sábado, 22 de abril de 2023

III DOMINGO DA PÁSCOA - Lc 24,13-35:

 

A liturgia deste Terceiro Domingo da Páscoa nos apresenta o relato conhecido por todos como os discípulos de Emaús. Lucas conserva os dados comuns a Marcos, Mateus e João, mas transmite a experiência com o ressuscitado a seu modo para a sua comunidade. Tomemos o texto.

“Naquele mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado, chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém” (v.13). Lucas situa a cena ao redor dos acontecimentos do dia da ressurreição. Mas revela que a comunidade ainda encontra dificuldades para fazer a experiência da vida com o ressuscitado. Prova disso são os dois discípulos, um de nome Cléofas, e outro, anônimo, que pertenciam ao grupo dos Doze, dirigindo-se para o povoado de Emaús. O fato de irem para a direção contrária à do grupo revela que os discípulos estavam de fato perdidos após a morte do mestre. Por que seguem para lá? Para responder a essa indagação, se faz importante compreender a teologia da obra lucana e os expedientes literários dos quais ele se serve para transmitir sua catequese para uma comunidade também em crise.

O projeto teológico de Lucas revela como meta e centro da missão de Jesus Jerusalém. Desde o capítulo nono, se narra a viagem do Senhor para a cidade santa. Lá Ele revelará a ação de Deus, através de sua entronização a partir da morte de Cruz e da ressurreição. Por isso, Jerusalém se torna a meta de Jesus, e, consequentemente, a do discípulo. O evangelista se apropria da profecia de Isaias, que “de Jerusalém vem a Palavra de Deus”, para ensinar à sua comunidade que a vida, missão e obra (paixão-morte-ressurreição) de Jesus, se torna a Palavra a ser revelada e anunciada a todas as nações, até os confins do mundo (habitado), a partir de Jerusalém.

Os discípulos se deslocam em direção a Emaús, caminho oposto à Jerusalém. Caminham na contramão da vida e da missão de Jesus. Eles não conseguem assumir como meta para si o sentido da vida de seu mestre. Emaús, significa, portanto, o estado de ânimo do discípulo e da comunidade: frustrados e fracassados. Isso se deve ao fato de possuírem uma noção equivocada acerca da identidade de Jesus. Nutriam falsas esperanças em relação ao mestre. Almejavam a restauração de um reino terreno, e por isso, concebiam um messias triunfante, dominador, guerreiro, revolucionário. No entanto, se deparavam com um crucificado, que, sob hipótese alguma poderia ser o ungido, da descendência davídica.

Não é sem sentido que Lucas se serve da cidade de Emaús para situar o relato, pois o povoado rememora um episódio marcante para a história de Israel: a vitória do povo, liderado por Judas Macabeu, que, com o exército israelita venceu a dominação dos dominadores selêucidas, pagãos. O relato da vitória do exército de Israel se afirma com a declaração contida em 1Mc 4,11: “Todas as nações saberão que Israel possui um libertador e um salvador”. Ou seja, o messias esperado seria aquele que resgataria e salvaria o povo de Israel. Jesus, por causa de sua morte frustrou essas expectativas, tornando-se uma grande desilusão para os discípulos.

Lucas pretende, através do relato, revelar que, quanto mais os discípulos nutrirem ideias equivocadas acerca da vida, missão, obra e todo o acontecido com Jesus (sua paixão, morte) e minimizarem a boa notícia da ressurreição, se distanciarão, tomando o caminho contrário ao do Senhor, e não conseguirão fazer a experiência com ele, o vivente. Só farão experiência de morte, de desolação, de frustração e fracasso.

“Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles” (v.15). Aqui, o evangelista se apropria daquela imagem de Jesus, enquanto pastor ideal (pertencente ao Quarto Evangelho), que não abandona suas ovelhas. Antes, caminha com elas. Mas Lucas insiste na dificuldade dos discípulos em reconhecer o peregrino que caminhava com eles, “Os discípulos, porém, estavam como que cegos, e não o reconheceram” (v.16). Estão impedidos de ver/reconhecer a Jesus porque estão ainda com os olhos voltados ao passado e na direção contrária, por isso não conseguem ver o presente, no qual Jesus está, tampouco vislumbrar o futuro para o qual o mestre conduz. 

