sábado, 22 de maio de 2021

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES – Jo 20,19-23:


A festa do Pentecoste recordava, para o povo de Israel, num primeiro momento de sua história, a festa das primícias, os primeiros dons das colheitas, apresentadas a Deus após cinquenta dias da semeadura. Com os eventos pascais do Êxodo, no AT, a dimensao agrícola recebeu um novo significado: o dom da Lei comunicada ao povo no deserto. Este sentido tornou-se mais forte na vida e na memória de Israel. Todavia, enquanto a comunidade de Israel celebrava a entrega da Lei no Sinai, a comunidade de Jesus celebrava o dom do Seu próprio Espírito. Para as comunidades cristãs, o pentecoste da antiga lei se reveste de um novo e pleno sentido: o dom não mais de uma lei externa, mas do próprio Espírito – dinamismo gerador de vida e de amor – de Deus, por meio de Jesus. O evangelho da liturgia deste dia santo, que coroa toda a celebração do mistério pascal de Cristo – paixão, morte, ressurreição/ascensão e pentecoste –, recupera a leitura de Jo 20,19-23, já meditada no segundo domingo pascal. Como o Espírito do Ressuscitado tudo ressignifica, o texto de hoje deve ser lido nesta mesma perspectiva.

O pentecoste joanino coincide com o dia mesmo da ressurreição de Jesus. O evangelista pretende distanciar-se das festas judaicas, uma vez que elas sempre foram ocasião de controvérsia e conflito para Jesus. O Quarto Evangelho pretende, ao situar o Dom da nova e definitiva Lei, o Espírito, no dia da ressurreição para mostrar aos seus leitores que todo o sentido da antiga lei e do sistema cultual do povo de Israel encontram-se superados pela vida e obra de Jesus. Por isso, o dom do Espírito se dá no domingo pascal e não cinquenta dias depois, conforme narrado por Lucas.

João situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia da semana, o qual revela-se também o último, o oitavo. O número oito na tradição das primeiras comunidades simboliza a criação levada à plenitude. Mas a variação temporal é importante. A partir deste novo dado, João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade. Isto já é um sinal de que ela está vencendo as forças de morte.

“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a comunidade tendo dado os passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Ora, Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor. Todavia, é preciso fundir os horizontes. O leitor é chamado a unir o panorama temporal da comunidade dos discípulos, que fazia a experiência com o ressuscitado com a realidade da comunidade joanina dos anos 90 d.C, que sofria perseguição por parte dos Judeus e das autoridades romanas.

Eis que Jesus manifesta-se no meio deles, conforme a narrativa. É importante a informação dada pelo evangelista. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Na comunidade do Ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia, nem relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: Jesus. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que recupera o ânimo da comunidade fracassada e amedrontada.

“A paz esteja convosco (gr. ειρηνη υμιν, Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas esta saudação se repete por três vezes, o que indica um dom que restabelece a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia, é símbolo do ser humano em sua tríplice composição, conforme a antropologia judaica (corpo, alma e espírito). Toda condição humana, em todos os seus dinamismos é, portanto, abraçada pelo dom de Jesus. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalôm (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (hbr. Shelamim), cuja retribuição que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom da vida existencialmente vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada. Mas nada de inconsequências! A passagem do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a paz é doada novamente no v.21a, para equilibrar a comunidade. A paz não significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; a capacidade de assumir livremente as consequências das opções feitas.

Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Amor traduzido em serviço é o sinal que o Espírito de Jesus comunica e inscreve na vida dos discípulos e da comunidade do Reino.

Ao enviar os discípulos, em continuidade à sua missão, na comunhão de amor e de vida com o Pai, Jesus sopra sobre eles seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. Por isso, a ressurreição e doação do Espírito por parte de Jesus é uma nova Criação. Mas, ao receber o Espírito Santo – dinamismo de vida e de amor de Jesus – a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida.

A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades. O que perdoa os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão, os discípulos que recusam-se a amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade e do discípulo diante do mandamento do amor, e quando existir a atitude de negação do fiel em relação à pessoa de Jesus.

Nesse sentido, o envio e o mandato que Jesus confere à comunidade não são para julgar ou condenar, mas oferecer a todas as pessoas uma proposta de plenitude de vida. Desta vida no Espírito de Jesus somos tornados participantes pelo batismo-crisma: fomos investidos pelo Espírito, que inscreve a letra de Cristo na página de nossa vida, para vivermos Sua própria vida. O Espírito Santo inscreve (escreve a partir de dentro) Cristo em nós. A este Dom que o Senhor nos dá, chamamos Graça. A Graça é Cristo em nós através de seu Espírito, que nos faz filhos, a fim de vivermos como este mesmo Filho de Deus. 

Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

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