sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DO TEMPO DO TEMPO COMUM - Mc 1,29-39:



O quinto domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo primeiro do Evangelho segundo Marcos. A perícope de hoje inicia-se a partir do v.29 e se estende até o v.39. Este trecho que liturgia nos propõe é o final de “um dia de Missão” de Jesus. Este dia começou no v.14, quando o evangelista fez-nos saber que João, o Batista, havia sido preso. Um marco inicial para a missão de Jesus. No v.15 temos uma declaração que é, ao mesmo tempo, um conteúdo ou itinerário programático de sua missão: “Completou-se o tempo, o Reinado de Deus vem vindo! E nos convida à conversão e à adesão à Boa Notícia que ele traz consigo. É ele o autorizado da parte de Deus para proclamar com sua vida a presença mesma de Deus na história humana.

Jesus, depois de passar chamando e deslocando os quatro primeiros para a tarefa de pescar gente – retirar as pessoas das situações de morte e leva-las para a vida – , se  dirige para Cafarnaum com os seus para ensinar lhes como viver esta pesca. Lá, como de costume aos sábados, entra na sinagoga e realiza um primeiro gesto que pretende mostrar a presença do Reino de Deus, que deve ser aceito na liberdade da consciência, sem amarras ou barreiras. Ali exerce um ensino diferente: com autoridade. Ele fazia o que falava. Seu ensino era comprovado pela sua atitude. Nisso consistia a autoridade de Jesus. Nosso texto situa-se na continuidade deste episódio.

Ao sair da Sinagoga, Jesus vai para casa de André e de Pedro. Ali encontra a sogra de Simão e é informado de seu estado: doente, febril e deitada. Realiza, então, mais um gesto de poder: o reerguimento daquela mulher. É importante que nos detenhamos no termo utilizado pelos autores do Novo Testamento: “gestos de poder” (gr. δυναμις / dynameis). Ele se refere às ações realizadas por Jesus, as quais traduzimos equivocadamente por milagres. Estes gestos tem a função de revelar e confirmar que Jesus é o autorizado – tem autoridade, a exousia – para pregar o Reino da parte de Deus.

O evangelista tece bem a cena. Jesus, Tiago e João encontram-se na casa de André e de Simão. Eles O fazem saber que a sogra de Simão estava doente. É interessante notar essa informação que Marcos fornece ao leitor-discípulo. A mulher, naquele tempo e naquela sociedade, era marginalizada. Não tinha vez e era considerada insignificante e, ao mesmo tempo, a mais distante do favor de Deus. Subitamente, os discípulos falam da mulher. Ora, eles compreenderam uma novidade no ensino de Jesus: o bem do ser humano deve ser colocado acima de tudo, no ocorrido na sinagoga. Deve vir antes mesmo da observância da Lei divina. Ora, o leitor deve se recordar que ainda é dia de Shabat. Em dia de sábado é proibido realizar qualquer tipo de ação. Inclusive a visita e o cuidado para com os enfermos. Os discípulos conseguiram compreender o seguinte, que o bem do ser humano é o bem mais importante. Por isso falam dela. Muito embora Jesus poderia ter dito, “esperemos passar o sábado”, mas não foi essa a sua atitude. Recorde-se que o preceito de guardar o sábado era o mais importante, sendo que quem o descumprisse poderia ser réu de morte. O bem das pessoas  ocupa a primazia nas atitude e decisões de Jesus.

Marcos, ao mesmo tempo que indica a condição febril e o estado da sogra de Pedro (deitada), ritma a ação central de Jesus a partir de três verbos de movimento: aproximou-se, tomou-a pela mão e levantou-a (v.31).  O evangelista quer recordar à sua comunidade o Sl 73,23, no qual o salmista louva a Deus por tê-lo tomado pela mão direita e introduzido em Sua Glória. O verbo “levantar” (gr. ἤγειρεν / ehgheiren) é muito significativo para os cristãos da comunidade de Marcos e para os das primeiras comunidades nascentes. O gesto de Jesus é descrito e lembrado pelo evangelista pelo mesmo verbo utilizado na narrativa da ressurreição. Em simples palavras: a simplicidade deste gesto, realizado na intimidade familiar, antecipa a vitória do Senhor sobre a Morte.

