sábado, 25 de março de 2023

V DOMINGO DA QUARESMA - Jo 11,1-45:

 


A liturgia deste quinto domingo da Quaresma, apresenta-nos o capítulo onze do Evangelho segundo João, o qual relata a reanimação de Lázaro. Esta narrativa carrega consigo o último sinal realizado por Jesus ao interno da catequese joanina. O fiel leitor ainda se situa no livro dos sinais (Jo 1,18 – 12,51), os quais preparam para a Hora da Glória (Jo 13 – 20), e tratam, através de seu sentido simbólico, de apontar e revelar a identidade do Senhor.

O relato da reanimação de Lázaro foi inserido entre as ameaças de morte a Jesus por parte dos fariseus (que o evangelista chama de “os judeus”), após o episódio de Betesda (Jo 5), da multiplicação dos pães (Jo 6, o discurso do pão da vida), e, posterior ao sinal da cura do cego de nascença, em Jo 9, que resulta na alegoria do pastor ideal, em Jo 10,38. Todo este panorama narrativo está eivado de crises, mal-entendidos, polêmicas e muita ira por parte das autoridades judaicas em relação à Jesus. Por isso, imediatamente a realização do sinal de Lázaro (Jo 11,46-54), as autoridades se põem a tramar descaradamente a morte do mestre. Uma fina ironia emerge deste complô: na iminência da sua morte, Jesus responde com o dom da vida. É a mensagem que o relato pretende transmitir.

Convém recordar que, o sinal narrado não trata propriamente de uma ressurreição, mas de uma “reanimação”. A ressurreição é a passagem da morte para uma vida definitiva e plena, graças à ressurreição de Cristo. A narrativa joanina relata a reanimação de um corpo, já em estado de decomposição (a nota cronológica “quatro dias após a morte”, indica também esta realidade biológica), que foi recuperado. Todavia, continuava corruptível. O que Jesus faz não é apenas prolongar os dias de Lázaro, mas, através deste sinal extraordinário, revelar que a vida plena se encontra definitivamente Nele. Por isso, o discípulo-leitor não pode ficar preso na superfície do gesto profético e simbólico que o sinal representa. Deve ir além. Mirar a ressurreição do Senhor.

No capítulo onze, pela terceira vez, Jesus faz uso do nome divino “Eu Sou (hbr. YHWH)” para fazer uma auto-revelação. A primeira aconteceu após o sinal do Pão, em Jo 6 (“Eu sou o Pão da vida”). Na narrativa da cura do cego de nascença, ele se declara como luz do mundo (“Eu sou a luz do mundo”). E neste relato, pela terceira vez, João emprega para Jesus o atributo divino, “Eu sou a ressurreição e a vida...” Este dito se conecta com o capítulo anterior, Jo 10, onde o Senhor havia dito “Eu lhes dou a vida eterna e ninguém será tirado de minhas mãos”. Agora, neste capítulo, o evangelista mostra qual será o destino de quem se encontra nas mãos do Senhor, que se confiou e acreditou Nele.

Agora se pode mergulhar no horizonte da narrativa. Dada a extensão do relato, se fará necessário, mais uma vez, pinçar alguns versículos que funcionarão como chave de leitura para a interpretação do texto. O autor situa a cena: “Havia um doente, Lázaro, de Betânia, povoado de Maria e de sua irmã Marta” (v. 1). O evangelista apresenta Betânia (lit. “casa da aflição”), como o espaço de uma comunidade cristã ideal, onde a fraternidade, de fato, reinava. As personagens são apresentadas como irmãos. Não há maior e menor entre eles; não há hierarquia entre aqueles que a compõem. Uma comunidade ideal. Todavia, ainda presa à mentalidade equivocada, resistente e tradicionalista. Recorde-se, que todas as vezes em que o termo povoado é citado nos textos bíblicos está sempre carregado deste aspecto negativo: rigorismo, mentalidade fechada e ultrapassada; resistência e oposição.

O adjetivo “amado” faz alusão ao discípulo amado: este, não é um personagem identificável, como muito se pensou, chegando a identificá-lo com o próprio evangelista João, o que seria um equívoco. Ele é símbolo para todo aquele que assumiu o propósito, a vida, a missão e a obra realizada por Jesus como programa para sua vida. É, portanto, imagem da comunidade que adere a Jesus e seu projeto. Lázaro pode ser contado entre estes.

No v.4, Jesus, informado sobre a enfermidade de Lázaro, responde que essa enfermidade é ocasião para a Glória de Deus. Este versículo faz memória do que fora dito em Jo 9,3, quando se referia do mesmo modo ao cego de nascença e sua enfermidade. O catequista bíblico relembra seus leitores dos milagres que Moisés realizou diante do povo, no Livro do Êxodo. Estes eram sinais da manifestação da Glória de Deus.  No AT, a Glória de Deus significava sua presença no meio do povo. O que o evangelista quer ensinar para sua comunidade é o seguinte: em Jesus de Nazaré, Deus está presente. Sua vida, missão e obra, através dos sinais que opera revelam a presença de Deus, agindo nele. O que o Senhor realizará, para o bem dos discípulos (ocasião favorável), será um sinal que atesta o Pai presente Nele.

