sábado, 30 de maio de 2020

HOMILIA DE PENTECOSTES – Jo 20,19-23 (ANO A):




O tempo pascal chega a sua plenitude com o a solenidade de Pentecostes. O Mistério Pascal do Senhor, que compreendem os eventos de sua paixão, morte e ressurreição, engloba a ascensão e o Pentecostes. Cumprindo sua promessa, o Senhor não nos deixa sozinhos. Envia seu Espírito para performar a vida dos discípulos e discípulas de todos os tempos e lugares, inscrevendo (escrevendo a partir de dentro) neles a Sua vida.

O Pentecostes era uma das três maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da páscoa e das tendas. Na Bíblia hebraica é chamada de “festa das semanas”, pois contavam-se sete semanas após a páscoa, mais um dia, o que totalizava cinquenta dias. Por isso, ganhou o nome de “pentecostes” (em grego: πεντηκοστή – pentecoste) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente quinquagésimo dia (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32).

Como todas as festas judaicas, também pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do povo; era a festa da colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus. Com o passar do tempo, ela foi perdendo sua relação com a agricultura, e adquiriu um novo significado, com uma conotação mais religiosa. O motivo da celebração passou, então, a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as partes do mundo, conforme as condições, iam a Jerusalém, para agradecer a Deus pelo dom da Lei dada através de Moisés (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Lucas prefere coincidir o conferimento do Espírito de Jesus à comunidade dos discípulos com a cronologia histórica da festa judaica do Pentecostes, cinquenta dias após a festa da páscoa. O autor do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto como artifício literário e teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo. Para permanecer fiel a Jesus e ao seu Evangelho, a comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés, deve apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo. Conforme vislumbrado na primeira leitura desta solenidade.

Diversamente de João, que faz coincidir o dia da ressurreição de Jesus com o ato da doação de Seu Espírito aos discípulos, símbolo da comunidade que vai sendo ressuscitada paulatinamente, na medida em que vai compreendendo e relendo a vida e a missão do Senhor à luz de sua ressurreição, pautando-se naquele esquema que já nos é conhecido, a saber, a superação das instituições judaicas e levítico-cultuais a partir de Jesus de Nazaré e de sua obra. Ora, a finalidade do quarto evangelista é muito clara: enquanto os hebreus celebravam o dom da Lei, a comunidade cristã celebra o dom do Espírito. Com Jesus não existe mais uma lei externa ao homem a ser observada, mas uma força e dinâmica interna a acolher que irradia um dinamismo de vida e de amor. Este é o dom do Espírito. Agora podemos adentrar no horizonte do texto.

João situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia. Note-se, no entanto, que já não se trata do amanhecer do primeiro dia, após o sábado, como foi descrito no começo da seção narrativa. Aquele indicativo temporal servia para ilustrar a condição da comunidade dos discípulos: ela não havia conseguido desvencilhar-se ainda dos costumes judaicos do repouso sabático e da Lei, e, portanto, não desfrutava da realidade da ressurreição.

A partir deste novo indicativo temporal (ao anoitecer ou “ao entardecer”), João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Sinal, também, de que ela já estava dedicando aquele “primeiro dia” para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade. Isto já é um sinal de que ela venceu o sepulcro (cf. KONINGS, 2005, p. 354).

“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a comunidade tendo dado os passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Ora, Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor.

Eis, que Jesus põe-se no meio deles. É importante a informação dada pelo evangelista, pois ela indica que na comunidade do Ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia nem relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: Jesus. Na Memória do Ressuscitado celebrada pela comunidade ninguém é maior e todos estão referenciados – numa circularidade – ao Senhor.

Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

“A paz esteja convosco (ειρηνη υμιν, Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica plenitude. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento (o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom de sua vida vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada (cf. KONINGS, 2005, p. 355).

Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. Sua condição ressuscitada traz as marcas de sua Paixão. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o “lado”, que representa o coração é o sinal do amor.

“Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do Pai; a deles, na incumbência de Jesus, que constitui com o Pai uma unidade. Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, ἀποστέλλω; mas aqui é απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (καθως, como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e causalidade, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem.

A ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos discípulos.  Ao enviá-los, ele sopra sobre eles o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus sopra nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Ressurreição de Jesus acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. Não é um simples carisma que recebem, algo que vem acrescentar-se à sua vida. É sopro divino; vida nova! É uma nova criação (cf. Sl 104,30). Sua vida tem outra força que antes. A ressurreição e o dom de Seu Espírito é, portanto, uma recriação através do Espírito do Ressuscitado.

“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz.

A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo.

A comunidade cristã deve ser luz e irradiar esta luz de vida e amor para a humanidade, de acordo com a vida e o amor de Jesus. Todos aqueles que veem, recebem e assimilam a vida, o amor e o testemunho da comunidade e são atraídos pelo amor e pela vida de Jesus, refletido através da comunidade, tem o seu passado injusto cancelado. Aqueles que renegam este modo de vida e amor de Jesus irradiados pela comunidade permanecem nas traves e sobre o domínio do pecado. Mas os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade da vida e do testemunho da comunidade cristã.

Nesse sentido, o envio e o mandato que Jesus confere à comunidade não são para julgar ou condenar, mas oferecer a todas as pessoas uma proposta de plenitude de vida. Desta vida no Espírito de Jesus somos tornados participantes pelo batismo-crisma: fomos investidos pelo Espírito, que inscreve a letra de Cristo na página de nossa vida, para vivermos a própria vida do Senhor. O Espírito Santo inscreve (escreve a partir de dentro) Cristo em nós. A este Dom que o Senhor nos dá, chamamos Graça. A Graça é Cristo em nós através de seu Espírito, que nos faz filhos no Filho, a fim de vivermos como este mesmo Filho de Deus.

O texto nos questiona: 1) Estamos celebrando o Pentecostes. Já faz cinquenta dias que estamos envolvidos pela ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição interior: amedrontados e fechados, ou alegres e reedificados na Fé, pela virtude do Ressuscitado, que é seu Espírito em nós? 2) Nossas comunidades encontram-se ressuscitadas e animadas conforme o Espírito, ou seja, conseguem testemunhar Cristo Ressuscitado para o mundo, e, com isso, viver a missão confiada?

Pe. João Paulo Sillio
Arquidiocese de Botucatu-SP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário