O evangelho significa Boa Notícia. A boa notícia de que o Pai de Jesus não é o Deus da religiosidade antiga. Este, retribui a cada um segundo seus méritos; premia os bons e castiga os malvados. Jesus apresenta um Deus totalmente distinto: fala de um pai bondoso que faz brilhar sobre maus e bons o mesmo sol; faz chover sobre justos e injustos. E isso, não porque possam merecer, mas porque possuem alguma necessidade. Tal atitude do Deus apresentado por Jesus parece não ter sido aceita pelos discípulos que o seguiam e, ainda, mais aos fariseus e escribas. Então, é para estes que ele dirige a parábola contida no evangelho deste domingo, Mt 20, 1-16.
O contexto próximo do texto situa-se na seção
da subida de Jesus para Jerusalém, no Evangelho segundo Mateus. Encerra-se a
missão na Galileia. Na cidade santa, a sua pregação passará pelo filtro do
juízo dos homens e a fé dos discípulos será posta em xeque. Uma opção deverá
ser feita: aceitação ou recusa do Messias Jesus e do Deus que ele chama de Pai.
Os capítulos 19-23 narram essa longa viagem, durante a qual os discípulos são
instruídos na sabedoria e pedagogia do Reino, contemplando as ações e as
palavras do Mestre e pondo-se a refletir sobre elas.
O contexto imediato, corresponde ao
capítulo vinte da catequese de Mateus. O qual inicia-se com uma parábola de
Jesus direcionada ao grupo dos discípulos. As parábolas são recursos
pedagógicos de ensino dos rabinos da época de Jesus. Elas pertencem ao gênero
literário sapiencial dos meshalim. A
parábola (hbr. Mashal), serve-se de elementos conhecidos da realidade com a
finalidade de transmitir um ensinamento. Por isso, ela se ocupa de três
funções: 1) chamar a atenção do leitor-ouvinte (o discípulo); 2) provocar os
ouvintes, a partir de elementos ou situações exuberantes (ou exageradas, no bom
termo da palavra), e, 3) levar a audiência à mudar a atitude. Jesus nota que
que existe algo muito importante a ser trabalhado nos discípulos: a imagem que
possuem de Deus e modo de se relacionar com ele.
A parábola narrada no evangelho dominical
serve-se de imagens conhecidas das pessoas do tempo de Jesus, bem como absorve
elementos da tradição religiosa de Israel. A vinha, por exemplo, serve de
imagem comparativa para o povo de Israel (Is 5,1-7; Jr 2,21; Ez 15,1-8; Os
10,1; SI 80[79]). Mais a diante, esta imagem retornará noutra parábola (mais
forte ainda, a dos vinhateiros maus, em Mt 21,33-46). A vinha, por assim dizer,
é o campo histórico da atuação de Deus.
Mas a parábola dos trabalhadores, contida
no início do capítulo vinte, se liga à cena anterior, o diálogo-ensinamento de
Jesus aos discípulos. Ao final da narrativa do jovem rico (Mt 19,16-30), Pedro,
em nome dos doze, questiona Jesus acerca da recompensa que o discípulo, que
deixou tudo pelo Reino, ganharia: “Eis que deixamos tudo e te seguimos. O que
receberemos?” (Mt 19,27). Com a parábola a seguir, Jesus retoma o tema da
recompensa dos discípulos. E ensina que a recompensa merecida, nada se
identifica com as ações realizadas por alguém, e sim com a misericórdia desconcertante
do Pai dos céus. Agora podemos vislumbrar o horizonte do texto.
Dos vv.1-7, Jesus ilustra aos discípulos
as ações de um certo dono de vinha. Ele sai contratar trabalhadores para sua
vinha, de manhã, bem cedo. Indo novamente às nove da manhã, ao meio-dia, às
três, e, por fim, às cinco da tarde. Com os primeiros, combinou uma moeda de
prata (gr. denárion), o equivalente a uma jornada inteira de trabalho, a qual
começava às seis da manhã, terminando seis da tarde. Com os demais, ele combina
“aquilo que for justo” pagar.
Algumas coisas devem chamar a atenção do
leitor-ouvinte. A atitude do dono da vinha: é ele quem sai em busca dos
trabalhadores, quando, na verdade, os feitores seriam encarregados disso. Essa
atitude mostra a urgência que o dono tem. Em que consiste tal urgência?
Satisfazer vontades próprias? Enriquecer? Não. Ele pensa nas necessidades dos
outros. Se ele estivesse pensando nas necessidades próprias, bastariam os que foram
chamados na primeira hora. Parece espantoso um proprietário que pense primeiro
nos outros, que em suas necessidades. É o que Jesus quer demonstrar através da
atitude do patrão que sai, novamente, às nove, ao meio-dia, às três e, por fim,
às cinco: ele não pensa em seus ganhos, mas naqueles que não tem trabalho. Na
realidade do tempo de Jesus, quem não tivesse trabalho, não teria chance de
comer, de se sustentar e à sua família. Os que estavam nas praças desocupados
não estavam ali porque queriam, mas porque não encontravam trabalho. A falta de
emprego não significa preguiça! É sinal de uma realidade e contexto históricos
injustos.
