SABEDORIA
EM TEMPOS DE CRISE:
A bíblia ou as Sagradas
Escrituras, a qual contém a Palavra de Deus concernente à salvação da pessoa
humana, é o relato da experiência que o mesmo ser humano fez com Deus. Estas
Escrituras Sagradas, num determinado ponto da história tocou as fibras mais íntimas
da realidade existencial do ser humano. Realidade esta também envolvida nas
crises e sofrimentos diários. Pode-se afirmar que a Bíblia, em grande parte de
seus livros e blocos literários, foi escrita, de Gênesis ao Apocalipse – do Bereshit
ao Maranatha – em contextos de Crise e sofrimentos humanos e
comunitários. Sua função e utilidade foi a de reanimar a fé do povo de Deus, a
fim de que recuperasse a esperança e renovasse sua fidelidade ao Deus sempre
fiel e presente nas lutas e nas agruras da gente sofrida.
Os autores bíblicos não
escreviam a esmo, muito menos de modo abstrato; tampouco descontextualizados ou
alienados da história e da realidade. Eles procuravam responder ao contexto no
qual estavam profundamente envolvidos, o qual suscitava perguntas, levantava
dúvidas quanto à vida e à fé, questionando o status quo. Nesse sentido,
a Bíblia, em todo o seu tesouro, nasce do chão da vida do povo. Não foi
diferente com bloco literário pertencente ao Antigo Testamento chamado de Livros
Sapienciais.
A Sabedoria sobre a qual
nos empenharemos e nos debruçaremos, e que leva o título desta partilha, é
esta: a literatura Sapiencial de Israel. Devemos esmiuçar ainda mais o título
deste ensaio. A Sabedoria em tempos de crise [e poderíamos dizer, em tempos de
sofrimento e de ameaça ao dom da vida, que poderia levar à desesperança], não é
um apanhado de ditos abstratos, tampouco é como aquela “receita (de bolo quase)
infalível”, beirando a livros de autoajuda. A Sabedoria de Israel a qual me
refiro é o bloco literário que contém os livros sapienciais, a saber: Jó, Qohelet (Eclesiastes),
Provérbios, Sirácida (Eclesiástico), Sabedoria e Cântico dos cânticos.
No
entanto, privilegiaremos um estudo sobre o Livro de Jó, apenas. Dele nos
deleitaremos, saboreando e visualizando sua aventura teológica, isto é, com
Deus, mesmo diante da grande questão humana do sofrimento e da crise.
Tentaremos fazer um estudo exegético-hermenêutico, ou seja, técnico e
interpretativo visando colher a mensagem central e útil para este nosso tempo.
Tomaremos alguns capítulos apenas, dada a grandiosidade do escrito, mas que
apresentam as linhas mestras para a compreensão desta obra que iluminou a vida
do povo de Israel sofredor, em tempos de crise, e que poderá nos ajudar ler
também hoje os sinais de nosso tempo.
Contudo,
para alcançar este objetivo, se faz necessário esboçar uma introdução ao bloco dos
Sapienciais, visualizando seu contexto geral, as preocupações e as chaves de
leitura para a sua compreensão. Num segundo momento, adentraremos no conjunto
da obra de Jó, para colher a mensagem para esta hora da história, na qual
vivemos. E, se assim conseguirmos, chegarmos à mesma conclusão a que chegou a
personagem Jó, a respeito de sua experiência com Deus e com o sofrimento: “Fui
leviano ao falar. Que é que vou responder? Porei minhas mãos sobre a boca” (Jó
40,44).
LITERATURA SAPIENCIAL DE ISRAEL –
Um movimento que se tornou Escritura:
1.1 Um pouco de história:
Uma contextualização da
história do povo de Israel se faz necessária, a fim de adentramos na literatura
sapiencial de Israel, que, embora tenha compartilhado do mesmo afã que seus
vizinhos pelo tema da sabedoria, produziu tesouros incomparavelmente superiores
aos demais povos, e com originalidade sem precedentes. Ou seja, a Sabedoria de
Israel, embora tenha entrado em contato com outras reflexões sapienciais do
mundo antigo, é total e absolutamente original.
No princípio, bem datado,
por volta de 1200 a.C, tem-se, por consenso, a formação do povo de Israel,
enquanto povo propriamente dito, após os eventos que conhecemos bem, os
acontecimentos exodais, ou seja, toda a experiência que o povo faz com o Deus
dos pais, que revela-se libertador dos hebreus, no país do Egito. Os hebreus
tornam-se povo de Deus a partir da experiência de libertação, após o Êxodo, a
sua saída da escravidão do Egito e das mãos do Faraó, e a travessia do Mar (Ex
12 – 15). Entre 1200 ao ano 1000,
temos o período dos Juízes (lideranças carismáticas, não institucional), o
período tribal, e não havia uma autoridade humana, enquanto liderança
definitiva. Em seguida, instaura-se a monarquia de Israel, por Saul, Davi e
Salomão. A monarquia nasce contra a vontade de Deus (1Sm 8), e, concomitante a
ela, como resposta de Deus, nasce o movimento profético, antagônico à monarquia
de Israel, que, assemelhando-se aos povos vizinhos, assume uma monarquia
tributarista.
Em 930, ocorre a divisão
entre Israel e Judá. O reino do Norte (Israel) sob o reinado de Jeroboão
estabelece sua capital em Siquém. O reino do Sul, com sede em Jerusalém
abrigava a dinastia davídica, com Roboão. Não faltaram os alertas proféticos, Ao
norte e ao sul, não faltaram alertas proféticos.
Mas em 722 temos a queda
da Samaria (norte), após investida da potência dominante da época, a Assíria. O
modo de dominação assíria era muito perverso, uma vez que desconfigurava a
organização social do pais e da localidade submetida, e desfigurava a região ao
transportar povos de outras localidades para o pais recém-dominado, e, com
isso, deportando, no caso, os israelitas para outras regiões, igualmente. Os
profetas atuantes no reino de Israel alertaram, mas o rei e as elites não
ouviram.
Algo semelhante acontece
em Judá. Os profetas vão alertando o reino do sul, mas não deu outra, e em 587
instaura-se o domínio babilônico, que culminou com a deportação total das
elites e da classe pensante de Jerusalém para a Babilônia – uma vez que a
primeira deportação aconteceu em 598-97. E entra-se no período que chamamos de Exílio babilônio. Período de crise de identidade e de fé para o povo de Israel cativo,
mas de muita produção textual. Foi nesse período do século V a.C, que se deu a
redação dos textos bíblicos do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia
hebraica, de Gn à Dt, no qual encontra-se a Torah, a Lei / Instrução de Deus).
O exílio termina em 538, e o povo retoma o caminho para a terra de Israel, após
o édito de Ciro, rei persa, que havia dominado a Babilônia.
Algumas considerações
importantes sobre este período do exílio, numa perspectiva de um “antes,
durante e depois”. Com o Exílio, a monarquia israelita torna-se uma instituição
fracassada. As duas causas básicas são: idolatria e injustiça social (além de
uma conjuntura internacional bem delineada). Ao se falar de idolatria, devem
ser consideradas duas formas: a primeira, é a adoração de um deus falso; a
segunda é mais sutil e perversa, que é adorar uma falsa imagem ou concepção
fantasiosa do Deus verdadeiro; uma visão míope, pervertida ou atravessada por
ideologias.
Mas por que ambos os
reinos não deram, a seu tempo, ouvidos aos profetas? O povo e a monarquia
tinham razões para não acreditar no Exílio: 1) a impossibilidade de se romper
com um plano salvífico inaugurado no Êxodo, Deus não quebraria esta lógica; 2)
a noção da promessa aos patriarcas (em Abraão, com Descendência, Terra e benção
universal), a Moisés e à Casa de Davi (2Sm 4,17 / / 1Cr 7,14); a
indestrutibilidade do templo; 3) seria crer que Marduk seria superior a YHWH. Assim,
conceber a ruína do reino, do povo e de sua fé, bem como sua ida para o exílio,
seriam coisas absurdas ao judeu piedoso. Nessa perspectiva, a história de
Israel já estaria dada e determinada, provocando um relaxamento do povo, sem
nenhuma consequência. E, aqui, entra a perversidade de uma visão atrofiada
sobre Deus: idolatria. Setecentos anos depois de sua fundação Israel vê-se sem
nada. Sem templo, altar e sacerdotes. Um povo vazio por dentro e esmagado por
fora, divido, e, em parte, descrente de Deus.
O exílio cria um problema
teológico sério, gerando uma crise de fé: o que fazer quando as instituições
fracassam (religiosa e governamental)? Contudo, o que para o povo abalado em
sua crise de Fé, pois na mentalidade deles YHWH havia sido derrotado por Marduk
(deus babilônico), e, por isso estariam ali, sofrendo as consequências, o
exílio é expressão do juízo divino e não da passividade para os profetas
daquele tempo.
Por exemplo, Jeremias verá
a Graça na desgraça, e fará uma leitura positiva do exílio. Já o profeta Ezequiel
desmascarará as ideologias ainda presentes no imaginário do povo. Assim, Israel
descobre que precisará se reinventar e ressignificar as crises para poder
sobreviver e continuar sua missão dentro projeto de aliança com Deus. Nesse
sentido, os profetas do exílio foram os que animaram o povo de Deus no período
da crise e do sofrimento, sendo como que as armações dos óculos, cujas lentes,
para melhor enxergar, são Palavra de Deus. Foi assim que eles iluminaram a vida
e a fé daquele povo numa terra estrangeira.
1.2 Movimento sapiencial
e suas características:
O pós-exílio chega, o
povo pode retornar para sua terra e reconstruir. O retorno é marcado pelo domínio dos persas
(538 – 333). O
retorno não foi somente geográfico; foi a oportunidade de se reinventar, a
tentativa de reencontrar e reconstruir a identidade perdida. Nesse período, a
política mudou, pois não se tem mais a monarquia; os que retornaram tem uma
visão mais teocrática, e desenvolve-se a visão sobre o sacerdócio; a vida
religiosa do povo mudou, o aparato do templo precisa ser reconstruído, e o
resultado: a sociedade também mudou, e vive, mais uma vez, a crise de
identidade. A experiência forçará a necessidade de uma reflexão nova, e aí a
presença de Deus.
Ocorrem
deslocamentos na vida do povo. No pré-exílio existia o palácio (casa do rei) e
o templo (casa de Deus e o sacerdote). No pós-exílio tem-se somente a casa (como
um símbolo para a Sabedoria de YHWH), e vinculada a ela, o tema da família. E
quando se fala deste contexto, entra em cena a esfera feminina (muitos textos
personificarão a sabedoria como a mulher, mesmo dentro daquele contexto de
cultura patriarcal, cuja figura central era a do pai que ensinava seu filho; e
deve-se lembrar que a família era a base no período tribal, no pré-exílio).
Então duas coisas importantes emergem no processo da reconstrução: a família e
a Palavra de Deus.
Sabe-se,
ainda, que no pré-exílio existiam os profetas; no pós-exílio, o sábio ocupa,
agora, o seu lugar, podendo-se afirmar que o ministério da profecia teria se deslocado
para a figura do sábio. Porque, na verdade, o modo tradicional de ser profeta já
não correspondia mais à nova realidade, mediante os deslocamentos ditos acima.
É necessário se reinventar, e por isso, a profecia reaparece em forma de
sapiência.
O
período da reconstrução seguiu a mentalidade dos reformadores Esdras (Es) e
Neemias (Ne). Os quais reformaram o culto, a fidelidade à Lei, e a pureza da
Raça. Ficando, portanto, estabelecidas as bases do Judaísmo a partir deste
contexto. E seguiu-se a reconstrução.
No
século III a.C, pelos idos de 333, surge Alexandre Magno. Ele, com sua sede de conquista,
estende seus domínios também sobre o povo judeu. Israel cai novamente em mãos
estrangeiras. Começa o domínio helênico (grego) sobre Israel. Em 2Mc 1,3, o seu
autor afirma que “a terra silenciou diante deste Alexandre”. Ele expandiu sobre
o mundo as influências do helenismo e sua mentalidade, transformando-a na
cultura globalizante da época. Contudo, na Palestina, mais do que a ameaça
militar, para Israel sobrevém a ameaça cultural helênica. O domínio Grego era
tão visível na forma de vida. 2Mc 4 diz o seguinte: “Jazão, sumo sacerdote, tão
logo assumiu o poder, fez passar os seus irmãos de raça a um novo estilo de
vida”. Este estilo de vida são os costumes contrários à Lei. Costumes
estrangeiros, promotores da idolatria. Na verdade, se tratava de duas visões de
mundo, de duas mentalidades. E na Grécia, emergia em todo o seu esplendor a
filosofia.
Como
fazer frente e sobreviver aos costumes e estilo de vida dos gregos? Como
permanecer fiel à Aliança e à Palavra de Deus em tempos de crise? Como sabemos,
já não existem mais aqueles homens que botavam a vida entre o povo e os
líderes, denunciando destes as corrupções, infidelidades e desvirtuamentos do
projeto de Deus, os profetas, uma vez que não existe mais a monarquia em
Israel.
Emerge
o fenômeno da Sapiência, juntamente com outras duas opções, as revoltas contra
a ordem vigente (ver a guerra dos Macabeus, descrita nos dois blocos narrativos
que levam este e nome), e o movimento apocalíptico (que trata-se de um gênero
literário que não temos espaço para trabalhar aqui, dado que este, por hora não
é nosso escopo).
Os
israelitas, através da literatura sapiencial, tinham três opções: 1) refutar
completamente o helenismo; 2) deixar-se engolir por ele ou, 3) dialogar. Esta
última imperou: diálogo. Tanto é, que os estudiosos acham que os livros da
Sabedoria e Eclesiástico teriam nascido com essa intenção, todavia a inteira
literatura sapiencial é assim. Fato é, ou ela foi escrita nesse período
helênico, ou teve sua redação final ali.
Os
sábios israelitas, preferindo o diálogo, abriram-se sem perder a essência e a
originalidade; modernizaram-se sem renunciar a essência da Fé. Com isso, os
sábios de Israel codificam a linguagem da fé, traduzindo esse patrimônio para
uma linguagem apta a dialogar com gregos. Pela sapiência bíblica, o sábio
israelita faz a teologia de Israel dialogar com a razão helenista a partir da
experiência da vida, e não com o mundo das ideias; dialoga com a cultura comum
dos povos vizinhos e com a cultura moderna. Rompe com as fronteiras. A fé,
nesse sentido, e como sempre, ilumina a experiência da vida, embora seja a
experiência a impedir que a fé se torne fundamentalista (exemplo: Jó; Sb
13,1-9).
A sabedoria do oriente
antigo (da qual Israel é influenciado, mas que difere diametralmente daquela
dos gregos) é, primeiramente, prática, pois brota do chão da vida e a ela visa;
é, por isso, aberta tanto ao tempo como ao espaço. Nessa perspectiva, ela é
ecumênica, por isso facilita o diálogo, pois ela percorre os ambientes
judaicos, muçulmanos, hindu, ela ultrapassa os credos; é voltada para os
problemas e dramas existenciais humanos (não é mero existencialismo, tampouco
abstracionismo ou idealismo). Nesse particular da sapiência do oriente antigo,
a sabedoria é mais antropocêntrica, pois busca unir razão e experiência, pois
diferentemente da cultura grega, o mundo semita não sabe abstrair, não concebe
dicotomias, sendo para eles tudo integrado. Por exemplo, o homem: para a
antropologia e sapiência semítico-bíblica, o ser humano deve ser concebido,
compreendido e visto em sua integralidade, em sua inteireza.
A sabedoria de Israel tem
raízes nesse oriente antigo, todavia ela ganhou proporções exorbitantes e
possui originalidade: não foi mera cópia, mas uma releitura à luz da fé
javista. Israel recicla, recria, e reelabora o seu contributo e aos poucos vai
seguindo seu próprio caminho. No início da literatura sapiencial israelita, as
temáticas da aliança e da lei, não aparecem nos primeiros livros. Mas num
segundo período, a sabedoria literária evolui e essas temáticas aparecem. As
obras literárias estão mais preocupadas com o destino do indivíduo, mas
distingue-se dos povos vizinhos ao ler essa mesma sorte da pessoa à luz da fé. Aos poucos, a sapiência
israelita vai sendo inserida num esquema teológico: o saber passa a ser visto
com um apelo de Deus ao homem; passa a ser mediadora da revelação e educadora
dos povos. Aos poucos, Israel se dá conta de que só Deus é plenamente sábio (Jó
28), que seu saber transcende o homem! A sabedoria passa a ser um atributo
divino, uma qualidade sua.
Mas ele inseriu seu saber
e sabedoria na criação: ali seu saber se mostra visível ao homem (Sb 13,5). No NT, essa
perspectiva aparece quando a Carta aos Efésios diz ser Jesus imagem visível do
Deus invisível.
A sabedoria passa a ser
personificada, e fala como pessoa (Pr 1, 20-23; 3,16); ela sai da boca de Deus
(Sir 24); age com Deus na criação (Pr 8,27-30); ela é manifestação da sua
glória (Sb 7,24-26). Aos poucos o humanismo,
ou antropocentrismo sapiencial vai dando lugar à Sapiência teológica. O sábio
israelita descobre que a sabedoria que ajuda o homem a ser feliz não é só
aprendizagem, ou tarefa, e por isso pode ser encontrada, também, na porta da
cidade (Pr 8,1-3), como na Lei (Dt 4,5-8; Sir 24,22-27). Nesse sentido, quando
o sábio escuta a Lei ele, na verdade, executa uma tarefa. Mas é também Dom (Sir
1,2; Pr 2,6) pelo temor e pela oração (1Rs 3,6-14; Pr 1,7; 9,10; 15,32).
Neste nível, a sapiência
passa a ser patrimônio da lei de Israel. Ela não é conduzida por sábios apenas
(Mt 11,25); ela não é monopólio dos acadêmicos, mas revelada aos pequenos e humildes. Os ditos sapienciais são
práticos, e servem como sinais ou setas que indicam a rota para meta. É
necessário decodificar o sinal (quem não decodifica assume uma burrice prática
– insensatez).