Demos um salto na narrativa, e tomemos o versículo 17: “Quando Jesus chegou, encontrou Lázaro sepultado havia quatro dias”. Esta informação é importante, porque revela a ideia da impossibilidade de vida. Na Palestina, os rituais funerários aconteciam no mesmo dia da morte, devido às condições climáticas. Pensava-se, na cultura da sociedade de Jesus, que após este dia, o espírito deixava definitivamente o corpo e descia, definitivamente para o lugar chamado Sheol, a mansão dos mortos (a qual era, conforme a mentalidade, uma caverna subterrânea. Interessante é que o sinal se realiza neste quarto dia. Se Jesus tivesse atendido o chamado, vindo antes do terceiro dia, operado o sinal, a “glória de Deus não seria manifestada” aos olhos daquela gente.

No v.19, o evangelista informa que muitos judeus (devido à proximidade de Jerusalém) tinham vindo para Betânia consolar Marta e Maria. A primeira é mais agitada que a outra. E é ela quem toma a atitude e vai encontrar a Jesus nas portas da cidade. A morte gerava desespero e medo. Curioso, é o fato de que os Judeus (metáfora para os chefes religiosos do povo) se dirigiram à Betânia para consolar aquelas duas irmãs, mas na verdade, para falar de um Deus que ressuscita os mortos. Mas Jesus as revelará o Deus que dá a vida. Por isso, o evangelista informa que o Senhor não entra no povoado, tampouco na casa da família de Betânia. O catequista quer ensinar que Ele não era conivente com essa mentalidade. Somente rompendo com antigas estruturas e mentalidades de morte e obscurantismo se torna possível vivenciar o triunfo da vida: de fora do povoado, Jesus chama as irmãs a saírem.

No v.21, Marta, reprova a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. Mas mesmo assim, eu sei que o que pedires a Deus, ele to concederá”. Haviam avisado a Jesus de que seu amigo, Lázaro, estava doente. Jesus, por sua vez, nem se moveu. Então a personagem Marta expressa toda a sua reprovação. Ora, pensemos: na expectativa de Marta estava a possibilidade de que o Senhor realizasse um gesto poderoso em relação ao irmão defunto, amado pelo mestre. Como que Ele, que havia curado o filho do funcionário de Herodes, um estranho; reabilitado a vida de um enfermo na fonte de Betesda, também estranho e anônimo; feito lama (recriou) os olhos de um cego nascença desconhecido, poderia tratar dessa forma um amigo? O verbo “saber” é característico desta personagem. Por isso ela sugere que Jesus peça ao Pai que faça alguma coisa.

Aqui, se faz necessário adentrar um pouco na fineza da redação de João, que é um verdadeiro teólogo e mestre da fé para sua comunidade. Ele usa dois verbos diferentes. O verbo “pedir”, aplicado à Marta. Ele expressa a exigência de um inferior ao seu superior. Enquanto que, para expressar uma necessidade entre iguais, se utiliza o verbo “perguntar”. Ora, ela diz a Jesus qualquer coisa que acene para uma pergunta deste ao pai. Mas utiliza o verbo pedir. O que expressa a compreensão dela acerca de Jesus: um mediador, apenas. Ela não entendeu que Jesus e o Pai são um, ou que as obras do Filho são as obras de Deus. Deseja tão somente uma intervenção que prolongue a vida do irmão. A personagem acredita no Deus que ressuscita os mortos. Mas o Deus e Pai de Jesus é o Deus vivente, e, portanto, dos vivos e não dos mortos. Um Deus que não ressuscita os mortos, mas que doa aos vivos uma vida capaz de superar a realidade da morte.

Jesus muda o sentido da morte e da vida: Respondeu-lhe Jesus: “Teu irmão ressuscitará (v.23)”. Ele não responde Marta como se desse a entender “eu o ressuscitarei teu irmão”, mas, “Teu irmão ressuscitará”. A ressurreição do irmão dela não é uma intervenção miraculosa de Jesus, mas simplesmente o efeito da persistência da vida definitiva que é comunicada pelo Espírito de Jesus. Será o irmão dela a ressuscitar. Nem mesmo Deus o ressuscita. Atenção: estamos no horizonte da narração. Por isso, é claro que já se sabe que a personagem fora já revivificada. João não narra esse fato, porque Jesus ainda não enviou o Espírito Santo, de acordo com a cronologia do relato. O fará na Hora da Cruz e após ressurreição, de modo a ensinar aos discípulos que a morte não interrompe a vida.

Marta não gosta da resposta de Jesus, e retruca expressando a mentalidade da época (v.24): “Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia”. Lembra o Livro de Daniel, o qual menciona, pela primeira vez, a ressurreição nos últimos tempos. Pensamento este, presente na cabeça dos fariseus. Ela nada mais faz que reproduzir esta concepção. O versículo mostra uma abertura progressiva da fé da personagem acerca da ressurreição, que necessita ainda ser ressignificada.

