais especificamente em Nossa Senhora Aparecida, sabemos que são vários os estudos e documentos diacrônicos que nos permitem conhecer e entender a manifestação acontecida há 300 anos e tão presente na vida de fé de inúmeros brasileiros, até hoje. Neste V Colóquio de Teologia e Pastoral (2017), tivemos também a oportunidade de fazer um balanço histórico do que aconteceu e de avaliar pesquisas mais recentes – brilhantemente desenvolvidas pelo Prof. Dr. Ney de Souza – que mostram por onde anda essa devoção.
As devoções populares tendem a florear o fenômeno religioso, dando ares mais extraordinários, às vezes, até mágico. Criam-se narrativas que não obrigatoriamente reproduzem a realidade empírica, o fato ocorrido. Algo de particular se vê também na arquitetura. O cristianismo, como outras religiões, tende a monumentalizar os lugares e espaços reconhecidos como importantes e sagrados.
Desenvolvem-se também práticas de oração, penitência, e outras expressões de fé e apego à figura venerada. Tudo isso se apresenta como um grande “texto” que, como tal, comunica algo. Convencionou-se, nos últimos anos, com forte sabor de marketing, chamar o Santuário Nacional de “Casa da Mãe”. São inúmeras as histórias dos milagres acrescentadas a um elenco já amplo e, certamente, virão muitas outras ainda. A imagem encontrada no rio foi revestida de manto principesco e triangular, escondendo as curvas da mulher.
Se os devocionismos exacerbados podem esvaziar Aparecida do seu significado propriamente cristão, intelectualismos podem ser muito arrogantes, assumindo uma posição nada pastoral distante das expressões mais populares da devoção, muitas vezes entendida como irracional e por isso não aceitável. Mas Aparecida é uma mensagem viva de grande força e alcance que pede para ser decifrada. Nesse sentido, uma leitura sincrônica de Aparecida se sustenta, obviamente, no evangelho, critério hermenêutico fundamental, e busca, então, identificar elementos do mesmo evangelho presentes na devoção e no seu contorno (narrativas, arquitetura, práticas devocionais, arte, música...).
Isso é possível, claro, desde que, em algum momento toque a existência dos devotos, iluminando a sua condição, e se torne significativo para eles; sejam eles membros ativos das paróquias ou peregrinos sem participação fixa ou rumo certo. Por isso, a matemática da “necessidade - resposta milagrosa”, embora muito imediatista, não pode simplesmente ser descartada como ilusória, mágica, alienante, mesmo que esses perigos sejam reais. Afinal na necessidade não se intelectualiza, mas se invoca uma ajuda. A necessidade, querendo ou não, real ou não, é uma porta de acesso à tradução e atração na própria existência da experiência religiosa e da atitude de fé. São muitos os relatos de pessoas que, por muito tempo alheias ao evangelho e ao compromisso comunitário, iniciaram um caminho e compromisso de fé, depois de alguma experiência num santuário mariano.
Nas narrativas dos milagres, os primeiros contos carregam um significado que vai além da matemática citada. Elas têm um caráter fundacional, porque colocam as bases da expressão mais popular da devoção que se desenvolverá ao longo do tempo. Para isso é necessário destacar os protagonistas, os antagonistas, denúncias ou confirmações da situação social, organização comunitária, qualidade da solidariedade despertada, quais perspectivas são atendidas e quais surgem a partir daquele momento, modelo eclesial, com sua força e deficiências... Sem anacronismos, estes elementos todos convidam a uma leitura constante da realidade – em jargão hermenêutico, dir-se-ia atualização –, de modo a não calar a força eloquente da ação do Deus Salvador presente no “pequeno evangelho”.
As manifestações marianas, quando permeadas pelo evangelho, tendem a mostrar um horizonte que abarca o pessoal e o projeta para o comunitário (Jo 17,20-26). Nesse sentido, é importante o confronto com os contos presentes e as primeiras narrativas, mesmo que não ainda amplamente elaboradas. Esse esforço constante de interpretação e, porque não, de oração, acolhe o homem e a mulher contemporâneos, nos seus anseios, ao mesmo tempo em que purifica a tentativa de uma apropriação indevida – de caráter mais supersticioso e consequentemente, individualista, e, muitas vezes, alienantes – da ação de Deus. E abre os mesmos peregrinos a uma nova compreensão da humanidade, nas suas relações entre si, com o mundo e com Deus, segundo a lógica do Reino. O significado existencial e salvador do evangelho alcança seu ápice na experiência comunitária, não entendida meramente como aglomeração, mas na cura e transformação das relações e no compromisso com o dom da vida, seja a nível social, ecológico ou religioso, como muito bem nos ensina Papa Francisco, na Evangelii Gaudium.
