“O Espírito levou Jesus para o deserto” (v.12). Assim começamos o itinerário quaresmal com o primeiro domingo da quaresma, onde meditaremos em nossa liturgia estes versículos introdutórios do primeiro capítulo do Evangelho de Marcos, em 1,12-15. O mesmo Espírito já tinha investido Jesus para a missão, conforme vemos na cena narrada anteriormente, às margens do Jordão. Infelizmente a tradução litúrgica omite o conectivo adverbial que liga o texto do batismo com a narrativa que se segue.
O Espírito é aquele dinamismo de vida e de amor existente entre o Pai e o Filho. E a resposta de Jesus ao amor e a vida do Pai é uma entrega de amor em favor da humanidade inteira, isto é, inserindo-a no horizonte de amor e de vida que ambos comungam entre si. O que o Espírito faz em relação à Jesus? Marcos indica com um verbo muito forte que Ele, literalmente, “impulsionou (empurrou - jogou) Jesus para o deserto”. O verbo utilizado pelo evangelista é ekballo (gr. ἐκβάλλω). O Espírito O insere no mesmo caminho que marcou a vida de seu povo e dos profetas. O deserto, na tradição bíblica, recorda a saída dos hebreus do Egito rumo à terra prometida. Um caminho de libertação.
Ora, o catequista quer ensinar para a sua comunidade que Jesus inicia um caminho de libertação, sendo este, fruto do Espírito. Uma vez que, para Marcos, Jesus é o novo Josué que, às margens do Jordão, último limite para que o povo atravessasse e conquistasse a terra prometida, inicia um novo êxodo para uma nova terra de liberdade. Liberdade (libertação) e Espírito encontram-se unidos na prática de Jesus. A práxis de Jesus, pelo Espírito, gera vida e libertação.
Marcos informa que “E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e ali foi tentado por Satanás” (v.13). Na teologia bíblica, o número quarenta é simbólico. O evangelista não pretende fazer uma cronologia da vida de Jesus. Por isso, o número não significa um período exato (estanque) na vida do Cristo, nem a quantidade, mas indica a totalidade de sua vida. A simbologia que envolve este número significa, para a cultura da época, o tempo de uma geração inteira. O autor quer chamar a atenção para o fato de que Jesus não ficou somente quarenta dias no deserto e depois saiu, mas que sua vida inteira foi vivida dessa maneira.
O evangelista informa que, ali, no deserto, Jesus foi tentado por Satanás. Marcos é o evangelho mais antigo, e é curioso que ele não apresente as tentações, tampouco o número delas. Ele não jejua e não reza. O verbo “tentar” (gr. πειράζω / peiráso), é importante. Qual seria a tentação sofrida por Jesus? As tentações percorrerão a totalidade de sua vida, culminando no último momento de sua existência, quando os chefes do povo o colocarão à prova, provocando-o a manifestar seu poder em meio ao sofrimento, descendo da cruz.
A tentação, portanto, consistirá na compreensão e no modo através do qual Jesus se revelará como Filho de Deus; defrontar-se e confrontar-se com esse questionamento: em que consiste ser Filho de Deus. Será através do caminho do poder, do prestígio, ou da fama? Na perspectiva de Marcos, não. Será através da passagem pelo deserto, que Jesus começará a compreender o caminho de seu messianismo. Lá, como aconteceu a todos os filhos de Israel. Jesus é tentado a partir do modo, através do qual viverá o seu messianismo. Por isso, o leitor deverá ter em mente o texto de Dt 8, onde YHWH declara que fez seu povo caminhar no deserto para saber se ele seria capaz de obedecer à sua Palavra e ser considerado seus filhos.
Quem é este Satanás? É uma figura literária. Satanás não se trata de uma entidade, mas de uma função/atitude. É a ação de se colocar e agir contrário; realizar oposição ao projeto de Deus. Dando um salto na narrativa do evangelho marcano, essa função será identificada em Simão Pedro, quando este se colocar contrário ao projeto de Jesus de subir para Jerusalém realizar até o fim a sua missão, sendo morto pelas autoridades de seu povo. Na concepção de Pedro e dos demais, o Messias não poderia ser um derrotado, mas vir com força, poder e violência para aniquilar os dominadores romanos. A Pedro, Jesus dirá, “vinde após mim, Satanás. Porque não pensas as coisas de Deus, mas dos homens” (Mc 8). Simão é chamado de opositor de Deus porque pretende impedir a Jesus de ser morto pelo poder vigente, ao invés de tomar o poder.
Quem personifica esta figura literária de Satanás que põe Jesus à prova? São os fariseus, gente sabida e entendida da Palavra de Deus, que pouco viviam-na. E, o que é pior, a descaracterizavam, anulando-a com seus preceitos humanos. Aquele que eram tidos como os mais próximos de Deus, dirá o evangelista, foram os que agiram diabolicamente (gerando divisão), tentando a Jesus. Qual a ação tentadora dos líderes do povo, em relação a Jesus? Lembremos que Marcos aplica o verbo “tentar” sempre aos fariseus. Estes realizam a divisão entre Deus e o homem, através daquelas leis e prescrições impossíveis de serem observadas e cumpridas pelo povo simples; causam a divisão entre o homem e a mulher, uma vez que ela era colocada numa posição de inferioridade ao interno da sociedade do tempo de Jesus; geram a divisão entre os homens, rotulando-os em “puros” e “impuros”. Exatamente o contrário da ação de Jesus. Assim, Satanás é, nos evangelhos, imagem do poder.
Enquanto Deus é imagem do amor generoso que se coloca à serviço das pessoas, a fim de levá-las para junto de si, Satanás é o símbolo do poder que domina as pessoas a fim de distanciá-las de Deus.