Então, no v.25, Jesus, solenemente declara: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá”. João recorda as palavras do Senhor, utilizando uma fórmula de revelação, que alude ao nome divino “Eu Sou (YHWH)”. Emerge também aqui o tema da Escatologia presente, muito cara aos seus escritos e à sua teologia. Ele pretende afirmar para a sua comunidade que a ressurreição esperada para o fim dos tempos chegou! Está presente onde Jesus está. Ele é a novidade da vida do âmbito de Deus, agora presente Nele, definitiva e plenamente! 

Jesus continua no v.26, “E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês isto?” Aqueles, que durante a vida e a existência acreditaram e aderiram a Jesus, tem a oportunidade de experimentar desta mesma existência e vida qualitativamente distinta, no aqui e no agora, que pertence ao Pai, e que Jesus pode doar. Fazem a experiência de viverem já, no agora, uma vida sob cores e tons de eternidade; dão um salto qualitativo para a vida divina; e a fé é o que abre espaço para este tempo pleno. Esta qualidade de vida se faz presente através do dom que Deus oferece em Jesus. Marta faz, então, a sua profissão de fé, “Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Messias, o Filho de Deus,

que devia vir ao mundo"( v.27). Então, ela dá o passo da fé. Faz uma profissão de Fé, reconhecendo que Ele pode administrar aquilo que Deus dá. É através deste reconhecimento de Marta, símbolo da comunidade, que se abre espaço para um dom infinito que Deus pode dar somente em Jesus. Mas, para isso, é necessário dar passos importantes, como renunciar a certas mentalidades ainda existentes.  Com sua profissão de fé, ela sintetiza, assim, os títulos messiânicos da cristologia do Quarto Evangelho: Cristo e Filho de Deus. Significa que ela, bem como os discípulos de todos os tempos e lugares, progressivamente crê que Jesus é o messias, vindo na qualidade de Filho de Deus.

Os vv.33-36 desenvolvem-se ao redor das sensações vivenciada por Jesus. O Jesus da cristologia dos evangelhos e, principalmente, do Quarto Evangelho é um homem autêntico. Ele chora. Não motivado pela frustração ou pelos limites inerentes à morte. Não se trata de um rito funerário, comum entre as irmãs dos defuntos, mas uma expressão do amor que tinha aos três amigos. É a única vez que se menciona dessa maneira que Ele chora. Esta comoção do Senhor é, na verdade, uma indignação profética, frente à rejeição do projeto de Deus e à dúvida em relação ao Seu agir.

Dos vv.39-45, deparamo-nos com o desfecho da narrativa. Jesus chega ao lugar da sepultura de Lázaro e pede que retirem a pedra colocada na entrada. A pedra representa tudo o que separa a vida da morte: o medo, a violência, a opressão e tudo o que a Lei causava de mal. Marta objeta, dizendo que seu irmão está sepultado há quatro dias, e que cheira mal, refletindo a ideia da impossibilidade de vida dita no v.17.

A narrativa é bem construída. Jesus faz uma prece ao Pai, a qual é a expressão da comunicação e comunhão íntima e profunda entre Eles. Então ordena, exclamando com voz forte: “Lázaro, vem para fora!” (v.43). Lazaro (hbr. Eleazar, Deus Ajuda) é chamado novamente à vida, mas ainda caminha amarrado. Por isso, o Senhor ordena que o desamarrem e o deixem ir. Esta ordem, de fato, significa o convite final que Jesus faz para a liberdade. É necessário “desatar” (v. 44) o ser humano de tudo o que o impede de caminhar livremente em busca da vida plena e da dignidade.

Mas o sinal aponta para uma realidade ulterior, como se sabe. E o discípulo não pode parar na simples materialidade dele, que no caso é a reanimação de um cadáver, ainda atado e com dificuldades (sua existência ainda é caduca). Este gesto profético de Jesus alude para uma realidade muito profunda: a Sua ressurreição. Diferentemente de Lázaro, o Senhor ressuscita sem nada que o impeça, cordas ou faixas que lhe dificultem. A ida à Betânia e o sinal ali realizado tiveram, portanto, um objetivo muito claro: libertar a comunidade da morte física, por um momento, e principalmente, da ideológica, da qual encontrava-se ameaçada. 

Somos convidados, diante deste relato a nos questionar sobre quem somos no horizonte do texto: Marta, a agitada que está perdendo a Esperança, vivendo ainda sob o véu das antigas concepções? Ou somos como Maria, que é símbolo do discípulo que crê e reconhece a importância do Senhor, indo lhe ao encontro? Se temos reconhecido Jesus como a Ressurreição e a Vida presente a nós, e, com isso acolhido o dom de Sua vida como oportunidade atualíssima de viver aqui e agora sob as cores e os tons de uma vida ressuscitada?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.


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