Ora, o homem pasma
contemplando a natureza, por exemplo, porque ela, em sua ordem cósmica,
denuncia a desordem do ser humano. De fato, às vezes tendemos a destruir a
ordem que nos questiona (que nos denuncia nossa desordem). Neste nível da
história, a teologia sapiencial desmitifica a ideia de que Deus se
manifesta somente nos prodígios da história da salvação. Não só nesse processo
Deus se manifesta, mas também no criado – na criação como elemento da revelação
de Deus. Aqui entra um elemento místico importante: se Deus se revela também na
criação e na história, se faz necessário descobrir o extraordinário de Deus no
ordinário da vida, e não no sensacionalismo, (como dizia Santa Tereza D’Ávila:
Deus está também entre as panelas).
O Sábio bíblico é o
artesão sensato da própria vida, consciente e livre. É tarefa de fadiga e
glória. Isso requer sabedoria, sapiência, prática de vida, habilidade (a isso a
Bíblia chama de hockmá). Portanto, a sabedoria bíblica é uma oferta de
sensatez, de sentido, cujo valor máximo é a vida consciente, livre e feliz do
homem. Nesse nível, a sapiência é tarefa: um modo de proceder e agir prático,
com prudência e reflexão, como conhecimento de causa, com discernimento e
escolha.
Muito poderia ser dito
sobre a Sabedoria de Israel. Mas como estamos no nível da introdução temática,
tal ficaria anti metodológico. Para concluir esta introdução é importante
salientar o quanto esta Sabedoria de Israel coloca o judeu piedoso em crise,
questionando-o, e a seu sistema religioso. A isso chamamos de crise da
sabedoria. Não dela propriamente, mas causada por ela.
Se por um lado, a
realidade humana é polimorfa, por outro lado, a capacidade de percepção é
limitada e não podemos dar resposta a tudo. Aqui surgem os limites. O primeiro
limite é a ambiguidade: há sábios que montam e sustentam o sistema político,
usam do poder para manter e conservar o status quo (Ex 7,11, chama de hakam
(sábio) aos sábios e videntes que sustentam o sistema do faraó; e de sábios, os
amigos de Jó, que o tentam convence-lo; mas há sábios que questionam o sistema
vigente, como é o caso do próprio Jó e em Qohelet). Outro limite da sabedoria é
que o saber pode também produzir gente moralizante e fatalista (amigos de Jó).
Limite mais sério, ainda,
é a incapacidade de resolver alguns dramas humanos; neste ponto, a alegria, o
trabalho, os bens, são valores apreciados pelos sábios como sinal de bênçãos,
mas virá o sábio de Qohelet que questionará essa concepção (mas isso o faz ser
feliz?). A riqueza basta para dar sentido à vida? Como explicar o sucesso dos
ímpios, ainda que aparente? Por que a morte? Haja visto que esses livros
ainda não possuem uma perspectiva de vida pós-morte (exceto Sb que expressará
mais tarde). Como explicar o justo infeliz e o inocente que sofre (é a figura
de Jó)? São incógnitas que a sabedoria bíblica se debaterá, não conseguindo
resolver.
Estes questionamentos
revelam aquilo que o sábio não sabe: a sapiência não tem resposta para tudo.
Estas perguntas revelam que a vontade soberana de Deus não pode ser objeto de
nossos cálculos (e aqui estamos no âmbito da sapiência bíblica). Por exemplo, Jó
percebe o absurdo das respostas sábias, aparentemente, e muito bem argumentadas;
percebe nelas um racionalismo, que esgota o mistério.
A teologia da
retribuição, enquanto intra-mundanda, mecanicista, reflexão formal, descobre-se
como ineficaz e limitada. Aquele esquema fixo e matemático não consegue dar
sentido as coisas. E aqui a sapiência de Israel entra em crise sobretudo com Jó
e Qohelet.
Mediante essa crise,
chegando no seu limite, descobrindo sua ineficácia diante dos problemas insolucionados,
a Sabedoria se salva. O que parecia ser um fim, na verdade revelou-se um recomeço,
abrindo-se ao mistério, recebendo como Dom o que a pura razão não conseguia.
Aonde termina a filosofia, continua a teologia (a razão ainda é doxa, enquanto
a fé é paradoxal). Nesta perspectiva, da abertura ao dom frente à razão
mecânica da religiosidade de Israel, apregoada pelos amigos de Jó, ao interno
desta obra, é que poderemos lançar os olhares para a personagem. E, então, cruzar-lhe o
limiar.
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