Deus e Jesus não dividem a humanidade. Ao contrário, aproximam os homens entre si, e aproximam a humanidade para si. Deus e Jesus não dividem o homem e a mulher, mas colocam-nos em paridade nas relações, tornando-os um só corpo. Deus e Jesus não causam divisão entre as pessoas, rotulando-as em puras e impuras, mas todos são os destinatários do amor comiserado de Deus. Assim, a primeira indicação dada pelo evangelista através do uso do verbo “tentar”, aplicado aos fariseus é a seguinte: atenção, estas pessoas tão pias e tão devotas, servidoras e detentoras da moral e dos bons costumes, tornam-se, na verdade, instrumentos de Satanás.
“Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (v.13b). O evangelista usa o artigo definido, “os” animais selvagens. E o faz para lembrar aos seus leitores que estas personagens são já conhecidas. Elas aparecem no livro de literatura apocalíptica atribuído a Daniel. Simbolizam os impérios, os poderes dominantes da época.
O que o evangelista quer ensinar para seus leitores? Que toda a vida de Jesus foi vivenciada pelo deserto; que durante toda a sua existência ele foi colocado à prova pelos líderes do povo e, que, por fim, durante todo o seu ministério, a sua vida foi colocada sob o perigo de uma morte iminente. Tanto é verdade que o evangelista insere a informação da prisão de João, o Batista (cf. v.14). Ambos empenharam a vida pelo anúncio do Reino, até que o precursor é preso. Jesus, com seu anúncio do Reino, chama a todos para conversão. Mas aqueles que detém o poder não aceitam mudar de vida.
O
v. 13 informa, por fim, que os anjos o serviam. Até o momento, foram
apresentados ao leitor a figura de Satanás, dos animais selvagens, ambos símbolos
para os poderes contrários a Jesus e ao projeto de Deus. Agora, o autor
apresenta a figura dos anjos. Quem são eles, na intenção do catequista Marcos?
São símbolos para aqueles que acolheram o anúncio da Boa Notícia de Jesus, e
colocaram sua vida na dinâmica do amor generoso e livre, através do serviço. O
verbo utilizado pelo evangelista é diakoneo, a capacidade de servir, livre e amorosamente. O primeiro “anjo” que aparecerá na narrativa será
uma mulher, a sogra de Simão, que depois de ter sido libertada da morte
representada pela enfermidade, se coloca a servir a Jesus.
“Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (v.14-15). O marco temporal para Jesus retornar do deserto para a Galileia é a prisão de João. Ele retorna para anunciar a Boa Notícia do Reino. Ele não fala de si, mas referencia o Reino. A Boa Notícia de Deus, é a de que o tempo da espera acabou e se tornou pleno.
Para Marcos não se espera mais que um messias caia do céu, ou que as práticas do jejum, da oração ou da esmola pudessem acelerar a vinda do Reinado de Deus, e que ele escutará a súplica da humanidade só porque ela cumpriu essas obras. Não. Não há mais o que esperar. O Reinado de Deus chegou, foi isso o que disse Jesus.
O Reino chegou. Ainda que a humanidade esteja em meio ao deserto; chegou naquela Galileia das nações; na Galileia da humanidade; do discípulo. O Reino de Deus chegou na nossa vida; em nosso deserto. Ali, o Espírito impulsiona o discípulo para enfrentar as forças de morte, de opressão, de oposição, de resistência, isto é, as tentações de Satanás. O convite de Jesus à conversão é um chamado à mudança de mentalidade (gr. μετανοέω/metanoéo), para ir muito além das velhas maneiras de pensar, de agir. O convite à conversão é acompanhado da proposta do crer. Crer que o Reino chegou, não pelos méritos ou boa conduta do ser humano, porque se converteu; mas porque Deus assim o quis. Por isso, se faz necessário encontra-lo, aderir a ele.
Aplicado à comunidade de Marcos, a destinatária de seus escritos, ela é chamada a viver conforme a mesma vida de Jesus. Não se pode esquecer que ela está marcada pela perseguição dos anos 65-70, em Roma. Este é o deserto em que ela se encontra. A tentação é, pois, aquela de mudar de caminho, de buscar evitar a perseguição, de ser conivente e viver em boas relações com o Império que a persegue; a tentação de reduzir o Evangelho a uma doutrina, a preceitos, ou a moralismos. Então, para ela e para a geração futura dos discípulos, dentre os quais nos encontramos, Marcos trata de recordar o que aconteceu com o Batista (grande profeta) e com Jesus (o Filho de Deus): a perseguição torna-se a lógica de quem se colocou a serviço do Reino de Deus.
O texto deste primeiro domingo do tempo quaresmal instiga-nos algumas provocações. Temos a coragem de deixarmo-nos impulsionar pelo Espírito para o Deserto, com Jesus? Que tipo de tentações podemos encontrar ainda latentes em nós, que nos impedem de responder ao projeto de vida plena inaugurada pelo Reino? Quem somos nesse deserto, tentados (com Jesus) ou tentadores (como o Opositor, Satanás)?
Iniciamos
um tempo de graça, de reconciliação e conversão com a quaresma. Somos
convidados a iniciá-la – com Jesus – a partir da realidade do deserto, impulsionados
pelo dinamismo de vida de Deus que é seu Espírito, a fim de que através Dele,
anunciemos com Jesus, a chegada do Reino. Começamos no deserto, mas não
permaneceremos nele. Há um caminho de vida e de liberdade a ser percorrido,
ainda que perpassado do início ao fim, pelo ermo.
Pe.
João Paulo Sillio.
Paróquia
Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu.
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