quarta-feira, 1 de abril de 2020

Pilulas bíblicas: SABEDORIA EM TEMPOS DE CRISE:





SABEDORIA EM TEMPOS DE CRISE:

A bíblia ou as Sagradas Escrituras, a qual contém a Palavra de Deus concernente à salvação da pessoa humana, é o relato da experiência que o mesmo ser humano fez com Deus. Estas Escrituras Sagradas, num determinado ponto da história tocou as fibras mais íntimas da realidade existencial do ser humano. Realidade esta também envolvida nas crises e sofrimentos diários. Pode-se afirmar que a Bíblia, em grande parte de seus livros e blocos literários, foi escrita, de Gênesis ao Apocalipse – do Bereshit ao Maranatha – em contextos de Crise e sofrimentos humanos e comunitários. Sua função e utilidade foi a de reanimar a fé do povo de Deus, a fim de que recuperasse a esperança e renovasse sua fidelidade ao Deus sempre fiel e presente nas lutas e nas agruras da gente sofrida.

Os autores bíblicos não escreviam a esmo, muito menos de modo abstrato; tampouco descontextualizados ou alienados da história e da realidade. Eles procuravam responder ao contexto no qual estavam profundamente envolvidos, o qual suscitava perguntas, levantava dúvidas quanto à vida e à fé, questionando o status quo. Nesse sentido, a Bíblia, em todo o seu tesouro, nasce do chão da vida do povo. Não foi diferente com bloco literário pertencente ao Antigo Testamento chamado de Livros Sapienciais.

A Sabedoria sobre a qual nos empenharemos e nos debruçaremos, e que leva o título desta partilha, é esta: a literatura Sapiencial de Israel. Devemos esmiuçar ainda mais o título deste ensaio. A Sabedoria em tempos de crise [e poderíamos dizer, em tempos de sofrimento e de ameaça ao dom da vida, que poderia levar à desesperança], não é um apanhado de ditos abstratos, tampouco é como aquela “receita (de bolo quase) infalível”, beirando a livros de autoajuda. A Sabedoria de Israel a qual me refiro é o bloco literário que contém os livros sapienciais, a saber: Jó, Qohelet (Eclesiastes), Provérbios, Sirácida (Eclesiástico), Sabedoria e Cântico dos cânticos.

No entanto, privilegiaremos um estudo sobre o Livro de Jó, apenas. Dele nos deleitaremos, saboreando e visualizando sua aventura teológica, isto é, com Deus, mesmo diante da grande questão humana do sofrimento e da crise. Tentaremos fazer um estudo exegético-hermenêutico, ou seja, técnico e interpretativo visando colher a mensagem central e útil para este nosso tempo. Tomaremos alguns capítulos apenas, dada a grandiosidade do escrito, mas que apresentam as linhas mestras para a compreensão desta obra que iluminou a vida do povo de Israel sofredor, em tempos de crise, e que poderá nos ajudar ler também hoje os sinais de nosso tempo.

Contudo, para alcançar este objetivo, se faz necessário esboçar uma introdução ao bloco dos Sapienciais, visualizando seu contexto geral, as preocupações e as chaves de leitura para a sua compreensão. Num segundo momento, adentraremos no conjunto da obra de Jó, para colher a mensagem para esta hora da história, na qual vivemos. E, se assim conseguirmos, chegarmos à mesma conclusão a que chegou a personagem Jó, a respeito de sua experiência com Deus e com o sofrimento: “Fui leviano ao falar. Que é que vou responder? Porei minhas mãos sobre a boca” (Jó 40,44).

LITERATURA SAPIENCIAL DE ISRAEL – Um movimento que se tornou Escritura:

1.1 Um pouco de história:

Uma contextualização da história do povo de Israel se faz necessária, a fim de adentramos na literatura sapiencial de Israel, que, embora tenha compartilhado do mesmo afã que seus vizinhos pelo tema da sabedoria, produziu tesouros incomparavelmente superiores aos demais povos, e com originalidade sem precedentes. Ou seja, a Sabedoria de Israel, embora tenha entrado em contato com outras reflexões sapienciais do mundo antigo, é total e absolutamente original.

No princípio, bem datado, por volta de 1200 a.C, tem-se, por consenso, a formação do povo de Israel, enquanto povo propriamente dito, após os eventos que conhecemos bem, os acontecimentos exodais, ou seja, toda a experiência que o povo faz com o Deus dos pais, que revela-se libertador dos hebreus, no país do Egito. Os hebreus tornam-se povo de Deus a partir da experiência de libertação, após o Êxodo, a sua saída da escravidão do Egito e das mãos do Faraó, e a travessia do Mar (Ex 12 – 15). Entre 1200 ao ano 1000, temos o período dos Juízes (lideranças carismáticas, não institucional), o período tribal, e não havia uma autoridade humana, enquanto liderança definitiva. Em seguida, instaura-se a monarquia de Israel, por Saul, Davi e Salomão. A monarquia nasce contra a vontade de Deus (1Sm 8), e, concomitante a ela, como resposta de Deus, nasce o movimento profético, antagônico à monarquia de Israel, que, assemelhando-se aos povos vizinhos, assume uma monarquia tributarista. 

Em 930, ocorre a divisão entre Israel e Judá. O reino do Norte (Israel) sob o reinado de Jeroboão estabelece sua capital em Siquém. O reino do Sul, com sede em Jerusalém abrigava a dinastia davídica, com Roboão. Não faltaram os alertas proféticos, Ao norte e ao sul, não faltaram alertas proféticos. 

Mas em 722 temos a queda da Samaria (norte), após investida da potência dominante da época, a Assíria. O modo de dominação assíria era muito perverso, uma vez que desconfigurava a organização social do pais e da localidade submetida, e desfigurava a região ao transportar povos de outras localidades para o pais recém-dominado, e, com isso, deportando, no caso, os israelitas para outras regiões, igualmente. Os profetas atuantes no reino de Israel alertaram, mas o rei e as elites não ouviram.

Algo semelhante acontece em Judá. Os profetas vão alertando o reino do sul, mas não deu outra, e em 587 instaura-se o domínio babilônico, que culminou com a deportação total das elites e da classe pensante de Jerusalém para a Babilônia – uma vez que a primeira deportação aconteceu em 598-97. E entra-se no período que chamamos de Exílio babilônio. Período de crise de identidade e de fé para o povo de Israel cativo, mas de muita produção textual. Foi nesse período do século V a.C, que se deu a redação dos textos bíblicos do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia hebraica, de Gn à Dt, no qual encontra-se a Torah, a Lei / Instrução de Deus). O exílio termina em 538, e o povo retoma o caminho para a terra de Israel, após o édito de Ciro, rei persa, que havia dominado a Babilônia.

Algumas considerações importantes sobre este período do exílio, numa perspectiva de um “antes, durante e depois”. Com o Exílio, a monarquia israelita torna-se uma instituição fracassada. As duas causas básicas são: idolatria e injustiça social (além de uma conjuntura internacional bem delineada). Ao se falar de idolatria, devem ser consideradas duas formas: a primeira, é a adoração de um deus falso; a segunda é mais sutil e perversa, que é adorar uma falsa imagem ou concepção fantasiosa do Deus verdadeiro; uma visão míope, pervertida ou atravessada por ideologias.

Mas por que ambos os reinos não deram, a seu tempo, ouvidos aos profetas? O povo e a monarquia tinham razões para não acreditar no Exílio: 1) a impossibilidade de se romper com um plano salvífico inaugurado no Êxodo, Deus não quebraria esta lógica; 2) a noção da promessa aos patriarcas (em Abraão, com Descendência, Terra e benção universal), a Moisés e à Casa de Davi (2Sm 4,17 / / 1Cr 7,14); a indestrutibilidade do templo; 3) seria crer que Marduk seria superior a YHWH. Assim, conceber a ruína do reino, do povo e de sua fé, bem como sua ida para o exílio, seriam coisas absurdas ao judeu piedoso. Nessa perspectiva, a história de Israel já estaria dada e determinada, provocando um relaxamento do povo, sem nenhuma consequência. E, aqui, entra a perversidade de uma visão atrofiada sobre Deus: idolatria. Setecentos anos depois de sua fundação Israel vê-se sem nada. Sem templo, altar e sacerdotes. Um povo vazio por dentro e esmagado por fora, divido, e, em parte, descrente de Deus.

O exílio cria um problema teológico sério, gerando uma crise de fé: o que fazer quando as instituições fracassam (religiosa e governamental)? Contudo, o que para o povo abalado em sua crise de Fé, pois na mentalidade deles YHWH havia sido derrotado por Marduk (deus babilônico), e, por isso estariam ali, sofrendo as consequências, o exílio é expressão do juízo divino e não da passividade para os profetas daquele tempo.

Por exemplo, Jeremias verá a Graça na desgraça, e fará uma leitura positiva do exílio. Já o profeta Ezequiel desmascarará as ideologias ainda presentes no imaginário do povo. Assim, Israel descobre que precisará se reinventar e ressignificar as crises para poder sobreviver e continuar sua missão dentro projeto de aliança com Deus. Nesse sentido, os profetas do exílio foram os que animaram o povo de Deus no período da crise e do sofrimento, sendo como que as armações dos óculos, cujas lentes, para melhor enxergar, são Palavra de Deus. Foi assim que eles iluminaram a vida e a fé daquele povo numa terra estrangeira.

1.2 Movimento sapiencial e suas características:

O pós-exílio chega, o povo pode retornar para sua terra e reconstruir. O retorno é marcado pelo domínio dos persas (538 – 333). O retorno não foi somente geográfico; foi a oportunidade de se reinventar, a tentativa de reencontrar e reconstruir a identidade perdida. Nesse período, a política mudou, pois não se tem mais a monarquia; os que retornaram tem uma visão mais teocrática, e desenvolve-se a visão sobre o sacerdócio; a vida religiosa do povo mudou, o aparato do templo precisa ser reconstruído, e o resultado: a sociedade também mudou, e vive, mais uma vez, a crise de identidade. A experiência forçará a necessidade de uma reflexão nova, e aí a presença de Deus.

Ocorrem deslocamentos na vida do povo. No pré-exílio existia o palácio (casa do rei) e o templo (casa de Deus e o sacerdote). No pós-exílio tem-se somente a casa (como um símbolo para a Sabedoria de YHWH), e vinculada a ela, o tema da família. E quando se fala deste contexto, entra em cena a esfera feminina (muitos textos personificarão a sabedoria como a mulher, mesmo dentro daquele contexto de cultura patriarcal, cuja figura central era a do pai que ensinava seu filho; e deve-se lembrar que a família era a base no período tribal, no pré-exílio). Então duas coisas importantes emergem no processo da reconstrução: a família e a Palavra de Deus. 

Sabe-se, ainda, que no pré-exílio existiam os profetas; no pós-exílio, o sábio ocupa, agora, o seu lugar, podendo-se afirmar que o ministério da profecia teria se deslocado para a figura do sábio. Porque, na verdade, o modo tradicional de ser profeta já não correspondia mais à nova realidade, mediante os deslocamentos ditos acima. É necessário se reinventar, e por isso, a profecia reaparece em forma de sapiência. 

O período da reconstrução seguiu a mentalidade dos reformadores Esdras (Es) e Neemias (Ne). Os quais reformaram o culto, a fidelidade à Lei, e a pureza da Raça. Ficando, portanto, estabelecidas as bases do Judaísmo a partir deste contexto. E seguiu-se a reconstrução.

No século III a.C, pelos idos de 333, surge Alexandre Magno. Ele, com sua sede de conquista, estende seus domínios também sobre o povo judeu. Israel cai novamente em mãos estrangeiras. Começa o domínio helênico (grego) sobre Israel. Em 2Mc 1,3, o seu autor afirma que “a terra silenciou diante deste Alexandre”. Ele expandiu sobre o mundo as influências do helenismo e sua mentalidade, transformando-a na cultura globalizante da época. Contudo, na Palestina, mais do que a ameaça militar, para Israel sobrevém a ameaça cultural helênica. O domínio Grego era tão visível na forma de vida. 2Mc 4 diz o seguinte: “Jazão, sumo sacerdote, tão logo assumiu o poder, fez passar os seus irmãos de raça a um novo estilo de vida”. Este estilo de vida são os costumes contrários à Lei. Costumes estrangeiros, promotores da idolatria. Na verdade, se tratava de duas visões de mundo, de duas mentalidades. E na Grécia, emergia em todo o seu esplendor a filosofia. 

Como fazer frente e sobreviver aos costumes e estilo de vida dos gregos? Como permanecer fiel à Aliança e à Palavra de Deus em tempos de crise? Como sabemos, já não existem mais aqueles homens que botavam a vida entre o povo e os líderes, denunciando destes as corrupções, infidelidades e desvirtuamentos do projeto de Deus, os profetas, uma vez que não existe mais a monarquia em Israel. 

Emerge o fenômeno da Sapiência, juntamente com outras duas opções, as revoltas contra a ordem vigente (ver a guerra dos Macabeus, descrita nos dois blocos narrativos que levam este e nome), e o movimento apocalíptico (que trata-se de um gênero literário que não temos espaço para trabalhar aqui, dado que este, por hora não é nosso escopo).

