sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

HOMILIA PARA O IV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 1,21-28:

 


O quarto domingo do tempo comum continua para nós a meditação do capítulo primeiro da catequese de Marcos. A fim de compreendê-la, uma pergunta percorre todo o [primeiro] evangelho: Quem é Jesus de Nazaré? O autor coloca este questionamento para além da pessoa histórica do Galileu. Ele tem a finalidade de ensinar para a sua comunidade a verdadeira identidade de Jesus. O texto bíblico proposto pela liturgia dominical apresenta este questionamento através da narrativa da liberação da consciência do “endemoninhado” da Sinagoga. Nesta cena, são postas em evidência a identidade de Jesus e a questão da Sua autoridade. O evangelista articula as duas temáticas num mesmo relato.

Mc 1,21-28 está intrinsecamente relacionado com o trecho anterior, no qual Jesus chamou os quatro primeiros discípulos para a missão de serem pescadores de homens (Mc 1,14-20). Pescar gente, na intenção do evangelista significava retirar as pessoas das circunstâncias, sistemas e situações de morte e promover a vida mesma de Deus na vida do indivíduo, contida no anúncio libertador do Reinado de Deus. Ora, a atividade de Jesus consiste em salvar a vida das pessoas do âmbito da Morte. Por isso, a narrativa é, na verdade, a pesca da qual Jesus falou aos discípulos. Muito significativo é o fato de os discípulos o acompanharem através desta jornada missionária que o mestre realiza. Curioso, todavia, é o fato de que Marcos não mostra os discípulos com Jesus precisamente na sinagoga, como veremos a seguir. Contudo, num só dia, o evangelista vai exemplificando através dos gestos que Jesus realiza, o que significa verdadeiramente pescar gente: a liberação do “endemoninhado”, a cura da sogra de Pedro (Mc 1,29), a purificação do leproso (Mc 1,40). Esta pesca de gente não é uma metáfora, mas a concretização do querer de Deus e do agir de Deus através de Jesus.

Mas, para onde vai Jesus com seus discípulos pescar gente? Nos lugares difamados e desprestigiados, frequentados pelos pecadores? Categoricamente, não! Ele inicia a sua pesca – a atividade geradora de vida – ao interno das estruturas de seu tempo. Feitas estas considerações a nível de contextualização, podemos adentrar no horizonte do texto.

“Estando com seus discípulos em Cafarnaum, Jesus, num dia de sábado, entrou na sinagoga e começou a ensinar” (v.21). O evangelista nos situa no tempo e no espaço. Jesus está em Cafarnaum, na Galileia. É Shabat, isto é, dia de Sábado. Neste dia, o judeu piedoso observa a prescrição da Lei de parar com seus afazeres, para orientar-se para Deus e repousar. Se reúnem na sinagoga para ouvirem a Palavre de Deus. Marcos mostra Jesus cumprindo o preceito. Vai à sinagoga. O verbo “entrar” é utilizado no singular. Algo estranho? Não seria mais lógico que a frase fosse gramaticalmente escrita “Estando Jesus com seus discípulos em Cafarnaum, em dia de sábado entraram na sinagoga?” O autor faz de propósito ao utilizar o verbo no singular. A intenção é a de ensinar para sua comunidade que os discípulos ainda não estão prontos para o que acontecerá.

Na sinagoga, Jesus se põe a ensinar. Ele não participa do culto sinagogal. O evangelista, com o adverbio “imediatamente” enfatiza que a ação de Jesus é ensinar. E a reação dos que ali se encontram é de admiração. “pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (v.22). Marcos faz notar ao seus leitores-ouvintes o tema da exousia de Jesus que chama a atenção da plateia. Ele ensina de modo diferente dos mestres da lei. A Sua autoridade (gr. ἐξουσία) consiste na coerência de Sua vida. O falar coincide com o agir; o Seu agir confirma sua palavra, que, em última análise, é a Palavra do próprio Deus. A autoridade na bíblia consistia no mandato divino que Deus havia dado aos profetas para pregar a Palavra, a fim de fazê-la conhecida. A autoridade de Jesus revela que Ele é o enviado da parte de Deus para pregar a Boa-Notícia do Reino. Nesse sentido, as pessoas presentes na sinagoga escutam e sentem no ensinamento de Jesus a Palavra de Deus. Nessa ordem, o ensino dos líderes religiosos do povo caia no descrédito.

