A liturgia da Igreja celebra neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor. Qual o significado desta solenidade para este grande e único domingo que é o tempo da páscoa? Confessar e professar que o Senhor ressuscitado, ao retornar para o âmbito (esfera e mundo) de Deus leva consigo a natureza humana. Jesus não volta sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade com Ele e a reorienta para seu fim último e definitivo: a vida divina.
A perícope que solenidade da Ascensão nos apresenta é a conclusão do Evangelho segundo Mateus. Apenas uma advertência acerca deste texto. Para compreendê-lo, se faz necessário lançar um olhar para toda a catequese mateana. O Primeiro Evangelho tem por finalidade “fazer discípulos-missionários todos os povos”. Mas para que o discípulo possa vivenciar a missão recebida por Jesus, ao final do Evangelho, deverá percorrer o caminho trilhado por Ele. E não poderá furtar-se ao fato de que este é perpassado pela dinâmica da Cruz. O discípulo só poderá assumir a missão depois de percorrer a vida de Jesus e tê-la como seu modelo.
“Os onze discípulos foram para a Galiléia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado” (v.16). Uma constatação importante: a comunidade está incompleta. São onze. Alguém rompeu com ela. O evangelista não se envergonha de mostrar a comunidade fragmentada, imperfeita. O discípulo é considerado por Jesus tal como ele é. É com essa comunidade imperfeita e incompleta que o Ressuscitado conta!
O indicativo da Galileia, mencionada por três vezes somente neste relato pascal, representa a ruptura com Jerusalém. Jesus não se manifesta ressuscitado na cidade santa, mas lá no lugar onde tudo começou. Uma oportunidade de releitura, ressignificação da vida e da história, e de retorno à experiência fontal com Deus, em Jesus. Na Galileia, o Senhor começou seu ministério. Boa parte de Sua vida se deu ao redor daquele lago. Ali, os discípulos fizeram sua primeira experiência com o mestre. O Mensageiro celestial, no começo do capítulo dissera às mulheres que o Ressuscitado esperava seus discípulos lá. É uma forma que o evangelista tem para dizer à sua comunidade que, se pessoa quiser mesmo fazer experiência com Jesus, o Vivente, deverá sempre revisitar, fazer memória, atualizar aquele primeiro encontro com o amor de Jesus.
Mateus informa que o lugar onde os discípulos se encontram com Jesus é “o monte”, na região da Galileia (v.16). Interessante, ele usa o artigo definido “o” para indicar que não é qualquer monte. Todavia, Jesus não havia indicado nenhum monte. Por que Mateus faz isto? Em primeiro lugar, a informação não tem significado geográfico, mas teológico. É importante recordar que, na teologia bíblica, a montanha/o monte é um lugar para se fazer experiência com Deus. Local da manifestação (teofania) de YHWH. No AT Deus se manifestara muitas vezes sobre a montanha. A Lei foi dada a Moisés na montanha do Sinai.
“O monte”, neste evangelho, deve fazer recordar aos discípulos o das bem-aventuranças, onde Jesus inaugurou sua mensagem de salvação. Recorde-se que a versão mateana das bem-aventuranças compreende oito ditos de Jesus. O número oito é o número da ressurreição do Senhor. O evangelista pretende ensinar que só será possível experimentar a Jesus Ressuscitado e o dinamismo da vida ressuscitada, se o discípulo, novamente, situar-se sobre o monte das bem-aventuranças, e assumir em suas vidas o ensinamento nelas contido.
O autor informa que, ao verem o Senhor, os discípulos se prostraram. Aqui, o verbo ver não indica uma capacidade física e biológica que o termo grego Blepo (gr. Βλέπω) alude, mas “ver” como sendo uma experiência que se dá desde a profundidade do coração do homem. É a atitude do “ver” relacionado à Fé, por isso o emprego do verbo Orao (gr. ὁράω). Por isso, Mateus informa o gesto da prostração (gr. προσκυνέω/proskinêo). Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus.
O v.17 informa que alguns duvidavam. Mas de que coisa duvidam? Não de que Jesus tenha ressuscitado, pois o veem. Nem que Ele esteja na condição divina, uma vez que se prostram. Esta dúvida que o evangelista menciona toca a consciência dos discípulos, porque agora eles sabem por quais dificuldades passou Jesus, a morte infame do mestre. E, por isso, duvidam de si mesmos. São convidados a assumirem a condição divina, mas não sabem se serão capazes de viver a vida de Jesus, afrontarem a perseguição e, também, a morte.
