O
sexto domingo do tempo pascal continua a meditação do capítulo catorze do evangelho
segundo João, dos versículos 15 à 21. Ele se situa no segundo bloco do Quarto
Evangelho, o Livro da Glória. É o discurso de despedida para os seus
discípulos, o Seu testamento. O conteúdo deste testamento é o dom de Sua vida e
o mandamento do amor. Trata-se do caminho através do qual o fiel discípulo
deverá pautar a vida após a partida do mestre. Será esta vida do Mestre e
Senhor que deverá se fazer presente na vida do Seu seguidor, de modo a continuar
e atualizar a Sua vida ressuscitada na história.
“Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (v.15), declara Jesus. Pela primeira vez no evangelho joanino, Ele toca no tema do amor, mas direcionado a si mesmo. Não se trata de uma atitude egoísta ou narcísica, deixado transparecer algum tipo de carência. O amor do qual fala Jesus no Quarto Evangelho é muito mais superior, e, portanto, pleno. Ele é expressado pelo substantivo “agápe”, do verbo agapao (gr. ἀγαπάω). Ele aparece 259 vezes no novo testamento. E, só no evangelho joanino, nesta seção do testamento de Jesus, 26 vezes. Este amor, do qual fala o Senhor é a atitude da capacidade de oferecer-se ao outro; um amor oblativo que torna a pessoa capaz de doar a própria vida; de coloca-la em relação à vida do outro de forma livre e gratuita. O versículo poderia ser entendido desta maneira: “se estais em sintonia com o modo com o qual eu vivo minha vida, então sois capazes de agir e viver como eu”. Ora, o gesto realizado por Jesus no lava-pés (Jo 13), tornou os discípulos capazes de assimilarem esta forma de amar.
A quais mandamentos o Senhor se refere? O único: o mandamento do amor. Ele é novo na medida que supera os demais. Novidade significa, aqui, últimidade, perfeição, meta. Interessante, o mandamento de Jesus, ele o considera como seu. Não são os de Moisés. Estes encontram-se superados através da obra e da vida de Jesus. O mandamento do amor, na medida em que carregado de plenitude de sentido, ele abraça e sintetiza os dez mandamentos.
Jesus prossegue, “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Defensor” (v.16). O evangelista João usa um termo de difícil tradução. No original grego temos Parakletos (gr. Παρακλητον), o qual se tentou traduzir por consolador, não exprimindo ainda a profundidade da palavra. É preferível a transliteração do termo. Parakletos significa “aquele que foi chamado em socorro”, “em defesa”; talvez a tradução mais acertada seria “socorredor”. Este termo é exclusivo do Quarto Evangelho. Todavia, atentos: Parakletos não é o nome do Espírito de Jesus, mas a sua função, isto é, aquilo que ele realiza: a ação de socorrer, de estar ao lado para socorrer. Trata-se de um outro socorredor, porque segundo a intenção do evangelista, o primeiro a socorrer a humanidade é Jesus.
Jesus dá uma indicação importante e preciosa: “para que permaneça sempre convosco” (16b). O Seu Espírito doado não se trata de um dom passageiro ou temporário. Tampouco vem somente nos momentos de desespero ou de necessidade, quando invocado. Mas a Sua presença é permanente na comunidade e na vida do discípulo. O amor de Deus não vai ao encontro da pessoa e da comunidade quando necessitam somente, mas está já ali. Na verdade, os precede, permanece e acompanha!
Jesus o chama de “Espírito da Verdade (gr. το πνευμα της αληθειας / tô pneuma thes aletheias) (v.17)”. As vezes, se tem a intenção de relacionar o termo “verdade” à um conceito abstrato como a dos filósofos. Essa não é função do Espírito de Jesus, nem faz parte da intenção do autor do Quarto Evangelho. A bíblia não fala de conceitos ou de ideias abstratas. Mas de uma experiência concreta. Por isso, sempre se deve compreender o a palavra “verdade”, a partir de seu original hebraico, Hesed/emet, que significa “amor fiel” ou amor e fidelidade. É disso que Jesus está a falar aos seus. Este Espírito da Verdade, enquanto amor e fidelidade, revela quem é Deus: é amor que se doa e se mostra visível à humanidade. Um amor que está sempre em socorro e a favor do homem.