Os israelitas, através da literatura sapiencial, tinham três opções: 1) refutar completamente o helenismo; 2) deixar-se engolir por ele ou, 3) dialogar. Esta última imperou: diálogo. Tanto é, que os estudiosos acham que os livros da Sabedoria e Eclesiástico teriam nascido com essa intenção, todavia a inteira literatura sapiencial é assim. Fato é, ou ela foi escrita nesse período helênico, ou teve sua redação final ali. 

Os sábios israelitas, preferindo o diálogo, abriram-se sem perder a essência e a originalidade; modernizaram-se sem renunciar a essência da Fé. Com isso, os sábios de Israel codificam a linguagem da fé, traduzindo esse patrimônio para uma linguagem apta a dialogar com gregos. Pela sapiência bíblica, o sábio israelita faz a teologia de Israel dialogar com a razão helenista a partir da experiência da vida, e não com o mundo das ideias; dialoga com a cultura comum dos povos vizinhos e com a cultura moderna. Rompe com as fronteiras. A fé, nesse sentido, e como sempre, ilumina a experiência da vida, embora seja a experiência a impedir que a fé se torne fundamentalista (exemplo: Jó; Sb 13,1-9). 

A sabedoria do oriente antigo (da qual Israel é influenciado, mas que difere diametralmente daquela dos gregos) é, primeiramente, prática, pois brota do chão da vida e a ela visa; é, por isso, aberta tanto ao tempo como ao espaço. Nessa perspectiva, ela é ecumênica, por isso facilita o diálogo, pois ela percorre os ambientes judaicos, muçulmanos, hindu, ela ultrapassa os credos; é voltada para os problemas e dramas existenciais humanos (não é mero existencialismo, tampouco abstracionismo ou idealismo). Nesse particular da sapiência do oriente antigo, a sabedoria é mais antropocêntrica, pois busca unir razão e experiência, pois diferentemente da cultura grega, o mundo semita não sabe abstrair, não concebe dicotomias, sendo para eles tudo integrado. Por exemplo, o homem: para a antropologia e sapiência semítico-bíblica, o ser humano deve ser concebido, compreendido e visto em sua integralidade, em sua inteireza. 

A sabedoria de Israel tem raízes nesse oriente antigo, todavia ela ganhou proporções exorbitantes e possui originalidade: não foi mera cópia, mas uma releitura à luz da fé javista. Israel recicla, recria, e reelabora o seu contributo e aos poucos vai seguindo seu próprio caminho. No início da literatura sapiencial israelita, as temáticas da aliança e da lei, não aparecem nos primeiros livros. Mas num segundo período, a sabedoria literária evolui e essas temáticas aparecem. As obras literárias estão mais preocupadas com o destino do indivíduo, mas distingue-se dos povos vizinhos ao ler essa mesma sorte da pessoa à luz da fé. Aos poucos, a sapiência israelita vai sendo inserida num esquema teológico: o saber passa a ser visto com um apelo de Deus ao homem; passa a ser mediadora da revelação e educadora dos povos. Aos poucos, Israel se dá conta de que só Deus é plenamente sábio (Jó 28), que seu saber transcende o homem! A sabedoria passa a ser um atributo divino, uma qualidade sua.

Mas ele inseriu seu saber e sabedoria na criação: ali seu saber se mostra visível ao homem (Sb 13,5). No NT, essa perspectiva aparece quando a Carta aos Efésios diz ser Jesus imagem visível do Deus invisível.

A sabedoria passa a ser personificada, e fala como pessoa (Pr 1, 20-23; 3,16); ela sai da boca de Deus (Sir 24); age com Deus na criação (Pr 8,27-30); ela é manifestação da sua glória (Sb 7,24-26). Aos poucos o humanismo, ou antropocentrismo sapiencial vai dando lugar à Sapiência teológica. O sábio israelita descobre que a sabedoria que ajuda o homem a ser feliz não é só aprendizagem, ou tarefa, e por isso pode ser encontrada, também, na porta da cidade (Pr 8,1-3), como na Lei (Dt 4,5-8; Sir 24,22-27). Nesse sentido, quando o sábio escuta a Lei ele, na verdade, executa uma tarefa. Mas é também Dom (Sir 1,2; Pr 2,6) pelo temor e pela oração (1Rs 3,6-14; Pr 1,7; 9,10; 15,32).

Neste nível, a sapiência passa a ser patrimônio da lei de Israel. Ela não é conduzida por sábios apenas (Mt 11,25); ela não é monopólio dos acadêmicos, mas revelada aos pequenos e humildes. Os ditos sapienciais são práticos, e servem como sinais ou setas que indicam a rota para meta. É necessário decodificar o sinal (quem não decodifica assume uma burrice prática – insensatez).