Por três vezes o evangelista mostra Jesus ao interno da sinagoga. Ali emergirão situações de conflitos. O número três é simbólico, não se trata de uma grandeza matemática. Ele substitui o adverbio “sempre”. O catequista pretende acenar para o fato de que “sempre” que Jesus entra numa sinagoga, emergem situações polêmicas, controvérsias, conflitos. Jesus e os lugares sagrados de sua época tornam-se incompatíveis. As instituições de seu tempo encontram-se atrofiadas. Não conseguem suportar a novidade anunciada por Jesus. Por isso, tornam-se enredadas nos sistemas e nas situações de morte.

A cena a seguir serve de metáfora para o que foi dito acima. “Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau” (v.23). Curioso, que no texto original, Marcos identifica a sinagoga como sendo um espaço que não serve mais à Jesus e seus discípulos, bem como para a própria comunidade cristã. No seu evangelho, as casas emergem como lugares apropriados para se fazer experiência com a Palavra de Deus que Jesus anuncia. As casas das pessoas passam a ser um lugar onde se faz uma experiência de vida com Deus. A sinagoga dos líderes religiosos se torna espaço de morte. Lugar de alienação da consciência e da experiência de Deus através de uma prática desconectada da vida concreta, que não projeta para a liberdade enquanto filhos de Deus, mas oprime, domina e aprisiona.

Ora, esperava-se da sinagoga um lugar sadio e repleto da presença de Deus, por ser ali o lugar do estudo de Sua Palavra. Mas o que há de errado ali? Um homem com um espírito impuro, como literalmente escreve Marcos. O evangelista, através desta personagem, denuncia uma instituição religiosa que, com o seu ensinamento, mais do que aproximar o homem de Deus, o afasta. Tanto que, ele é o único personagem presente ao interno da sinagoga. O sistema religioso da época não se dava conta de que a impureza residia ao interno de suas estruturas, como efeito e fruto de seus ensinamentos. O evangelista enfatizou no começo da narrativa, com o adverbio “imediatamente”, que Jesus começou a ensinar na sinagoga. Com o mesmo adverbio ele indica o surgimento de resistências diante da pregação de Jesus, a partir da manifestação do homem possuído pelo espírito impuro.

Por quatro vezes Jesus confrontará alguém possuído por um espírito impuro (gr. πνεύματι ἀκαθάρτῳ / pneúmati akathárto). Não há equívocos neste termo. Não há espaço para dramatizações medievais pitorescas e fantasiosas. O que se pretende dizer com “espírito impuro”? O termo espírito indica uma energia (um dinamismo) que, segundo a concepção judaica da época, quando provém de Deus se chama santa porque santifica a pessoa, separando-a do mal; quando esta energia provém da realidade contrária a Deus, se chama impura, porque mantém o objeto ou o indivíduo na esfera das trevas, distante de Deus. Tornando-se, inclusive, opositor de Deus.

Quem é este homem possuído por um espírito impuro? É um individuo que aderiu voluntária, livre e acriticamente à um sistema de valor e a uma doutrina que o torna refratário e hostil ao ensinamento de Jesus, a ponto de interrompê-lo, uma vez que seu ensinamento provocava adesão à sua pessoa. A adesão que provoca e desestabiliza as estruturas e as lideranças religiosas de seu tempo.

No v.24, Marcos dá voz a esta personagem: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus”. Estranho. É um indivíduo, e fala no plural. Por quê? O evangelista está denunciando um grupo que se sente ameaçado pelo ensinamento de Jesus. São as lideranças judaicas, os escribas, mestres da lei, que veem seu autoritarismo, prestígio e poder de dominação sendo arruinados pela autoridade de Jesus, seu modo de viver e de falar.  Serão eles que Jesus denunciará por estarem ensinando preceitos humanos ao invés da Palavra de Deus. Eles anulavam a Palavra de Deus com suas tradições e preceitos. Este homem possuído pelo espírito impuro – que é símbolo da autoridade dos escribas – que aderiu cega, voluntária e livremente a ela, reage contra Jesus porque sente-se ameaçado em sua zona de conforto e desacreditado diante daquilo que aprendeu. Sente-se perdido e questionado em sua própria existência.

