sábado, 11 de março de 2023

III DOMINGO DA QUARESMA - JO 4,5-42 (relato breve)


 

A liturgia do terceiro domingo da quaresma apresenta o relato do encontro entre Jesus e a samaritana, extraído do Quarto Evangelho, o qual fará parte da catequese quaresmal dos próximos domingos. O episódio divide-se em três momentos: 1) Jesus e a samaritana junto do poço de Jacó (4,1-26); 2) um diálogo instrutivo aos discípulos (4,27-38); 3) o encontro com os samaritanos, que passam a crer Nele a partir do testemunho da mulher, e pela escuta da palavra do Senhor (4,39-42). Interessa para a nossa meditação o primeiro e o segundo momento. O texto litúrgico é longo. Por isso, pinçaremos alguns versículos que são capazes de oferecer chaves de leitura para a interpretação da mensagem catequética para este tempo quaresmal.

Uma chave de leitura para se compreender este texto evangélico é o tema da novidade trazida por Jesus. Novidade, esta, dita escatológica, a qual foi esboçada em Jo 2. Ali, o autor pretendendia mostrar, pelo gesto profético de Jesus, purificando o templo de Jerusalém, que os sacrifícios do sistema ritual levítico ficavam superados mediante a novidade da Obra realizada por Ele. No capítulo seguinte, Jo 3, desenrola-se um diálogo com um certo Nicodemos, chefe dos fariseus, que vê naquele rabí uma novidade pertencente ao âmbito de Deus. Por isso, com um solene  “amém, amém”, o Jesus joanino introduz um discurso sobre a experiência com Deus, que se dá pelo novo nascimento através da Agua e do Espírito, elementos que não devem ser tomados na materialidade e superficialidade em si, mas que acenam para realidade do pertencimento ao âmbito do divino: a vida de Deus que emerge na carne de Jesus. Isto é, a novidade/últimidade da presença de Deus Nele, superando tudo o que é antigo.

Na sequência, o Quarto Evangelista situa a narrativa do  capítulo quatro. O quadro geográfico mostra Jesus de volta a Galileia. Ele vai a uma cidade chamada Sicar. Ali, conforme Gn 33,19, Jacó havia comprado um terreno e dado a José, para que os seus descendentes fossem sepultados. Parece que o autor também se serviu do relato de Gn 24 (o poço de Nacar) como pano de fundo para o relato, pois havia ali uma fonte, ou mina d’agua. Optamos traduzir poço por fonte, porque dá a ideia de água corrente, imagem importante para o evangelista.

João nos informa que Jesus parou para descansar, ao meio-dia, a hora Sexta. Naquela hora apareceu uma mulher samaritana para tirar água. Não era o melhor momento do dia, uma vez que elas iam bem cedo, no frescor da manhã para executar a tarefa. Ele, então, entabula um diálogo, pedindo-lhe água. Ela lhe responde: “tu, que és judeu, pede de beber a mim que sou uma mulher samaritana?” Não é sem sentido esta fina ironia do autor: pretende-se ressaltar a diferença cultural e social existentes  entre Judeus e Samaritanos. Interessante, que o evangelista dá peso à cena, ao mostrar o diálogo entre elas na ausência dos discípulos, uma vez que um judeu não conversava em público com uma mulher. Muito menos com uma samaritana. Ora, aos olhos de seus adversários, o fato de Jesus ter iniciado uma conversa com um samaritano já seria motivo de grave falta, tanto mais o uso de um utensílio pertencente à um deles.

Jesus, como no caso de Nicodemos, começa o diálogo com a samaritana mediante um paradoxo: o reconhecimento do Dom (da presença) de Deus naquele que pede água para beber, já que seria Ele a dar uma água que mataria a sede. Ou seja, mal-entendido tem a função de ensinar uma novidade para a mulher: ela tem que aprender algo totalmente novo.