Diante da pergunta do peregrino acerca do conteúdo da conversa deles durante a viagem, eles o colocam a par dos últimos acontecimentos. Note-se, eles não abandonam o adjetivo nazareno, o qual aludia a condição de revolucionário. Ainda se prendem a essa expectativa. Não bastou o testemunho das mulheres. A resposta de Jesus a eles soa como reprovação: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória? (vv.25-26).

O verbo utilizado por Lucas, “dever/necessidade” precisa ser bem entendido: a necessidade deste sofrimento só pode ser compreendida diante da liberdade de Jesus ao assumi-lo, não enquanto predestinação ou determinismo, mas como consequência de uma vida inteira vivida na fidelidade ao Pai.

O que Jesus faz, em seguida, é emblemático: lhes interpreta as escrituras, “E, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito dele” (v.27). Mais do que explicar (conforme faz uso a tradução litúrgica) Lucas usa o verbo “interpretar” (Gr. διηρμηνευεν / dihermhenêuesen), verbo do qual provem o termo técnico hermenêutica, a arte ou a técnica de interpretar o texto. Jesus não se limita a narrar, dizer ou explicar lhes os textos das Escrituras, mas a interpretá-los. Ou seja, ler toda a sua vida e missão à luz das Escrituras, e vice-versa. Mas, para ler e compreender as Escrituras é necessário lê-la e interpretá-la com o mesmo Espírito que as inspirou, o amor criador e gerador de vida de Deus-Pai, por toda a obra da criação. E este será um critério que permitirá aos discípulos compreender as Escrituras sob o signo da vida de Jesus.

Um critério a mais é necessário ao discípulo, para compreender o sentido (caminho, direção) da vida de Jesus. O qual emerge da cena, a seguir. O evangelista recorda a última ceia do Senhor através do gesto do sentar-se à mesa com os discípulos e partir o pão com (e para) eles: “Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles” (v.30-31). A forma como o autor organiza a cena no relato é interessante: sentados à mesa estão Jesus, Cléofas e o outro, anônimo. Estas personagens são sempre um convite a colocar o nosso nome nelas. O discípulo anônimo pode ser cada um de nós. Pois, diante dos limites que trazemos conosco, há também lugar na mesa; podemos tomar parte dos gestos e dos ensinamentos do Senhor que, ao redor da mesa tudo  refaz.

Os mesmos gestos, a mesma ação que Jesus realizara com os discípulos na ceia pascal. Lucas é o único evangelista que faz memória das palavras do Senhor naquela ceia, e, que, após narra a ordem de iteração “Fazei isto em memória de mim”. Assim, Jesus, realizando os mesmos gestos da Ceia da Nova Aliança atualiza  para eles a sua presença. Isso faz com que os olhos dos discípulos se abram e possam reconhecê-lo. 

Ao realizar a sua memória diante dos discípulos à mesa, Jesus tornou-se invisível aos olhos deles. O texto litúrgico diz que Ele desapareceu, o que não expressa bem o sentido dado pelo evangelista. A melhor tradução é “ficou invisível”. Desparecer significa não estar mais presente, alude ao perigo de conceber o Senhor como ausente, o que não é verdade. “Ficar invisível” significa permanecer presente sem ser visto, acenando para a certeza da sua presença, mesmo sem vê-lo. Esta é a mensagem que o Evangelista quer transmitir para sua comunidade: Jesus se torna visível todas as vezes que a comunidade se reúne para partir o pão, ainda que invisível, porque será a vida do discípulo e da comunidade a torna-la visível, atual e, portanto, presente.

Somado à Palavra de Deus reinterpretada por Jesus (à luz de sua vida), o pão repartido se torna critério para experimentá-lo como Ressuscitado. Ele é uma realidade que o Cristo se serviu para expressar e visibilizar o que aconteceria com sua vida e história. Mas será sempre o sinal distintivo, através do qual a comunidade poderá fazer memória da sua vida vencedora e indestrutível. Assimilando seu gesto de entrega-em-amor, a comunidade poderá fazer o que Ele fez e viver como Ele vive. Poderá experimentar a força ressignificadora de Sua ressurreição ao ouvir Sua palavra e sentar-se à mesa, a fim de retomar o caminho certo.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São  Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.


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