O gesto de Jesus de tomá-la pela mão chama a atenção, porque ele era desnecessário, e, ao mesmo tempo, proibido, devido ao repouso sabático. Ao tocá-la, sendo a pessoa em questão uma mulher, e, devido à sua enfermidade, Jesus, segundo a Lei, torna-se impuro. Mas a mensagem que Marcos quer transmitir é a de que, mesmo correndo tal risco, assumindo a impureza da mulher, Jesus comunica a ela a Sua força geradora e restauradora de vida. Imediatamente a febre desapareceu. E a mulher se colocou a servi-lo. O autor utiliza o verbo “diakoneo (gr. διακονέω)”, que significa a atitude livre e amorosa de servir. Isso é muito importante, pois após a tentação de Jesus, os anjos se aproximam dele para servi-lo. O catequista bíblico quer indicar que, aquela mulher (marginalizada por seu gênero e por sua condição enferma) após acolher a mensagem de Jesus através da comunidade simbolizada pelos quatro discípulos, pode aproximar-se novamente de Deus, e está habilitada para servi-lo.

Dos vv.32-34, o evangelista relata que, ao pôr-do-sol, quando o repouso sabático terminava, muitos acorreram para a casa de Pedro, levando seus enfermos e a gente possuída por espíritos impuros, aos quais curou e purificou, não deixando que os espíritos impuros falassem. Reaparece, novamente, a censura feita na sinagoga. Esta ordem ou censura é comum para os que são curados de alguma enfermidade, bem como para os “endemoninhados”. É um recurso pedagógico da catequese de Marcos, o qual chamamos de “Segredo Messiânico”. É tanto uma ferramenta catequética do evangelista, como pode ter sido, muito plausivelmente, uma atitude do próprio Jesus que foi recuperada pela memória do autor; como pode ter sido uma atitude da própria comunidade marcana, como caminho de iniciação catequética aos candidatos ao batismo. Este segredo visa preservar a verdadeira identidade de Jesus, que só será desvelada no alto da Cruz.

Marcos, enquanto catequista de uma comunidade, preocupa-se com que seus leitores-discípulos não concebam uma falsa imagem de Jesus: um curandeiro, um milagreiro (taumaturgo), como tantos de sua época. Para que não tirem conclusões precipitadas nem se confundam sobre sua identidade antes da manifestação definitiva: a morte e a ressurreição. Por isso, os gestos de poder que ele realiza não devem ser absolutizados, mas colocados em relação ao Reino.

Marcos, novamente chama a atenção dos leitores. Os Milagres de Jesus não são espetáculos públicos, mas gestos de fraternidade e solidariedade, que permitem perceber de que lado Deus atua e se coloca na estrutura do mundo. Ao lado dos marginalizados. É no interior de uma casa, e ao redor dela que Jesus realiza seus gestos. Não é no meio do barulho, ou nos locais de evidência. Ele não era um pop-star. Não era midiático. Também não era sensacionalista. Tampouco sofria da síndrome do Pavão, a exibir-se para chamar a atenção para si. Ele jamais se autorreferenciava. Mas referenciou o Reinado do Pai.

Prova disso é como Marcos encerra a seção do dia missionário. O v.35 mostra que ainda de madrugada Jesus se colocou em oração, num lugar deserto. Depois de um dia intenso de atividades, parou para se abastecer; para entrar na intimidade com o Deus da Aliança para que possa compreender-se a si próprio e a sua missão. É um modo que o evangelista também tem de mostrar que, enquanto homem, Jesus também sofria a tentação de colocar sua missão e o anúncio do Reino no caminho do prestígio, da glória humana, do holofote; na lógica do poder (ou do super-poder). É pela oração – na intimidade com o Pai – que ele reorienta constantemente a missão da qual foi por Deus encarregado. E retira dali a força para rejeitar o caminho contrário. É no silêncio da oração, na noite do confronto consigo, que Jesus reorienta a sua vida e missão para o querer do Pai.

