A oitava pascal compreende o
grande domingo da Ressurreição do Senhor. Por oito dias, a comunidade dos
discípulos de todos os tempos se reúne entorno da novidade da ressurreição e
dos encontros com Jesus, o vivente. E a narrativa proposta pela liturgia para a
nossa meditação, que coroa estes grande dia memorial da Ressurreição, é tomada
da conclusão original do Quarto Evangelho, Jo 20,19-31.
O texto é, sem sombra de dúvidas, uma narrativa de recriação, tanto do ponto de vista da comunidade, como do discípulo. Nesta seção o autor nos convida a tomar parte da experiência da comunidade dos discípulos com o Ressuscitado. De imediato se faz necessário esclarecer: estas cenas não tratam de mostrar aparições. Mas são encontros entre Jesus e a comunidade dos discípulos. Isto posto, podemos tomar o texto e meditá-lo.
“Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores: domingo de Páscoa. Mas a variação temporal revela que a comunidade dos discípulos já deu passos significativos: ela transitou da “madrugada” para o entardecer. O catequista bíblico está recuperando a memória do primeiro dia da criação, em Gn 1 – 2,25. Ele deseja transmitir para a sua comunidade que o acontecido contido nesta narrativa é uma nova criação. Fundindo os horizontes do tempo narrado (30 d.C) com o tempo da comunidade (90 d.C), a indicação temporal “primeiro dia” pode acenar para a prática de dedicar aquele dia para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Na verdade, o primeiro dia da semana, é, ao mesmo tempo, o oitavo. O número oito é a cifra do Ressuscitado e, portanto, da Criação levada à plenitude.
Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas na casa, o ambiente da própria comunidade. Sinal de que ela saiu do sepulcro.
“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.19). Mas, mesmo se distanciando da escuridão e dos esquemas de morte e, tendo dado passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Não é sem razão. As horas e os dias anteriores respiravam ameaças e morte, pois se o mestre foi morto pelas autoridades do judaísmo, também suas vidas perigavam. Mas à atitude do medo, o evangelista deposita um motivo teológico: ele torna-se oposição à Fé. Ou seja, impede a experiência relacional com Deus. O medo preocupa, impede a missão e gera fechamento; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor.
“Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: A paz esteja convosco" (v.19b). É importante a informação dada pelo evangelista. Nos relatos do Ressuscitado, os evangelistas não o mostram manifestando aos discípulos de forma distante. Não se trata de um Jesus acima de tudo e de todos. Ele se encontra em meio! O ressuscitado é o centro orientador da existência do discípulo e da vida da comunidade. Mas também é o núcleo gerador de vida para a comunidade. O indicativo de que o Senhor se encontra ao centro também serve para que se elimine da vida dela e dos discípulos toda a concepção de superioridade. Não pode haver espaço para inferiorização. Não pode existir maior ou menor. Todos possuem a mesma relação com o Senhor. Por isso, a comunidade e o discípulo que vão se abrindo a experiência da ressurreição devem-se permitir serem recriados como comunidade igualitária, livre de estruturas de domínio, de poder e de submissão; fraterna, tendo um único centro: Jesus Ressuscitado. Estando o Senhor ao centro, João quer ensinar que a ninguém é permitido tomar o lugar de Jesus; nenhum discípulo poderá ocupar a centralidade da comunidade pois ela pertence ao Senhor.
“A paz esteja convosco (gr. ειρηνη υμιν / Eiréne ymín)” (v.19). Esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica plenitude do homem. É o número do ser humano. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da vida que Deus dá. É a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). Esta, não é semelhante a do mundo, a qual pertence e provém das estruturas desta realidade. João quer ensinar para a sua comunidade que através do dom da vida de Jesus, o vivente, se obtém a plenitude da vida que Deus oferece.
O v.20 é importante para a continuidade do relato, porque a paz comunicada acima só se tornou possível por conta das mãos e do lado de Jesus. Ele mostra-lhes as mãos e o lado traspassados pelos pregos e pela lança. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. A atitude de dar a própria vida no lugar dos seus e, portanto, salvá-los, não foi uma ação heroica, que ficou no passado, mas continua para sempre. Ressuscitado, Jesus carrega consigo todo o sentido de sua vida crucificada. Como se Jesus, com este gesto, estivesse a dizer: “Por que vocês estão preocupados? Olhai e vede: aquele amor que me impulsionou a doar minha vida por vós não foi apenas um momento, mas continua para sempre!” A nível de informação, o v.20 também representa a intenção de João em mostrar a continuidade existente entre Jesus Crucificado e sua condição ressuscitada.
“Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do Pai e na Sua fidelidade ao realiza-la; a dos discípulos, na de Jesus. Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, gr. ἀποστέλλω; mas aqui απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (gr. καθως, como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e a causa, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus recebeu do Pai. O agir do discípulo e da comunidade manifestarão e prolongarão a missão do Senhor.
Os vv.22-23 são profundamente importantes para a finalidade do relato. Ao enviar os discípulos, Jesus sopra sobre os discípulos o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo.
O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Atenção! Jesus não está dando um poder reservado somente aos discípulos, mas uma responsabilidade que toca a todos: reconciliar o mundo; transformar as realidades. O que perdoa os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão, o discípulo que recusa amar como Ele amou.
A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ora, ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilhasse da mesma mentalidade. Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Mas quem seria o seu outro irmão gêmeo? Teríamos um personagem anônimo na narrativa? Os personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho (e em toda a Sagrada Escritura), a função de espelhos para a comunidade e os leitores. Ou seja, eles servem para que os leitores assumam aquela identidade; se identifiquem com ele. Um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a assimilar a Tomé como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades. A sua coragem – atestada pelo fato de não estar no ambiente fechado da comunidade amedrontada – foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O seu erro foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.
Oito dias depois (v.26), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a executar o gesto que havia pedido como prova. Ele, ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” (v.28). O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. A Tomé, e a todo o discípulo, Jesus concede participar do dom de sua vida ressuscitada, Seu Espírito, e com sua Pessoa, quando se reúne com a comunidade. Sempre que a comunidade completa-se ao redor do ressuscitado, através da celebração de sua memória, o Senhor renova a efusão do Espírito e se pode fazer experiência com Ele, o vivente, e com sua ressurreição.
O relato encerrasse com uma bem-aventurança dirigida aos discípulos de todos os tempos e lugares: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28). Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito questionadores chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado, através do dom de deu amor e de sua misericórdia e viver da missão do Senhor. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu,
Avaré-SP / Arquidiocese de Botucatu.
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