De forma muito hábil, Marcos joga com a personagem do homem obsesso. Ele faz com que o individuo tente reinserir Jesus no âmbito da tradição religiosa, chamando-o de “o Santo de Deus”. Uma expressão que indicava o messias esperado, que interpretaria a Lei de Deus a faria ser observada. “Jesus o intimou: Cala-te e sai dele! Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu” (v.25-26). Jesus interrompe o homem com uma réplica que impossibilita todo o diálogo. No confronto entre o homem possuído pelo espírito impuro e o homem possuído pelo Espírito Santo, é este último que sai vencedor. Mas a libertação não vem sem sofrimento. Ora, deparar-se com o fato de que tudo aquilo que um dia aprendeu como certo, agora, diante de Jesus se desfaz, mediante seu ensino com autoridade, gera uma laceração muito grande, que, de certo modo, descontrói.

A ordem para que o homem se cale é, no horizonte da catequese de Marcos, um motivo literário chamado de segredo messiânico. Este tema é pedagógico e teológico. Pedagógico porque tem a função de conduzir o leitor-discípulo para a realidade teológica de Jesus. Teológico, porque acena para revelação de sua identidade verdadeira, que só acontecerá em Mc 15, com a proclamação feita pelo oficial romano, confessando Jesus como Filho de Deus. A represália ao homem possuído pelo espírito impuro serve de admoestação para que o público que rodeia Jesus não compreenda ou faça uma imagem equivocada dele e de sua missão. Para poder confessá-lo como Santo de Deus, de fato, se fará necessário percorrer o caminho e o sentido de Sua vida até as últimas consequências. Este é o caminho do discípulo.

“E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (v.27). Os que estavam na sinagoga ficaram admirados novamente. E, literalmente, exclamam: “uma doutrina nova?”. O evangelista faz uso deste termo para dizer para sua comunidade que a ação de Jesus é total e qualitativamente superior ao ensino dos escribas, mestres da lei. Qual seria esta doutrina nova? O fato de que Deus não se manifesta na doutrina-ensinamento dos escribas, mas na nova atividade libertadora de Jesus, que transmite e gera vida. Por isso (sem querer me deter muito sobre esta temática, uma vez que ela ocuparia muito mais do que uma reflexão dominical), a atividade exorcista de Jesus não pretende ser uma crônica dos fatos. O evangelista não tem o interesse que ronda o imaginário da tradição extrabíblica. O catequista bíblico tem a intenção de ensinar para a sua comunidade que o Reino que Jesus proclama e vive só pode ser aceito na liberdade da consciência, na adesão voluntária e sem qualquer impedimento que possa provocar, no mesmo ser humano, a alienação, a escravidão e qualquer tipo de opressão oriunda das realidades e situações coniventes com as forças contrárias ao querer e ao projeto de Deus.

A nova doutrina de Jesus é a sua vida e missão que tem a autoridade para promover a libertação e a vida plena de Deus, a qual supera qualitativamente o espírito impuro das estruturas antigas e caducas. O ensinamento de Jesus é uma palavra autorizada – e com autoridade – que gera e promove vida naquele o acolhe.

Um adendo se faz necessário. Nunca se falou tanto de demônios (moralismos e doutrinações alienadoras) do que no cristianismo atual, por mais incrível que pareça. Tais mentalidades, associadas a esses espetáculos parecem atrair as pessoas, hoje, ao interno de nossas comunidades eclesiais, muito mais do que o próprio e fundamental convite ao seguimento a Jesus; do que o discipulado do Reino. O espetáculo sensacionalista, histérico, emotivo, "dogmaticista" (doutrinador) e moralizante vêm atraindo muito mais que a pregação do Evangelho de Cristo e sua vivência encarnada na história, no serviço aos irmãos ao interno e externo da comunidade. Ao espetáculo, o lugar de honra. Ao Evangelho - que realmente liberta a consciência e o agir -, a porta da rua, pois este não rende comunidades cheias. Estejamos atentos. 

A pergunta é sempre válida. Quem somos, a partir do horizonte do texto? Como se encontram as nossas comunidades ditas cristãs? São espaços da pesca de gente, ou reduto das pessoas puramente doutrinadas e alienadas, como nas sinagogas?

Pe. João Paulo Sillio.

Paroquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.


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