O Santuário Nacional tem passado por uma série de reformas que o aproximam sempre mais da grandeza e criatividade típicas da cultura cristã, católica. A sua arquitetura e espaço tem reproduzido vários elementos simbólicos (o pedestal do círio pascal, por exemplo) e técnicas catequéticas (painéis ilustrativos de cenas evangélicas) desenvolvidas ao longo dos séculos, na história da Igreja. Todos estes elementos são válidos, sem dúvida, e de alta qualidade artística. Tudo isso enriquecido com a inserção de dados tipicamente brasileiros, provenientes da fauna e flora. Todavia, há de se perguntar o quanto tem sido feito para que esses elementos não se percam em questões puramente estéticas, mas, somados aqueles mais próprios de Aparecida, exerçam uma força mistagógica sobre todos os peregrinos, do laicato como do clero.
A Rainha do Brasil, como muitas vezes nos referimos à Aparecida, é negra e isso não pode ser encoberto pelo manto ou ofuscado pela coroa – apesar desses dois revestimentos simbolizarem respeito e reconhecimento –, sobretudo num país como o Brasil, ainda com tantas barreiras raciais a serem vencidas. A negritude da imagem da mãe deve ter espaço para proclamar uma irmandade de homens e mulheres comprometidos com dar respostas a necessidades e ausência de direitos do indivíduo situado numa sociedade que precisa se constituir como comunidade – dos filhos e filhas de Deus –, promotora da justiça e dignidade de todos.
O manto a reveste e a sua coroa brilha, portanto, de uma realeza não monárquico-humana, de submissão, ou celestial-triunfalista, mas sim realmente divina. Trata-se da realeza/soberania de Deus (Ap 12,5) que a reveste da sua força (Ap 12,1b) e, como na vida dela – da jovem mulher carregada da fé e esperança de seu povo –, abraça o ser humano por completo e vence os “dragões” (Ap 12,7-8.11) sempre prontos a perseguir, devorar e bagunçar a criação (Ap 12,3-4.13.15.17), matando a esperança dos homens e mulheres e, com isso, sua capacidade de reação e defesa da dignidade da vida de todos ou esvaziando a perseverança a qual todo cristão é chamado (Ap 1,9), como testemunha do Ressuscitado e do reinado de Deus em Jesus Cristo (Ap 1,2-3.9; 7,13-17; 11,15-16; 19,6b).
A Casa da Mãe é sinal do evangelho se proporciona uma entrega confiante, em Deus, e, no seu espaço simbólico-existencial, nos direciona para a casa do Pai (Jo 14,1-11.12-21). E isso acontece, de fato, se, além da força de atração, o Santuário tiver caráter propagador do evangelho e dos cuidados que a maternidade/paternidade pode representar, como experiência de salvação, cuidando e fecundando a sociedade brasileira.
Como teólogos, pastoralistas, catequistas, agentes comunitários, todos somos convocados a ler, refletir e trabalhar para evidenciar a força evangélica de Aparecida, decifrando sua mensagem e colhendo a comunicação divina nela presente. Claro que conservando o devido e autêntico respeito pelo peregrino e suas necessidades, mas também com o sentido da responsabilidade pela edificação da comunidade de fé (1Cor 3,9 [1Pd 2,5]; 8,1b; 10,23-24; 14,12; 1Ts 5,11; At 2,41-42; 4,32-35), afastando triunfalismos e encarnando o evangelho; anunciando o Reino de Deus, como fermento (Mt 13,33), sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-14). E, parafraseando Maria, prontos para fazer o que ele nos diz! (Jo 2,5).
Por fim, não poderíamos deixar de
recomendar a leitura dos enxertos que o Papa Francisco fez na oração que lhe
propuseram no Santuário de Aparecida. Ele que se mostra tão entusiasta do
Santuário, grande devoto mariano, em poucas palavras, corrige a diacronia atual
e atualiza a sincronia do pequeno do evangelho.
[1] Reação à conferência do Prof. Ney de Sousa.
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