Sua missão não consiste em ficar ali satisfazendo as expectativas. Antes, responde a Pedro que “deve ir às aldeias vizinhas pregar”, pois foi para isso que veio. Nisso consiste o cristianismo de Jesus: seguimento-discipulado, missão e, também de cruz. O projeto do Pai, pregado pelo Cristo, não consiste nos fatos extraordinários; nos prodígios mirabolantes; na pastoral do milagre. É, acima de tudo e essencialmente, adesão à Sua Pessoa. Uma experiência pessoal com Ele, da qual brota a disponibilidade para o seguimento e a comunhão de vida com a vida, história e opções Dele.

Da experiência discipular com Jesus, advém a necessidade de, também com Ele, sair para a missão de proclamar o reinado de Deus, através do serviço aos irmãos. Foi o que fez a sogra de Pedro que, imediatamente depois de ter feito a experiência pessoal do Reino em Jesus, se colocou à seu serviço. Somente acompanhando a Jesus (fazendo experiência com sua Pessoa) em seu dia missionário é que se consegue responder acerca de sua identidade.

A partir do encontro com Jesus é que se pode ficar livre da febre que paralisa e prostra. Que tipo de febre ainda impedem  as pessoas de fazerem uma experiência genuína com o Senhor? Ao interno do cristianismo e das comunidades ditas cristãs que febres existem e ainda impossibilitam as pessoas de viverem um encontro verdadeiro e profundo com o Senhor? Nossas comunidades tem sido - a exemplo dos quatro primeiros discípulos que souberam captar o sentido do ensinamento de Jesus - continuadora do gesto gerador de vida do Cristo? Da experiência com Jesus nasce a necessidade de se colocar o bem das pessoas em primeiro lugar. Como temos vivido essa missão? Temos, como Jesus, aproximado aqueles que se encontram distantes do projeto de Deus ou, como a lei e os seus protetores, as mantemos afastadas. 

Sabemos dar nomes a estas febres? 

Sem pretensão de viciar a leitura e a resposta às perguntas anteriores, gostaria de, criticamente, provocá-los, nomeando algumas, dentre as inúmeras febres. Por exemplo, a febre do tradicionalismo legalista, que paralisa a vida das pessoas com moralismos falsos, fazendo da vida das pessoas e do fiel, um fardo pesado de se carregar. A febre do saudosismo vazio e morto, que não consegue ressignificar o presente e mirar para o horizonte da novidade que o Evangelho gera e promove. A febre do fechamento e do esimesmamento, que não edifica comunidade, mas que promove e alavanca guetos e constrói feudos. A febre da fama, do sucesso, da auto referência na vida de fé e na missão evangelizadora e eclesial. A febre do milagre, do sensacionalismo e do extraordinário, que aliena na mesma medida que as anteriores. A febre do negacionismo diante dos sinais que os tempos vão dando. A febre da indiferença ao Evangelho e do descompromisso com a vida comunitária e eclesial. A febre da marginalização, da exclusão, das relações de domínio, do descarte. Há, sim, quem goste de viver doente, como que um hipocondríaco em matéria de fé; há, como no tempo de Jesus, aqueles que gostam de viver com febre. 

Agora, a escolha é de cada um: viver das febres ou deixar Jesus comunicar e gerar vida e poder participar de Sua plenitude de vida, através da colocação da vida à serviço amoroso e livre. Com Jesus somos chamados a também tomar pela mão e comunicar vida aos que encontram-se deitados em estado febril.


Pe. João Paulo Góes Síllio.

Paróquia Sagrada Família. Arquidiocese de Botucatu-SP


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