No nível da comunidade joanina, bem como para as gerações futuras, tanto a samaritana como Nicodêmos são figuras simbólicas dos candidatos à Fé cristã. Aquele que pede, na verdade é quem pode dar/doar, pois oferece algo totalmente novo, e além do que se pode esperar. Mas isso, a samaritana, Nicodêmos e o discípulo-leitor (candidato ao batismo e a fé) devem compreender progressivamente, porque ainda nada entenderam, e, por isso, permanecem apenas na materialidade  da água.

Quando se fala da Água que brota para a vida eterna, na verdade está se referindo a água, que no crente produz a existência da vida do âmbito de Deus, que põe fim à arbitrariedade do que reina neste tempo. É um convite para que a samaritana receba como dom esta água viva, que faz brotar o tempo pleno, já presente em Jesus. É claro que o leitor joanino (que pode ser o iniciado ou catecúmeno na fé) pode associar este tema à graça do batismo.

O v.12 traz, aqui, o recurso da Ironia Joanina: “Por acaso, és maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço e que dele bebeu, como também seus filhos e seus animais?” Estas palavras da samaritana, na verdade, pretendem afirmar que Ele é, sim, maior que Jacó. Mas ela não conseguiu romper com o nível material, por isso pede água comum, a fim de não ter mais sede, nem precisar vir tira-la da fonte. 

Então, Jesus experimenta uma didática mais radical para derrubar as resistências daquela mulher. Pede que ela lhe chame o marido. Imediatamente ela responde que não é casada. O mestre confirma e declara que ela, de fato, possuíra cinco maridos, e, naquele momento, possuía um sexto (emprestado), que não era dela. Isto faz com que a mulher reconheça em Jesus algo de inexplicável. Típico dos grandes profetas de Israel. Ele consegue romper com a resistência da mulher.

Quem são os seis maridos da samaritana? No nível do texto, são símbolos para os povos que foram implantados pelos assírios, ali na Samaria (2Rs 17), por ocasião da dominação e deportação de 722 a.C, quando da queda do Reino de Israel – babilônios, assírios, persas, elamitas, gregos e os romanos. Estes povos trouxeram consigo suas religiões, seus deuses e costumes, os quais passaram a ser cultuados e assimilados também pelos israelitas que ali permaneciam. Temos cinco povos e culturas que não são dali, e um sexto que é tomado de empréstimo.

A mensagem central desta simbologia é a seguinte: abandonar os esquemas antigos e de morte que ela vive para abraçar a novidade de Deus agindo em Jesus. Deixar de lado a incompletude e a falta, uma vez que, ao interno da tradição bíblica, o número seis acena para a imperfeição e incompletude. A sede desta mulher, que a faz ir ao poço ao meio-dia, revela a inconsistência, a falta, a insatisfação, a frustração da vida sem sentido que possuía, buscando preencher seu vazio. É vida atrofiada pelos esquemas antigos. Esta é a sua sede. E o primeiro passo, nesse sentido, seria o reconhecimento em Jesus, de um definitivo revelador, que traz uma nova experiência, a qual supera o conhecimento dela. Contudo, ao pedir água para ela, é Jesus quem demonstra ter sede. Neste encontro, somos chamados a acolher a realidade daquela que tem sede de sentido e significado da vida, e, portanto do divino, com aquele que tem sede da nossa humanidade, a fim de dar sentido a ela.

Os versículos se interconectam. A samaritana tem sede do divino, como exposto acima. Mas ainda está no nível material do lugar e do espaço. Por isso ela interroga Jesus acerca do  lugar autêntico para adoração de Deus, se seria o monte Garizim ou Jerusalém, no Templo (v.22). Ele a convida para uma reflexão: insinua que os samaritanos adoravam aquilo que não conheciam, porque abandonaram e negaram a pregação profética, fazendo até mesmo uma versão própria da Lei. Já os judeus do sul conheciam Aquele a quem adoravam, porque permaneceram fieis à pregação dos profetas, bem como à Torah. Assim, para João, o critério que torna alguém discípulo de Jesus é o de acolher o dom de Deus presente Nele, como Seu revelador pleno, e na atenção à Palavra de Deus, pois elas revelam e testemunham quem Jesus é!