A dúvida não faz mal à comunidade. Mesmo que Jesus os tenha reprovado na atitude de duvidar. Podemos dizer que o Jesus mateano apresenta uma característica necessária para a sua comunidade. Para a solidez da fé, a dúvida se faz necessária, pois o seu antídoto não é a certeza, mas a procura, a busca por uma vida carregada de sentido. Portanto, quanto mais se duvida, mais necessidade se tem de buscar o sentido para a vida.
A dúvida não projeta para a morte, mas para uma plenitude de sentido para a vida. E qual é esta plenitude de vida para o discípulo? O amor de Jesus e do Pai. Ora, o amor, assim como a fé, é uma aposta, uma decisão. Quanto maiores forem as dúvidas, tanto maior a necessidade de apostar, de procurar e buscar. Até chegar à plenitude do amor. Podemos dizer que a dúvida e a fé são companheiras inseparáveis na vida da comunidade, porque engendram ao seu interno a capacidade de amar.
Jesus, então, diz-lhes: “Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra”. Aqui, o evangelista faz eco a Daniel, que retrata a personagem “Filho do Homem”, o qual recebeu de Deus todo o poder, no céu e na terra. Mas o poder/autoridade que Jesus recebe não é para servir-se a si mesmo, mas para colocar-se à serviço de todos. E ao interior da comunidade de Mateus, a autoridade é a de Jesus, e não mais a do legalismo da lei mosaica.
Jesus continua: “ide e fazei discípulos meus todos os povos”. O evangelista recupera o verbo "ir" no imperativo: “Ide”. É um verbo de movimento. Ou seja, coloca o discípulo e a comunidade em movimento. Será a partir deste dinamismo que se poderá fazer a experiência da Ressurreição de Jesus na vida, e transmiti-la às pessoas. Não se faz experiência de vida quem fica parado. Pelo contrário, só saboreará a morte.
“Fazer discípulos”, significa transmitir a todos
(sem excessão) o novo modo de viver e de relacionar-se com Deus, através do
modo de vida de Jesus. O discípulo não aprende somente teorias de seu mestre.
Mas apreende o sentido e a forma da vida que ele vive. Por isso, fazer
discípulos é muito mais do que ensinar doutrina, mas testemunhar,
existencialmente, o sentido da vida do Senhor. Ensinar os outros a viverem a vida
de Jesus!
Batizar “em nome do Pai, do Filho e do Espírito”. Jesus fala de Batizar, para além de um rito. O evangelista se serve do verbo Baptizo (gr. βαπτίζω) que significa essencialmente submergir, mergulhar. Ou seja, o discípulo-missionário de Jesus é enviado para inserir, mergulhar, submergir as pessoas na vida mesma de Deus, em seu mistério de amor trinitário. A palavra “Nome” indica a realidade e a identidade mais profunda do ser. Com o sentido de Sua vida, Jesus quer submergir, mergulhar, envolver o seu discípulo no mistério de amor e de vida de Deus, a fim de que eles realizem o mesmo na vida das pessoas.
“ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” (v.20). O que Jesus havia ordenado aos discípulos? Ele os chamou para serem pescadores de homem. Pescar homens significa tirar da morte (símbolizada pela água), das situações nocivas, para colocá-los na vida! Com este mandamento, o Senhor lhes indica como se tornar pescador de homens, ou seja, realizar a missão: mergulhar, submergir, envolver as pessoas na plenitude do amor de Deus.
O evangelista pretende, com as últimas palavras de Jesus, “Estarei convosco todos os dias até que o tempo esteja pleno”, indicar uma qualidade da presença de Jesus, e não indicar um período cronológico ou determinado da presença. Na perspectiva de Mateus, o Senhor assegura à sua comunidade que, na medida que ela se ela viver as bem-aventuranças, fazendo experiência de Deus como fonte de vida e de Amor, a Sua presença, ao interno da comunidade, será garantida. O autor bíblico conclui sua catequese assumindo, novamente, o tema do Emanuel abraçado por Jesus, que, através do dom de Sua existência e missão, revela Deus presente a humanidade, caminhando com ela.
Em Jesus, o Vivente, e agora entronizado junto do Pai, Deus está conosco, e nós, em Deus.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de
Botucatu – SP.
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