Ora, o homem pasma contemplando a natureza, por exemplo, porque ela, em sua ordem cósmica, denuncia a desordem do ser humano. De fato, às vezes tendemos a destruir a ordem que nos questiona (que nos denuncia nossa desordem). Neste nível da história, a teologia sapiencial desmitifica a ideia de que Deus se manifesta somente nos prodígios da história da salvação. Não só nesse processo Deus se manifesta, mas também no criado – na criação como elemento da revelação de Deus. Aqui entra um elemento místico importante: se Deus se revela também na criação e na história, se faz necessário descobrir o extraordinário de Deus no ordinário da vida, e não no sensacionalismo, (como dizia Santa Tereza D’Ávila: Deus está também entre as panelas).

O Sábio bíblico é o artesão sensato da própria vida, consciente e livre. É tarefa de fadiga e glória. Isso requer sabedoria, sapiência, prática de vida, habilidade (a isso a Bíblia chama de hockmá). Portanto, a sabedoria bíblica é uma oferta de sensatez, de sentido, cujo valor máximo é a vida consciente, livre e feliz do homem. Nesse nível, a sapiência é tarefa: um modo de proceder e agir prático, com prudência e reflexão, como conhecimento de causa, com discernimento e escolha.

Muito poderia ser dito sobre a Sabedoria de Israel. Mas como estamos no nível da introdução temática, tal ficaria anti metodológico. Para concluir esta introdução é importante salientar o quanto esta Sabedoria de Israel coloca o judeu piedoso em crise, questionando-o, e a seu sistema religioso. A isso chamamos de crise da sabedoria. Não dela propriamente, mas causada por ela.

Se por um lado, a realidade humana é polimorfa, por outro lado, a capacidade de percepção é limitada e não podemos dar resposta a tudo. Aqui surgem os limites. O primeiro limite é a ambiguidade: há sábios que montam e sustentam o sistema político, usam do poder para manter e conservar o status quo (Ex 7,11, chama de hakam (sábio) aos sábios e videntes que sustentam o sistema do faraó; e de sábios, os amigos de Jó, que o tentam convence-lo; mas há sábios que questionam o sistema vigente, como é o caso do próprio Jó e em Qohelet). Outro limite da sabedoria é que o saber pode também produzir gente moralizante e fatalista (amigos de Jó).

Limite mais sério, ainda, é a incapacidade de resolver alguns dramas humanos; neste ponto, a alegria, o trabalho, os bens, são valores apreciados pelos sábios como sinal de bênçãos, mas virá o sábio de Qohelet que questionará essa concepção (mas isso o faz ser feliz?). A riqueza basta para dar sentido à vida? Como explicar o sucesso dos ímpios, ainda que aparente? Por que a morte? Haja visto que esses livros ainda não possuem uma perspectiva de vida pós-morte (exceto Sb que expressará mais tarde). Como explicar o justo infeliz e o inocente que sofre (é a figura de Jó)? São incógnitas que a sabedoria bíblica se debaterá, não conseguindo resolver.

Estes questionamentos revelam aquilo que o sábio não sabe: a sapiência não tem resposta para tudo. Estas perguntas revelam que a vontade soberana de Deus não pode ser objeto de nossos cálculos (e aqui estamos no âmbito da sapiência bíblica). Por exemplo, Jó percebe o absurdo das respostas sábias, aparentemente, e muito bem argumentadas; percebe nelas um racionalismo, que esgota o mistério. 

A teologia da retribuição, enquanto intra-mundanda, mecanicista, reflexão formal, descobre-se como ineficaz e limitada. Aquele esquema fixo e matemático não consegue dar sentido as coisas. E aqui a sapiência de Israel entra em crise sobretudo com Jó e Qohelet.

Mediante essa crise, chegando no seu limite, descobrindo sua ineficácia diante dos problemas insolucionados, a Sabedoria se salva. O que parecia ser um fim, na verdade revelou-se um recomeço, abrindo-se ao mistério, recebendo como Dom o que a pura razão não conseguia. Aonde termina a filosofia, continua a teologia (a razão ainda é doxa, enquanto a fé é paradoxal). Nesta perspectiva, da abertura ao dom frente à razão mecânica da religiosidade de Israel, apregoada pelos amigos de Jó, ao interno desta obra, é que poderemos lançar os olhares para a personagem. E, então, cruzar-lhe o limiar.

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