O v. 23 é realmente explosivo: “Vêm a Hora, e é Agora”.  É agora que se pode começar a passar para a vida do âmbito de Deus – que irrompe na história, no aqui e agora. A partir daqui, aparece pela primeira vez, o tema joanino da Escatologia presente: a eternidade de Deus, isto é, a qualidade da vida divina já se torna presente através da atuação, vida e obra de Jesus. O lugar da adoração do Pai não é no Garizim, nem em Jerusalém, mas em Espírito e em Verdade.

O que significa isso? Primeiramente, desmistifiquemos aquela intepretação errônea de que a expressão “em Espírito e em Verdade” insinue uma adoração intimista ou individualista. A expressão joanina muito menos acenaria para uma concepção carismática da religião, com suas manifestações extraordinárias ou sobrenaturais. O texto joanino não permite entender “adoração em Espírito e em Verdade” como fenômenos (psíquicos) que de carismáticos não tem nada, ou daquilo que se costumou identificar como os “repousos espirituais” ou “fenômenos das línguas”. Nada disso.

Em Espírito e em Verdade significa assumir e viver a vida de Jesus em sua própria história; deixar que o sentido pleno de sua história, missão, opção e modo de ser perpasse-lhe a vida e a história, de modo a ser uma continuidade da vida do próprio Senhor. Prestar um culto agradável a Deus com a própria vida encarnada na história e iluminada pela fé. Em simples palavras: a adoração à Deus não se dá num lugar, mas através de um modo de viver. Uma vida pautada pelo Espírito e o amor-fiel (Verdade) de Deus, doada em serviço e em amor até o fim, que deram o tom da existência e da Obra de Jesus.

Nessa lógica, a mulher diz no v.25: “Sei que o messias-Ungido vem. Quando ele vier, ele nos esclarecerá todas essas coisas”. Ela imagina o ungido de Deus como o novo Moisés, que explicará todas as coisas. Quando ele vier saciará a sua sede. Ele será a plenitude da Lei e da profecia. Nesse sentido, a (reveladora) declaração de Jesus assume um peso importante: “Sou eu quem está falando contigo”. Ele se coloca na condição de cumprir o desejo de conhecimento do Dom de Deus que a mulher samaritana tem. Jesus é o anunciador e revelador de Deus, e o dom de sua vida e Espírito constituem a água viva, que transforma a existência do discípulo numa fonte que jorra água viva. Sacia a sede do ser humano através de sede que tem de nós. Ao sentir sede de nós, abre a oportunidade do encontro conosco. Para que através desta experiência, transforme nossa sede, nossa aridez, nossa incompletude, nossa falta, em fonte de água viva.

A lição pragmática que o texto pretende dar ao leitor-discípulo é a seguinte. Aquele que faz a experiência da novidade que Jesus traz, o Dom de Deus, que na verdade é Deus mesmo, não pode ficar indiferente. Deverá deixar fluir a partir de si a água da vida divina, para que os outros possam fazer a mesma experiência. O discípulo que faz a experiência com Jesus e seu Dom (seu Espírito em nós, que dá vida), não pode se tornar um estanque que represa a água da vida, mas deve mover-se na direção do outro.

Assim, a samaritana aprendeu a lição: vai, então, anunciar essa novidade para os seus. Ela deixou ali o seu cântaro. De poço seco e sedento de água, torna-se uma fonte de água vive, em movimento, na direção dos outros. Da condição de discípula, ela passa para a condição de missionária e vai anunciar aos seus o modo através do qual se vive a vida mesma Deus.

E nós, a partir da experiência pessoal e comunitária com Jesus, somos poço (que retém a água, a ponto de deixa-la parada) ou somos fonte que está sempre a nutrir?

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.

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