O tempo pascal chega a sua plenitude com o
a solenidade de Pentecostes. O Mistério Pascal do Senhor, que compreendem os
eventos de sua paixão, morte e ressurreição, engloba a ascensão e o
Pentecostes. Cumprindo sua promessa, o Senhor não nos deixa sozinhos. Envia seu
Espírito para performar a vida dos discípulos e discípulas de todos os tempos e
lugares, inscrevendo (escrevendo a partir de dentro) neles a Sua vida.
O Pentecostes era uma das três maiores
festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da páscoa e
das tendas. Na Bíblia hebraica é chamada de “festa das semanas”, pois
contavam-se sete semanas após a páscoa, mais um dia, o que totalizava cinquenta
dias. Por isso, ganhou o nome de “pentecostes” (em grego: πεντηκοστή –
pentecoste) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente
quinquagésimo dia (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32).
Como todas as festas judaicas, também
pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do povo; era a festa da
colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela colheita, levando os
melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus. Com o passar
do tempo, ela foi perdendo sua relação com a agricultura, e adquiriu um novo
significado, com uma conotação mais religiosa. O motivo da celebração passou,
então, a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de
Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de
todas as partes do mundo, conforme as condições, iam a Jerusalém, para
agradecer a Deus pelo dom da Lei dada através de Moisés (CORNÉLIO, F, Homilia
dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).
Lucas prefere coincidir o conferimento do
Espírito de Jesus à comunidade dos discípulos com a cronologia histórica da
festa judaica do Pentecostes, cinquenta dias após a festa da páscoa. O autor do
terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto como
artifício literário e teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova
lei é o Espírito Santo. Para permanecer fiel a Jesus e ao seu Evangelho, a
comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés, deve
apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo. Conforme vislumbrado
na primeira leitura desta solenidade.
Diversamente de João, que faz coincidir o
dia da ressurreição de Jesus com o ato da doação de Seu Espírito aos discípulos,
símbolo da comunidade que vai sendo ressuscitada paulatinamente, na medida em
que vai compreendendo e relendo a vida e a missão do Senhor à luz de sua ressurreição,
pautando-se naquele esquema que já nos é conhecido, a saber, a superação das
instituições judaicas e levítico-cultuais a partir de Jesus de Nazaré e de sua
obra. Ora, a finalidade do quarto evangelista é muito clara: enquanto os
hebreus celebravam o dom da Lei, a comunidade cristã celebra o dom do Espírito.
Com Jesus não existe mais uma lei externa ao homem a ser observada, mas uma
força e dinâmica interna a acolher que irradia um dinamismo de vida e de amor.
Este é o dom do Espírito. Agora podemos adentrar no horizonte do texto.
João situa o leitor no tempo e no espaço,
“Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia
das cenas anteriores. O primeiro dia. Note-se, no entanto, que já não se trata
do amanhecer do primeiro dia, após o sábado, como foi descrito no começo da
seção narrativa. Aquele indicativo temporal servia para ilustrar a condição da
comunidade dos discípulos: ela não havia conseguido desvencilhar-se ainda dos
costumes judaicos do repouso sabático e da Lei, e, portanto, não desfrutava da
realidade da ressurreição.
A partir deste novo indicativo temporal
(ao anoitecer ou “ao entardecer”), João dá mostras de que a comunidade está
despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência
da ressurreição. Sinal, também, de que ela já estava dedicando aquele “primeiro
dia” para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Ocorre, igualmente, a
transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos
não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade. Isto
já é um sinal de que ela venceu o sepulcro (cf. KONINGS, 2005, p. 354).
“Estando fechadas, por medo dos judeus, as
portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a
comunidade tendo dado os passos no processo da experiência da ressurreição,
ainda estava bloqueada pelo medo. Ora, Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre
contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o
desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão;
fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a
ausência do Senhor.
Eis, que Jesus põe-se no meio deles. É
importante a informação dada pelo evangelista, pois ela indica que na
comunidade do Ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia nem
relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único
centro: Jesus. Na Memória do Ressuscitado celebrada pela comunidade ninguém é
maior e todos estão referenciados – numa circularidade – ao Senhor.
Para uma comunidade viver realmente os
propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu
existir esteja o Ressuscitado. Encontrando-se com os discípulos (no meio
deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de transformação, oferecendo o
primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que
levanta o ânimo da comunidade fracassada (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in
porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
“A paz esteja convosco (ειρηνη υμιν,
Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente
bíblico. Mas esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude,
e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica
plenitude. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui
conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico,
alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O
Shalom (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais
(Shelamim), cujo pagamento (o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele
sacrifício é a Paz. Aqui, parece
implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da
despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24;
cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam
com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende
ensinar que através do Dom de sua vida vivida, em amor até o fim, tudo
encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas,
ninguém deve mais nada (cf. KONINGS, 2005, p. 355).
Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado
marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a
continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. Sua condição ressuscitada
traz as marcas de sua Paixão. E os principais traços característicos da
identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, do
agir, e o “lado”, que representa o coração é o sinal do amor.
“Como o Pai me enviou, assim também eu vos
envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do
Pai; a deles, na incumbência de Jesus, que constitui com o Pai uma unidade.
Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein
(enviar, ἀποστέλλω; mas aqui é απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal
encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (καθως,
como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e
causalidade, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus
recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem.
A ressurreição de Jesus é uma
ressignificação na vida da Comunidade dos discípulos. Ao enviá-los, ele sopra sobre eles o seu
Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus
sopra nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à
Criação, e por isso, na Ressurreição de Jesus acontece uma nova Criação. Ao
receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força
de vida. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida.
No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao
receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de
vida. Não é um simples carisma que recebem, algo que vem acrescentar-se à sua
vida. É sopro divino; vida nova! É uma nova criação (cf. Sl 104,30). Sua vida
tem outra força que antes. A ressurreição e o dom de Seu Espírito é, portanto,
uma recriação através do Espírito do Ressuscitado.
“A quem perdoardes os pecados eles lhes
serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O
Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus.
Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos
discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor
do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. A
comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as
situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz.
A comunidade tem a responsabilidade de
fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade
seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo
1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se
espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito
Santo.
A comunidade cristã deve ser luz e
irradiar esta luz de vida e amor para a humanidade, de acordo com a vida e o
amor de Jesus. Todos aqueles que veem, recebem e assimilam a vida, o amor e o
testemunho da comunidade e são atraídos pelo amor e pela vida de Jesus,
refletido através da comunidade, tem o seu passado injusto cancelado. Aqueles
que renegam este modo de vida e amor de Jesus irradiados pela comunidade
permanecem nas traves e sobre o domínio do pecado. Mas os pecados ficarão
retidos quando houver omissão da comunidade da vida e do testemunho da
comunidade cristã.
Nesse sentido, o envio e o mandato que
Jesus confere à comunidade não são para julgar ou condenar, mas oferecer a
todas as pessoas uma proposta de plenitude de vida. Desta vida no Espírito de
Jesus somos tornados participantes pelo batismo-crisma: fomos investidos pelo
Espírito, que inscreve a letra de Cristo na página de nossa vida, para vivermos
a própria vida do Senhor. O Espírito Santo inscreve (escreve a partir de
dentro) Cristo em nós. A este Dom que o Senhor nos dá, chamamos Graça. A Graça
é Cristo em nós através de seu Espírito, que nos faz filhos no Filho, a fim de
vivermos como este mesmo Filho de Deus.
O texto nos questiona: 1) Estamos
celebrando o Pentecostes. Já faz cinquenta dias que estamos envolvidos pela
ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição
interior: amedrontados e fechados, ou alegres e reedificados na Fé, pela
virtude do Ressuscitado, que é seu Espírito em nós? 2) Nossas comunidades
encontram-se ressuscitadas e animadas conforme o Espírito, ou seja, conseguem
testemunhar Cristo Ressuscitado para o mundo, e, com isso, viver a missão
confiada?
Pe. João Paulo Sillio
Arquidiocese de Botucatu-SP.
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