Todavia, diz Jesus, que “o mundo não é capaz de receber, porque não o vê nem o conhece” (v.17b). O termo “mundo”, utilizado muitas vezes no Quarto Evangelho, se refere ao ambiente hostil e antagonista (opositor) à Jesus e suas Palavras. Alude, ainda, aos sistemas injustos, e, em particular, ao poder religioso da época; o “mundo” das autoridades judaicas, que se opõem firme e decididamente a Ele.
Nem Jesus, nem o evangelista querem “demonizar” o mundo, como uma realidade maléfica e imperfeita. Ora, a missão discípulo, animado pelo Espírito, se dá na realidade histórica, na vida concreta que o rodeia. Por isso, o mundo deve ser iluminado e convertido pela ação do discípulo que é portador do Espírito da Verdade, o Socorredor, a vida mesma de Jesus e do Pai, a fim de reorienta-lo ao seu fim último e definitivo: o horizonte mesmo de Deus.
“Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós” (v.18). O órfão, no ambiente bíblico, é aquele que não goza de nenhuma proteção; que não tem ninguém que lhe possa vir aos cuidados. Jesus assegura que isso não acontecerá, reafirmando a sua presença em meio a comunidade. “Eu virei a vós” se torna, portanto, a segurança para os discípulos de todos os tempos de que a morte do Senhor não será uma ausência, mas presença; não será distanciamento, e, sim, proximidade.
“Pouco tempo ainda, e o mundo não mais me verá, mas vós me vereis, porque eu vivo e vós vivereis” (v.19). Jesus não está falando da capacidade biológica / física do sentido da visão. O “ver” bíblico indica a atitude da experiência com Deus. Ou seja, o Senhor assegura ao discípulo que, mesmo diante de Sua ausência física, será possível manter a relação existencial com o Ressuscitado através de Seu amor e de Seu Espírito que socorre e doa a vida divina. Por isso, na afirmação “eu vivo e vós vivereis”, o evangelista usa um termo que se refere à vida inextinguível, do âmbito de Deus.
“Naquele dia sabereis que eu estou no meu Pai e vós em mim e eu em vós” (v.20). A quê dia Jesus se refere? Ao de sua morte. O evangelista antecipa o que se desenvolverá nos capítulos seguintes acerca da comunhão plena entre Jesus e o Pai e Jesus e o discípulo e a comunidade. O que pretende dizer o autor do Quarto Evangelho para a sua comunidade? Na comunidade dos fiéis, Deus assume seu rosto humano, e, da sua parte, o homem e a comunidade assumem o rosto divino Dele, fazendo existir a comunhão entre Deus e o homem. A presença de Jesus no Pai e do Pai em Jesus se realiza também na vida dos discípulos, eliminando, assim, toda distância entre o humano e o divino. A comunidade cristã aberta ao Espírito da Verdade é, portanto, morada de Jesus e do Pai, tornando-se profeta capaz de expressar com sua vida aos fiéis, a verdadeira presença do Senhor.
No sentido existencial e salvífico da vida de Jesus, se revela um Deus que deseja ser acolhido na vida do indivíduo, de se fundir com ele, dilatando a sua capacidade de amar transformando a comunidade em espaço onde todos podem fazer a experiência do amor, da misericórdia e da compaixão.
“Quem acolheu os meus mandamentos e os observa, esse me ama. Ora, quem me ama, será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (v. 21). Literalmente, o evangelista escreve “Quem tem os meus mandamentos”. Ora, os mandamentos de Jesus não são as imposições da lei antiga, ou normas externas ao homem. Mas é o Seu dinamismo vital interior, que, quando se manifestam liberam toda a sua força vital. A observância do mandamento de Jesus, o amor, não diminui o homem, antes o potencializa para a vida. E o recoloca na mesma sintonia da vida do Senhor.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu / SP.
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