O patrão sai, última vez, às cinco. O
leitor, aqui, já deve estar surpreso. Ele conhece o ambiente e o costume; sabe
que é o último horário antes do sol se pôr, para iniciar a vigília do dia
seguinte. Mas também a estes trabalhadores da última hora o patrão os chama. É
mais uma forma de Jesus e de Mateus enfatizarem que a atitude do patrão não é
pautada por suas próprias necessidades ou ganancias, mas está toda ela
orientada para o bem-estar do outro.
Dos vv. 8-10, Jesus narra o acerto de
contas, ao final da diária. O patrão (lit. O Senhor / gr. Kyrios, o que dá a
entender que Jesus e Mateus identificam o dono à Deus), manda o chefe de
pessoal chamar primeiro os últimos, conforme está escrito em Dt 24,15, onde se
ordena pagar ao operário, no final do dia o equivalente a uma jornada de
trabalho, antes do pôr-do-sol para que não passem necessidade. Chama-nos a
atenção a postura dos trabalhadores da primeira hora, os quais murmuram contra
o fato do patrão ter pagado a mesma quantia aos que chegaram por último. É
logico – dentro dos esquemas humanos – pensar que os que trabalharam desde o
primeiro momento, devessem ser mais bem recompensados. A generosidade e a
solidariedade do patrão os deixavam desconcertados e estupefatos. Não esperavam
tal coisa. Começam a protestar contra a injustiça do patrão.
Os vv.11-12 mostram a murmuração dos
primeiros trabalhadores. Eles não aceitam a atitude do patrão. Murmurar é agir
contra o projeto de Deus. Mas aqui no horizonte do texto ela representa o
protesto dos privilegiados, contra a gratuidade / Graça outorgada aos que não
tem nada.
A resposta do patrão soa corretiva e visa
abrir lhes os olhos: “Amigo, eu não fui injusto contigo. Não combinamos uma
moeda de prata? Toma o que é teu e volta para casa! Eu quero dar a este que foi
contratado por último o mesmo que dei a ti. Por acaso não tenho o direito de
fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja, porque estou
sendo bom?” (vv.13-15). Por três vezes, na catequese mateana, Jesus usa o
vocativo “amigo”. Em todas elas, o termo é usado para mostrar que a pessoa está
errada e precisa ser corrigida.
Na resposta do chefe da família, “Eu quero
dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti” (v.14), Jesus enfoca
o sentido da parábola. Ilustrar o agir de Deus em relação ao ser humano que
ainda não foi alcançado pelo projeto de Deus, pela dinâmica do Reino. Este
projeto não é para poucos, alguns ou privilegiados, mas para todos,
indistintamente. A parábola se serve da realidade do trabalho agrário da época
para desenhar o proceder de Deus em relação aos que estão dando o passo na fé e
na salvação até mesmo na última hora da história humana. Diante desta
realidade, o discípulo veterano deve tirar o olho mal de si, “estás com inveja,
porque estou sendo bom?”. Inveja é a tradução para expressão contida no
original grego “olho mal”.
Eis a novidade que Jesus transmite através
desta parábola: Deus não trata o ser humano segundo seus méritos, religiosidade,
assiduidade ou conduta do cristão de bem; mas o trata segundo Sua gratuidade e
generosidade, levando em conta a necessidade daqueles. Não pelo mérito, mas
pela necessidade. Necessidade de ter junto de si todos aqueles que ainda não
foram alcançados pelo projeto do Reino, aberto a todos até na última hora da
história humana e particular.
Ao terminar a parábola, Jesus faz uma
consideração importante acerca do modo de agir de Deus: “Assim, os últimos
serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (v.16). O modo de pensar e
de agir de Deus é muito diferente do pensar e agir dos homens. Ele inverte os
esquemas humanos. Estamos diante do tema da inversão escatológica realizada por
Deus através de Jesus. Que é a reviravolta radical que Deus opera na história
reinserindo últimos – pecadores, excluídos, marginalizados – no seu horizonte
salvífico.
O discípulo do Reino é desafiado a se
inspirar em Deus (Mt 5,48). Esta parábola pode ter sido dirigida tanto aos
fariseus incapazes de imaginar que seriam recompensados por Deus como os
recém-convertidos, quanto para os líderes da comunidade cristã que se sentiam
superiores e mais dignos de recompensa do que os convertidos recentemente à fé.
Tanto para o fariseu, quanto para o discípulo (cronologicamente veterano no
projeto do Reino) não há nenhum privilégio em relação a quem aderiu
recentemente à Fé em Jesus ao Reino. Isso vale para o discípulo e para a
comunidade que se identifica como cristã.
Quem somos no horizonte deste evangelho?
Em qual horário da nossa vida fomos chamados por Deus? Em que horário do
discipulado estamos? Quais atitudes existem em nós, que não corresponde ao
proceder de Deus diante dos últimos? Peçamos a Graça de um olhar sadio em
relação ao irmão, tornando-nos capazes do acolhimento, da promoção da vida e da
dignidade do irmão; e que nossas comunidades sejam espaço de vida e de
acolhimento especialmente para os trabalhadores da última hora. Porque jamais
podemos nos esquecer que talvez estejamos entre eles também.
Pe. João Paulo Sillio
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