Após
cinco domingos meditando o capítulo sexto do evangelho segundo João – o discurso
sobre o Pão da Vida – a liturgia retoma a leitura da catequese de Marcos, a
partir do capítulo sétimo. O bloco narrativo ao qual pertence esta perícope é o
da seção do pão e do peixe. Temas que percorrem Mc 6 – 9. O pão está sempre
relacionado ao ensino de Jesus. No texto sugerido para este domingo, os
fariseus interrogam o Senhor devido ao fato de que seus discípulos comem o pão
sem lavar as mãos. Mais uma controvérsia entre os fariseus, mestres da lei e
Jesus. Esta, agora, toca o tema da pureza ritual, a qual será reinterpretada
pelo Mestre através do ensinamento proposto pelo texto de hoje.
“os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus” (v.1). Marcos oferece uma informação interessante e assaz importante para a compreensão da narrativa. Trata-se de uma intenção maldosa da parte dos chefes religiosos contra Jesus. O evangelista utiliza o verbo synago (gr. συνάγω), o qual dá origem à palavra sinagoga (lit. lugar da reunião). Por que esta informação é importante? Precisamente porque a estrutura sinagogal, que representa uma instituição do judaísmo, se coloca como antagonista ao evangelho e a proposta de Jesus. Portanto, ao informar que os chefes religiosos se reuniram ao redor dele, o evangelista que mostrar que haverá conflito, sempre com a intenção de apanhar e denuncia-lo.
Ora, o que vem fazer na Galileia, terra jamais pisada por eles, estes chefes religiosos de Jerusalém? Fiscalizar a conduta de Jesus. Os mestres da Lei e os Fariseus são aqueles que observam rigorosamente, letra por letra, a Lei. Ambos se sentem privilegiados por cumprir cada letra ou vírgula do preceito, e, por isso, se consideravam separados, salvos e justos diante dos homens e de Deus. A conduta de Jesus, subversiva, errática, “herética” (porque violava os padrões deles), com certeza já havia sido denunciada pelos chefes religiosos da Galileia aos de Jerusalém. Todavia, chama a atenção o motivo da procura deles: os discípulos estão descumprindo os preceitos da pureza ritual. Não Jesus.
“Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado” (v.2). No tempo e na sociedade de Jesus, sempre que um discípulo realizava algo que fosse destoante do comportamento previsto pela Lei, os líderes religiosos procuravam o mestre daquele discípulo, para censurá-lo. Por isso, diante da atitude dos discípulos, os mestres da lei e os fariseus buscam a Jesus. Qual o problema? Comer o pão sem ter purificado as mãos.
O problema aqui não é de ordem higiênica, mas se baseia na quebra da prescrição da pureza ritual. Entendamos: todas as vezes que um judeu piedoso saia de casa, ao voltar deveria lavar as mãos, pois, durante o percurso poderia ter – sem consciência – tocado em algo considerado impuro pela Lei, e, em virtude disso, ter sido contaminado com a impureza. Nesse sentido, ela ficava distante de Deus. O descumprimento desse preceito pelos discípulos e, certamente também por Jesus, se tornava uma denúncia a essa mentalidade religiosa que reduzia a relação com Deus a práticas ritualistas e exteriores. um sistema religioso totalmente baseado no cumprimento de regras e descomprometido com a ética. Qual o perigo para o qual Jesus deseja alertar? O cumprimento minucioso das regras pode levar as pessoas a compreenderem-se autossuficientes e imaginarem ter mérito diante de Deus.
“Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: "Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?" (v,5). A pergunta que os chefes religiosos colocam para Jesus revela o motivo da procura por ele, ao mesmo tempo que deixa bem claro o engano deles. Eles denunciam que o Senhor está violando um preceito. Mas, atenção: um preceito dos antigos. E Não de Deus. Neste ponto, Marcos faz questão mostrar o equívoco: os fariseus e mestres da lei privilegiam as interpretações humanas, isto é, as prescrições da Lei de Moisés, feitas pelos mestres de Israel. Seguem as tradições dos pais, dos antigos. Com isso, o evangelista revela que estes chefes religiosos preferiam suas tradições e invenções à Palavra de Deus. Ora, além dos mandamentos da Torá enquanto Lei escrita, incluindo as leis do Levítico, os judeus piedosos, a exemplo dos fariseus, seguiam também as da “tradição oral”, às quais atribuíam o mesmo valor da Lei escrita. Estas tradições, mesmo sendo interpretações, eram tidas como sagradas, e a não-observância delas era considerado pecados graves, sendo punidos até mesmo com a morte.
A resposta de Jesus desmascara os chefes religiosos, nos v.v de 6-7: “Jesus respondeu: "Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: 'Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Citando Is 29, o Senhor denuncia a incoerência da vida destes fariseus e mestres da lei: uma espiritualidade ou vida de fé desconectada da vida real. Uma prática religiosa puramente exterior (língua) que não brota do interior (coração), e, ao mesmo tempo, esquizofrênica, cindida com a realidade. Jesus os chama de hipócritas. Na antiguidade, os atores que encenavam as tragédias ou comédias gregas, ao entrarem nas arenas para atuar se vestiam com uma máscara a “hipocrites”. Grave! O Cristo está jogando-lhes na cara que a religiosidade e vida de fé é um verdadeiro teatro; uma encenação realizada no palco da religiosidade. E, no v. 8, a denúncia: “Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens". Denuncia que o projeto de vida deles não tem como centro o mandamento (a Palavra de Deus), mas seus projetos, preferências e verdades pessoais.
O texto litúrgico salta imediatamente para os v.v 14-15, mostrando Jesus corrigindo a visão dos fariseus e mestres da lei para a multidão: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”. A impureza para Jesus consiste na incapacidade de relação com Deus. E ele trata de explicar para os discípulos este tema de forma muito clara nos versículos finais.
Parece que o texto continua até o final com o mesmo público, a multidão, mas não. A fala de Jesus é dirigida aos discípulos, porque o texto litúrgico omite a transição de personagens. “Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem" (v.21-23). Aos discípulos, o Senhor trata de deixar bem claro que não há impureza por contágio exterior. A impureza, entendida por ele como incapacidade/impossibilidade de relação com Deus, nasce do coração. Sede das intenções e vontades do ser humano, conforme a antropologia bíblica, este órgão funciona como a consciência/razão humana. Dali nascem todas as escolhas, positivas ou negativas.
Para o Cristo, a impureza, como impossibilidade de relação com Deus, nasce do coração humano, do interior, pois é dele que surgem todas as atitudes que podem ferir a relação com o outro. São treze as atitudes elencadas, e todas elas estão totalmente enraizadas nas relações humanas. Cada uma delas é um profundo atentado à relação com o outro. Para Jesus é muito claro: não existe relação com Deus, que não passe pela relação com o próximo. As relações humanas interpessoais e fraternas são um verdadeiro termômetro para a vida de fé. Por isso, de nada adianta uma religiosidade impecável, irrepreensível, perfeita, se ela não se traduz em relação com quem está ao redor. E aqui, não se tratam de dificuldades nas relações, mas sim de possibilidade de eliminação delas. Estas atitudes matam as relações fraternas, pois elas objetivam, coisificam, instrumentalizam em descartam as pessoas. Para Jesus, isto é o que torna o homem impuro.
Diante do texto, quais mentalidades equivocadas travestidas de preceitos religiosos me transmitem uma imagem equivocada de Deus? Quais preceitos me impedem de relacionar-me com Jesus? Quais atitudes interiores, presentes em mim, podem eliminar a relação com outro?
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Paróquia
São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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